I
A TESE
OM a passagem do Castelo da Feira, no começo de
1939, por inadaptado a
fins militares, do Ministério
da Guerra para a Repartição do património da Direcção geral da Fazenda
pública no Ministério das Finanças, deparou-se-me oficialmente, no tombo
desse prédio número I da primeira região militar, a afirmativa de que «O Castelo da Feira não representa nada de notável na história pátria».
Era o exagero, a má cópia burocrática duma frase infeliz deixada num
relatório de 15 de Março de 1889 pelo então tenente de engenharia e mais
tarde Ministro das Finanças, FRANCISCO DE PAULA AZEREDO, conde de Samodães, que só escrevera: «não representa
na história pátria um papel notável.»
Cumpria-me o dever de repetir e reavivar a tradição esquecida. Com todo
o cuidado em apresentar o quadro histórico pelas próprias palavras do
maior historiador dos primórdios da Nacionalidade, concatenando e
deduzindo as bases confirmadas e admitidas como monumentos da história
portuguesa, resumi a minha convicção à fórmula breve e talvez feliz:
«aqui nasceu Portugal».
Expus a minha tese histórica, fundamentada, deduzida e sujeita a
discutir-se, impugnar-se, contradizer-se; mas que, para tudo isso,
carece de ser posta nitidamente e compreendida por completo, sem
deturpações nem equívocos.
Já um distinto e culto historiógrafo me deu o prazer de chamar-lhe a
minha apaixonante tese. Quero só e firmemente
/ 102 /
conseguir para o Castelo da Feira a consideração, que deve
merecer e não tem tido, da parte de muitos por ignorância, por
inveja ou simples maldade. Pretendo reivindicar uma conjectura
verosímil do papel preponderante desempenhado pelo belo
monumento na implantação da autonomia nacional.
Assim propus a minha convicção:
O Castelo da Feira, único existente dos dois levantados,
antes da batalha de S. Mamede, a favor do infante D. Afonso
Henriques, tendo-se nele iniciado o movimento de que resultou a independência da nação, foi onde nasceu Portugal.
II
ADMISSIBILIDADE
Proclama MICHELET:
«Thïerry avait appelé l'histoire
narration; Guizot analyse;
je l'appelle réssurrection.»...
A história não se inventa, mas pode inovar-se.
Com a simples probabilidade não se faz história, concordo.
Mas sem ser provável nada
pode ser certo.
O modo de averiguar a veracidade dos factos
desse período −
«que em tanta antiguidade
não há certeza»
(1)
− ensina-o ALEXANDRE HERCULANO, indiscutivelmente mestre da
história da fundação da nacionalidade portuguesa.
«Eis uma série de questões, que, nas trevas espessas que
obscurecem a maior parte dos sucessos daquele tempo, não passam de conjecturas,
mas conjecturas verosímeis, o que os progressos dos estudos históricos virão acaso algum dia
resolver afirmativamente
(2).
«Como se manifestou a rebeldia e
quais foram as particularidades que ocorreram nela são coisas sobre que nos restam
sobejas fábulas, mas apenas fugitivas memórias»
(3).
Facto aqui, indício ali, pormenor acolá, confirmação mais
além, temos de ir tecendo, remendando e compondo a sequência dos acontecimentos.
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Fig. 1 − Castelo da Feira. Visto do sul em 1906. (p. 103) |
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/ 104 /
Não se pode saltar de sucesso comprovado a episódio certo
deixando entre êles o vácuo. Preciso é concatenar os acontecimentos,
preencher as lacunas, supôr as ligações entre êles, conjecturar, mas com verosimilhança, com fundamento, com lógica.
Seguindo o bom exemplo do mestre, ainda como tal confessado, ALEXANDRE HERCULANO, a quem me arrimo seguro
de
encontrar bom apoio, apresentei e sustento a minha conjectura
verosímil e fundamentada de ter sido no Castelo da Feira que
se iniciou a revolta de 1128 e, portanto, onde nasceu Portugal.
III
NASCER
Saíu-me assim a frase, correu mundo e radicou-se, constituindo já agora o enunciado dum problema histórico.
No entanto, não passa duma frase, dum símbolo, duma
figura de estilo, que podia não ter sido feliz, mas está certa.
