No espólio do Ex.mo Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO,
falecido em Anadia, foram encontradas três cartas, e uma outra incompleta, de CAMILO CASTELO BRANCO.
Todas elas são inéditas.
Essas cartas, de valor literário e histórico, escritas ao
Ex.mo
Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO, vão, em seguida, transcritas pela
sua ordem cronológica.
São do teor seguinte:
1.ª − «Ill.mo
Ex.mo Snr.
Participei do contentamento de m.tos que o sentiram pelo restabelecimento de V.
Ex.ª. Quando alguns jornaes prognosticavam
sinistramen.te da sua enfermidade, eu senti um fundo pesar, não
pela falta que V. Ex.ª fasia à pátria, por que eu mal percebo o que seja pátria, na minha negação para transcendencias. O que me
magoava eram as dores e as irremediáveis saudades da Esposa e das
Filhas de V. Ex.ª. Quanto ao resto, os luctos da patria
basta para alivial-os algumas missas resadas − um mysticismo
politico de invenção moderna − como se Deus para receber na sua divina
paz eterna almas honestas como a de Saraiva de Carv.º, de Braamcamp e de
V. Ex.ª necessitasse de Missas de Requiem desde Monção até Tavira.
Ainda bem que a patria está agradecendo ao Altissimo a saude de V. Ex.ª; e essas acções de graças, se tiverem uma uncção
de lagrimas, com certeza no rosto da sua familia é que eIlas hão
de dar testemunho de sinceridade religiosa.
Convida-me V. Ex.ª para eu escrever no
Correio da noute.
Para eu escrever esta carta a V. Ex.ª tenho diante de mim quinze
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A sciencia diz que isto é uma anemia profunda. Outros clinicos,
hellenisando a doença, diagnosticam molestias com nomes gregos. O
certo é que a noite começa para mim apenas o sol declina; e a pouca luz
que me alumia durante o dia essa mesma me offende os olhos. Alem d'isto,
não posso equilibrar-me, e para sahir da cama para esta cadeira vim
amparado em duas moletas.
Aqui tem V. Ex.ª o homem que saltava muros e seria capaz
de escalar os da Tartaria ha 26 annos.
Esta incuravel doença sei eu que se chama
ataxia locomotora.
Portanto, a minha carreira litteraria
findou.
Porem, se o tempo e a força
reaccionaria dos 60 annos fizerem
o milagre de me conceder ao menos os olhos, eu escreveria com
muito prazer para o Correio da noite, e então diria a V. Ex.ª as
condições que me conviriam. Se eu tivesse alguma força iria a Lisboa
consultar os especialistas ophtalmologicos, fiado na
sciencia que encerra este adjectivo genuinamente grego, mas
não posso.
Por aqui me deixarei stoicamente morrer, chorado pelos
gemidos dos pinheiraes.
De V. Ex.ª
C. de V. Ex.ª affectivo e grato v.or creado
3/12/86. Camillo Castelo Branco»
2.ª − «Meu am.º e Exmo Sr. José Luciano de Castro.
Ao descaptivar-me desta galé da vida, recebo, quando ja não
a esperava, uma impressão boa da especie humana.
V. Ex.ª que tinha razão para na minha velhice me desestimar pelos
desatinos da' mocidade, castigou-me com singular generosidade que eu
diria das almas nobres, se conhecesse muitas.
Este agradecimento vai tardio, mas eu vivo atormentado ha 8 dias com os
sobressaltos em que me tem a insania de meu
filho Jorge. Sobreveio-lhe agora a furia incendiaria. Foge de
noute, e acende as mêdas de palha e os cobertos colmaçados.
A noite passada foi horrorosa com os toques a fogo e a gritaria
do povo.
Tive este desgraçado quatro mezes no hospital do conde de
Ferreira.
O Sereno imprudentemente mandou-m'o retirar como incuravel, contra a opinião de 5 clinicos que o consideraram perigosissimo.
Quando entrou levava a furia homicida, agora manifesta as
duas. Da primeira, serão provavelmente vítimas os paes. Colloquei ao lado d'elle
esta manhan um homem que lhe incute mêdo com fama
de valente.
Isto é um palliativo que o
não salva de voltar ao hospital
para nunca mais sahir.