O brado «Pelo infante!» da revolta de
1128, ao arvorar-se
a signa de D. Afonso Henriques no Castelo da Feira, foi o primeiro vagido da autonomia portuguesa nascente, da qual a
batalha de Ourique viria a ser o baptismo solene. No combate
de S. Mamede cortou-se o vínculo do condado portucalense à
suzerania de Leão, disputando-lhe o senhorio sem audiência do rei
leonês.
Noutro ponto, porém, tinha nascido, antes, a sublevação que
triunfava, tendo a independência germinado, havia anos, nas aspirações
do conde D. Henrique e no altivo orgulho e espírito
de rebeldia dos guerreiros portucalenses.
Se D. Afonso Henriques fosse vencido em S. Mamede,
Portugal autónomo morreria quase à nascença; mas morreria,
o que importa ter nascido, segundo a abalizada opinião do
famigerado PEDRO PENEDO, parteira universitária do direito civil no meu tempo. Discutia com afinco se quem nasce morto,
nasce ou não nasce.
A criança nasce quando dá o primeiro grito, à entrada do
ar nos pulmões, e não quando, ao gatinhar, se toma independente.
Interessa-me para o sentido figurado em discussão, o primeiro grito ou, mais poeticamente, o primeiro vagido e
este
antecede, sem dúvida o corte do cordão umbilical.
Nos tempos em que escrevi romances, deixei na
Viuvez este diálogo:
− «É uma bela criaturinha que eu pus cá neste mundo.
− Você, colega! Pois também faz disso?
− Também. Um homem de forceps em punho vale mais,
para dar uma criança à luz, do que uma parturiente exausta. »
/ 105 /
Mas não quero insistir no campo obstétrico nem mesmo
averiguar se a operação cesariana é positivamente um parto, visto haver desvio das vias naturais e o sujeito da oração ser
afinal o operador.
Em boa verdade, o que se discute
não é o sentido mais ou menos figurado do nascimento. E a
admissibilidade da tese
histórica de ter sido o Castelo da Feira onde se ergueu o primeiro grito
da revolução de 1128, vencedora nos campos de S. Mamede, ou mesmo se foi
lá, sem grito, que teve início esse movimento do qual resultou
triunfante a autonomia nacional.
IV
GUIMARÃES
Com Guimarães estabelece-se um equívoco sem base.
Não se pode dizer que Portugal nascesse em Guimarães;
porque nasceu precisamente contra essa cidade, capital do condado portucalense, último reduto da soberania da D. Teresa, alvo, por
assim dizer, da revolta de 1128 e que, portanto, não podia ter sido o
seu ponto de partida, o local do seu início.
Guimarães viu nascer D. Afonso Henriques. Guimarães foi
o berço da monarquia.
Ninguém pode ter a pretensão de diminuir o papel preponderante de
Guimarães nos tempos proto-portugueses e até pré-portugueses. Mas não se
confunda o nascimento de D. Afonso Henriques com o de Portugal, quando
ele quis tomar, como
príncipe autónomo, o governo herdado do seu pai, tirando-o à mãe, que o
subordinava ao rei leonês e a um fidalgo galego.
Achando então toda a terra portucalense alçada a favor da
mãe, forçou
dois castelos e nenhum foi o de Guimarães.
Se em Guimarães tivesse nascido a revolta separatista, não eram dois os
castelos tomados à mãe. Teriam sido três e o de Guimarães primando aos
outros. A batalha de S. Mamede seria ao contrário: defendendo-se o
infante e atacando os partidários da D. Teresa e do Trava.
Mas não foi assim. Tomaram voz pelo infante os castelos da Feira e de
Neiva e, só depois da batalha, ele entrou em Guimarães.
Já vi adaptado o lema de primeiro dia de Portugal à cidade de
Guimarães.
É certo. Está muito bem. Foi ali o berço de Portugal autónomo e
independente. Nesse berço dormiu a pátria nascente o seu primeiro sono,
depois de ter vencido no campo de S. Mamede, de ter cortado a submissão
à suzerania do rei leonês.
/
106 /
Tinha nascido antes, ao erguer-se o primeiro brado a favor
de D. Afonso Henriques, como infante independente de Portugal
liberto.
Não quero com isto diminuir o ascendente histórico da
cidade de Guimarães, pela qual tenho a veneração que lhe deve
todo o bom português.