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Aqui tem V. Ex.ª m.ª felicidade domestica o eterno,
delicta juventutis do psalmo penitencial. Com efeito, parece que para
mim se fez privativamente um Deus vingador.
Esta cadeia de infortunios prostrou-me sem me deixar o
poder de imaginar uma esperança.
Que fim de vida, meu querido amigo, e que exemplo, se exemplos
valessem!
De V.
Ex.ª
C. de V. Ex.ª M.to grato
am.º
12/7/87. Camillo Castello Branco»
(Advertência. A expressão delicia juventutis, desta carta, é
do Salmo XXIV, V. 7.)
3.ª − «Meu Ex.mo Amigo
Agradeço o primoroso favor do seu telegrama ao medico.
Elle veio aqui imediatamente e prometeu acompanhar de perto ou de
longe esta agonia até ao desenlace fatal que felismente não pode
demorar-se.
Sei que o D.or Gama Pinto, tem pertenções no gabinete a que
V. Ex.ª preside. É possivel que elle o aja esclarecido á cerca da
minha irremediavel doença; todavia não ouso inquirir no animo
de V. Ex.ª o funesto segredo porque sei que a sua delicadeza e
compaixão m'o não revelaria.
Recorde-se algumas vezes da minha mocidade, das minhas
alegrias e da nossa convivencia d'ha 30 annos. Ao passo que o talento
elevou José Luciano de Castro ás maximas culminancias, a minha aplicação
e o forçado trabalho resvalaram-me até á cegueira, porque eu nunca soube fazer valer o estudo poupando
os olhos.
De V. Ex.ª
S. Miguel de Seide o mais grato dos seus devedores
29 de Julho de 1888.
Camillo Castelo Branco
(Nota. Esta carta foi de agradecimento ao Ex.mo Conselheiro José Luciano de Castro, por ter telegrafado ao médico
de Santo Tirso, a pedido do próprio CAMILO CASTELO BRANCO em
seu telegrama, expedido de Famalicão, a 26 de Julho de 1888,
nos seguintes termos:
«Ex.mo Conselheiro José Luciano de Castro
− Lisboa.
Rogo encarecidamente escreva ao Medico Antonio Augusto Rodrigues Ferreira de Santo Thyrso, pedindo-lhe que me não
desampare nesta agonia e me leve de Sande para Santo Thyrso.
Será possivel telegrafar-lhe?
Camillo Castello Branco »
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36 /
Com a supradita carta foi outra da esposa de CAMILO
CASTELO BRANCO para o Ex.mo Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO
a pedir-lhe que não revelasse a CAMILO o prognóstico do especialista oftalmológico Dr. Gama Pinto, mas sim para dizer que
o mesmo especialista prognosticara as suas melhoras. Essa outra carta é
do teor seguinte:
«Fui forçada a escrever esta carta. Camillo quer saber o
que tantos esforços me tem custado a occultar-lhe. Peço. a V. Ex.ª
todo o cuidado na resposta. É só para elle, e é forçoso illudil-o,
desgraçadamente.
Viscondessa de Corrêa Botelho»
4.ª − « ......... Pois bem, meu querido amigo, promova essa
esmola nacional. Esse beneficio passara talvez a minha viuva e a meu
filho demente.
Deus, em quem V. Ex.ª crê, encha de alegrias e prosperidades a sua nobre alma e o destino de suas Filhas.
Povoa, 28/8/88. Camillo Castello Branco».
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NOTAS
As sobreditas cartas revelam o estado de alma do prodigioso escritor CAMlLO CASTELO BRANCO nos últimos anos da sua vida
atribulada, e a sua inteira confiança no afecto e ternura do
seu Amigo, o insigne estadista Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE
CASTRO, a quem comunicava os seus infortúnios.
Para dar realce à afeição recíproca, que os mesmos sentiram em vida, aditamos às cartas, acima referidas, as notas que
seguem:
À carta 1.ª, datada de 3 de Dezembro de
1886:
Nota A.
CAMILO, depois de participar no contentamento de muitos
pelas melhoras do seu Amigo, Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE
CASTRO, qualificou de absurdo a ideia de que a falta do Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO, se tivesse falecido, seria insubstituível, como chefe do governo, como se, no estado maior dos
partidos políticos, não houvesse homens de categoria para a
governação da Pátria. Outro tanto não poderia dizer para com
a Família do ilustre Estadista, cuja falta sentiria do coração por ser
irremediável.