D. Afonso Henriques não saiu de
Guimarães para se revoltar. Anos antes
de escrever a História de Portugal, no romance O Bobo, publicado pela primeira vez, em 1843, nas colunas do
semanário "O Panorama", o futuro historiador fantasiara da
maneira que lhe era necessária para enquadrar o protagonista,
também de fantasia.
Segundo a fábula do romance,
D. Teresa estava em Guimarães em Junho de 1128
(4), e daí teria fugido D. Afonso
Henriques (5).
«Por largo tempo o mancebo generoso viveu nestes
paços esquecido e desprezado como um ínfimo homem de armas»
(6).
«... o infante, dois meses antes (Abril de
1128) desaparecera dos paços de Guimarães, seguido de vários ricos
homens e cavaleiros da sua parcialidade»
(7).
Mas não é aos romances que havemos de ir buscar as
certezas históricas nem aprender a verdade dos factos.
Quando, em 1846, publicou o primeiro volume da
História
de Portugal, ALEXANDRE HERCULANO não assevera o mesmo que
fantasiara como romancista.
«Pelos indícios que os documentos nos ministram, o infante
abandonou sua mãe, a qual talvez se achava então na côrte
de Afonso VII, e dirigiu-se à província de Entre Douro e Minho no mes de
Abril.
...A suspeita da ausência de D. Teresa na ocasião do levantamento adquire maior probabilidade, se atendermos que só
quase três meses depois os dois partidos vieram a uma
batalha, que foi decisiva e fatal para a rainha. De feito,
esta, tendo marchado para Guimarães com as tropas dos
fidalgos galegos e dos portugueses seus partidários, aí se
encontrou com o exército do infante no campo de S. Mamede,
junto daquela povoação»
(8).
/
107 /
Guimarães foi o berço onde Portugal dormiu o seu primeiro sono, bem
ganho nas fadigas da vitória. Foi berço leal e carinhoso. Mas ninguém
nasce no berço.
E, quando se surge no mundo para uma finalidade operosa e brilhante como
a da nossa nação, é natural que o berço diste do lugar do nascimento,
se o primeiro arranco de vida, antes do bem merecido repouso, teve de
vencer e destruir dificuldades opostas ao livre e alto resfolgar do forte recém-nascido, a quem as
brisas marítimas incutiam já os alentos empreendedores que
novos mundos ao mundo irão mostrando
(9).
Valho-me ainda de ALEXANDRE HERCULANO para copiar:
«Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse
um povo cheio de actividade e vigor, para cuja acção fosse insuficiente
o âmbito da terra pátria, um povo de homens de imaginação ardente,
apaixonados do incógnito, do misterioso, amando balouçar-se no dorso das
vagas ou correr
por cima delas envoltos no temporal, e cujos destinos eram conquistar
para o cristianismo e para a civilização três partes do mundo, devendo
ter em recompensa unicamente a glória. E a glória dele é tanto maior
quanto, encerrado na estreiteza de breves limites, sumido no meio dos
grandes impérios do mundo, o seu nome retumbou por todo o globo»
(10).
Um povo. assim não nasce no berço onde repousa na primeira dormida, porque do local do seu nascer até
esse berço glorioso
teve de abrir o caminho da sua liberdade, da sua independência e da sua
autonomia.
V
S. MAMEDE
Ninguém pode seriamente considerar a batalha de S. Mamede
o primeiro
passo para a autonomia do condado portucalense. Anteriormente houve
muitos passos para essa libertação e até o conde D. Henrique tinha dado
algumas largas e fortes passadas.
A revolta triunfadora não brotou repentina no campo de S. Mamede. Foi
para lá pelo seu pé, a passos lentos durante
meses, andando muito mais que as sete léguas que medeiam de
/
108 /
Neiva a Guimarães, nas quais D. Afonso Henriques não teria
espaço onde levantasse gente bastante para vencer as forças da mãe e do
Fernando de Trava.
Antes da batalha, houve actos
de rebelião praticados em 1128 e outorga de diplomas importando uso de autoridade e de independência.
A S. Mamede correu, vivo e audaz, o Portugal altivo e indómito,
alevantado contra o predomínio dos que os barões portucalenses
alcunhavam já de intrusos e estrangeiros: galegos
e leoneses.
Há quem conclua que o estado português nasceu inegavelmente a 24 de Junho de II28 em
Guimarães.
Inegavelmente!
Nego terminantemente que Portugal nascesse na batalha de
S. Mamede, como nego ter quem o afirma nascido no dia
feliz para as letras pátrias − em que fez o seu exame de instrução primária. Venceu ali a sua primeira batalha literária; mas
já foi para a escola vivinho, nado e criado, andando pelo seu pé.
Assim como o Portugal de D. Afonso Henriques já foi para
S. Mamede sabendo andar seguro e erecto, depois de ter, pelo
caminho, dado um foral, feito um conde e até comido um arcebispo comilão
e sôfrego.
Fixemos este ponto decisivo: D. Afonso Henriques não foi levantado como
senhor do condado portucalense, por ter vencido em S. Mamede. Bateu-se em S. Mamede, porque se tinha
erguido como senhor das terras herdadas do seu heróico pai.
Nada de inversões.
A autonomia de Portugal foi causa e não consequência da
batalha de S. Mamede.
VI
NEIVA
É impossível com rigor lógico presumir que ambos os castelos
fossem o
primeiro a pronunciar-se, ainda que se não trate
de tomada violenta ou conquista pelas armas, mas de simples e
natural adesão voluntária.
Ora o castelo de Neiva era à beira-mar, entre Viana e
Esposende, para além de Braga e mais ao norte de Guimarães,
alvo indubitável da revolta, por ser a cabeça do condado.
Natural é que pelo sul começasse o pronunciamento, para
avançar, por Neiva e Braga, sobre a capital, durante os meses de Abril a
Junho de 1128.
Nem faria sentido que o levantamento tivesse começado em
Neiva e se estendesse pelo sul até à Feira, para depois retroceder dirigindo-se a
Guimarães. O que é lógico é ter nascido na
Feira e marchar progressivamente para o norte, por Neiva, a
/ 109 /
aproximar-se de Guimarães, então capital do condado e perto de
onde se deu a batalha de S. Mamede.
ANTÓNIO ENES, traduzindo CÉSAR CANTU e ampliando-o no que respeita à
história portuguesa, marca bem o seguimento da revolução de 1128:
rebentou fora de Entre Minho e Douro e alastrou por
Guimarães, Refoios e
Braga (11).
A figura primacial e a elevada categoria de Ermígio Moniz tornam mais
verosímil que fosse o Castelo da Feira o primeiro a manifestar-se.
Era este castelo a cabeça do extenso domínio das Terras de Santa Maria,
desde o Douro até ao Caima e desde o Arda até ao mar, cuja posse andava
havia séculos na família de Ermígio Moniz, que nos aparece de começo ao
lado de D. Afonso
Henriques, assinando os documentos outorgados pelo infante
nesse período, sendo um deles a carta de couto de Braga. Por esta recebe
o arcebispo concessões e privilégios para quando o infante «tenha adquirido as terras portucalenses» e a troco de
«ser seu ajudante». É um pacto de aliança, é o aliciamento
do poderoso prelado e assina-o Ermígio Moniz em terceiro lugar, logo
após o arcebispo favorecido e Sancho Nunes,
cunhado do infante. Portanto, a conivência do Ermígio Moniz era anterior
à do primaz de Braga, mostra-se mesmo vir já de Dezembro de 1127.
Em seguida à posse de
Guimarães, estabelece D. Afonso Henriques a sua
corte e faz seu dapifer ou mordomo-mor o
Ermígio Moniz, preferindo-o ao irmão que fora seu aio, que
empenhara a sua palavra para libertá-lo, no ano anterior, do primo
Afonso VII e que tão idóneo reputava para esse elevado cargo que o
nomeou mais tarde em sucessão do Ermígio.
Confirma a este o futuro Rei o título de família
− senhor das terras de
Santa Maria − nas quais o Egas Moniz, seu aio e fiador, era mandante por
1104.
Porquê?
Algum serviço de alta valia tinha prestado Ermígio Moniz,
maior dedicação que a do célebre e fidelíssimo aio precisava galardoar o
infante e melhor direito mostrara ao senhorio daquelas Terras da Feira.
Tudo isto nos indica que o Ermígio Moniz foi o propulsor da revolta e
que por influência sua o Castelo da Feira foi o primeiro a rebelar-se a
favor do infante.