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Nota B.
CAMILO considerou, também, como um misticismo político
de moderna invenção, tanto o sentimento da Pátria, como da Igreja,
anunciados pela imprensa. E isto por não crer na sua sinceridade.
Somente poderia acreditar a Família do Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO já restabelecido, se
esses agradecidos
louvores a Deus tivessem uma unção de lágrimas a testemunhar a sua
sinceridade religiosa.
Nota C.
CAMILO descreveu, a seguir, o seu deplorável estado de saúde,
recordando, com saudade, o que fora a sua vida hercúlea no passado, e,
com tristeza, a sua adversidade e prostração no presente, e deu também
por terminados os seus trabalhos literários que cultivara com amor e
paixão.
E, não fiado já na esperança da medicina, para si cada vez
mais fugitiva, anteviu o fim próximo e patético da vida, naquele tempo bastante longa e demasiadamente acidentada, na mansão pacífica
de S. Miguel de Seide, entre os gemidos dos pinheirais − mudas
testemunhas dos seus incomportáveis sofrimentos.
À carta 2.ª, datada de
12 de Julho de 1887:
Nota A.
CAMILO agradeceu e encareceu a generosidade do Conselheiro JOSÉ
LUCIANO DE CASTRO − generosidade que o surpreendeu e lhe foi servir de
algum lenitivo à sua dor e tribulações.
Contou, em seguida, o estado de insânia do seu filho Jorge e algumas das
suas acções desordenadas, quando em fúria, e sentia esta desgraça como
um castigo de Deus pelos delitos da sua mocidade, e daí o esperar um fim
triste de vida por ter sido rebelde aos preceitos do Senhor e, portanto,
provocado a sua ira.
À carta 3.ª, datada de 29 de Julho de 1888:
Nota A.
Depois de ter agradecido o telegrama do Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE
CASTRO enviado, a seu pedido, ao médico de Santo Tirso, e angustiado por
não sentir melhoras nos olhos, resolveu CAMILO escrever mais uma carta
àquele seu Amigo, para este inquirir no ânimo do Dr. Gama Pinto o funesto segredo
acerca
da doença dos seus olhos.
E para mover à compaixão o Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO, a fim de saber a opinião do referido especialista, recordou-lhe a sua convivência de há trinta anos, exaltando-lhe, ao
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mesmo tempo, a sua acção e elevação política pelo talento e, em seguida,
contou-lhe que a sua vida de estudo aturado e forçado o fizera resvalar
até â cegueira.
Nota B.
Dentro do sobrescrito desta 3.ª carta foi outra da Esposa de
CAMILO a prevenir o Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO de que,
na resposta ao marido, fosse o mais discreto possível. E isto,
certamente, para evitar algum acto de desespero de CAMILO.
À carta 4.ª, datada de 28 de Agosto de 1888:
Nota A.
Mostra esta carta elevação e nobreza de sentimentos
− quer
do glorioso escritor − CAMlLO, quer do eminente político Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO.
JOSÉ LUCIANO DE CASTRO, compadecido de CAMILO que,
de espírito conturbado pelos sofrimentos físicos, desgostos e outros
revezes da vida, vivia na miséria, promoveu-lhe uma
pensão do Estado que CAMILO aceitou, qualificando essa pensão de «esmola
nacional». E com o coração a trasbordar de reconhecimento, sabendo que
o Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO era crente em Deus, como ele, dirigiu súplicas ao Céu para que Deus
enchesse de alegrias e prosperidades a alma generosa e boa do seu Amigo,
e igualmente o destino das Filhas do mesmo
Estadista.
Nota B.
Esta, como as cartas anteriores, dão um público testemunho
da magnanimidade do coração do Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE
CASTRO, ou seja, da lei do amor em acção, e da devida gratidão do
insigne romancista − CAMILO CASTELO BRANCO, como belo
sentimento da sua alma cristã.
____________________
Aqui consigno o meu agradecimento à
Ex.ma Sr.ª D. Júlia Seabra de
Castro, de Anadia, por me ter confiado as cartas,
acima referidas, e permitido a sua cópia e publicação.
Cucujães, em Janeiro de
1941.
JOÃO DOMINGUES AREDE
(Abade aposentado de Cucujães) |