Se tivesse sido o de Neiva o primeiro a pronunciar-se,
o nome de Egas Mendes, conde de Neiva, não esqueceria entre
/ 110 /
os principais partidários ligados a D. Afonso Henriques, não faltava entre os confirmantes da doação de
Braga, nem tinha capital
importância a conivência de Ermígio Moniz a ponto de o fazer
considerar «a personagem talvez mais influente na revolução»
e de lhe serem dadas tais honras e recompensas.
O Castelo de Neiva, demais, desapareceu
quase por completo, e só dele existe o local nas ribas sobranceiras ao mar.
VII
FARIA?
Pretendeu-se emendar para Faria as referências de ALEXANDRE
HERCULANO e das velhas crónicas à Feira. Devera ser Castelo
de Faria, porque era mais perto de Neiva e andava ligado a este
condado.
Mas está repetidamente nas crónicas
Castelo da Feira e uma
acentua que é em Terra de Santa Maria.
ALEXANDRE HERCULANO leu «Castelo da Feira» e explica ser
este porque Ermígio Moniz foi senhor das Terras da Feira.
Já antes D. Pedro, conde de Barcelos (perto de onde era
o Castelo de Faria), ou o autor do seu Nobiliário, disse que
fôra o Castelo da Feira e acrescentou também, como em resposta
à dúvida de agora: que é em Terra de Santa Maria.
Não pode pôr-se em dúvida a localização do Castelo referido
na crónica e no Nobiliário, porque a terra de Faria nunca teve o
nome de Terra de Santa Maria.
Afirmou-se que o senhorio de Faria andava ligado ao
condado de Neiva e por isso devera tratar-se de ambos esses
castelos. Este argumento periclita em face dum diploma dos
poucos autênticos desse tempo. Torno a copiar de ALEXANDRE
HERCULANO
(12):
«É ele a carta de couto de S. Vicente de Fragoso, no
julgado
de Neiva, dado pelo infante a 4 de Dezembro de 1127
(II non. decemb. 1165) que se acha conforme na data de dia,
mês e ano em dois registos autênticos do Arquivo da Torre
do Tombo (Liv. I de Doaç. de Afonso III, fl. 119 v. − Liv. 9
de Inquiriç. de Afonso III, fl. 63). Há nele a circunstância
de figurar entre os confirmantes Ermígio Moniz, o célebre
conde ou senhor da terra da Feira e o personagem talvez
mais influente na revolução do ano seguinte. Figura aí
igualmente Egas Mendes, conde do distrito de Neiva e o
governador ou alcaide do castelo desse nome».
/ 111 /
Ermígio Moniz já então prima em importância, visto confirmar antes dos
outros.
O senhor de Neiva poderia ser também titular de Faria, mas só o
acompanha o alcaide do castelo de Neiva e não o de Faria. Nada prova ou
sequer indica que, em 1128, este último castelo pertencesse àquele
conde.
Talvez mesmo interviessem o senhor e o alcaide de Neiva por se tratar do
seu julgado.
Esta carta de Fragoso só prova andarem juntos nesse
Dezembro D. Afonso Henriques, Ermígio Moniz, o conde e o alcaide de,
Neiva: − quer dizer o infante e os influentes nos
dois castelos insurgidos no ano seguinte. E é por isso que
HERCULANO a cita, confirmando a sua opinião ou conjectura verosímil de já em 1127 o infante ter praticado actos de rebelião.
Se movimento revoltoso houve no fim do ano de
1127, não deixou mais vestígio do que essa doação − pro remedio anime
mee.
Em seguida D. Afonso Henriques acompanha a
mãe, firmando
com ela a doação a Garcia Garcez em 31 de Março de 1128,
e só depois é que se separou e a insurreição rompeu.
Não tem valor o argumento de, nesse tempo, a Feira se
chamar cidade de Santa Maria; porque as crónicas naturalmente
empregaram o nome do castelo no tempo do seu autor e ainda porque é de
1117 o documento autêntico que diz: na terra de Santa
Maria onde chamam Feira «− ubi vocant Feira»
(13).
Não existe, pois, nem um começo de indício do fantasiado
erro de leitura ou de cópia, da imaginada troca de nomes.
Se, como diz HERCULANO, «arevolução rebentou, não pela
primeira vez, mas só com mais força, na primavera de 1128»
(14),
não pode admitir-se que essa força lhe viesse de se rebelarem
dois castelos entre o mar e Barcelos, numa zona de quatro léguas. O
Castelo de Faria ficava apenas a dezoito quilómetros do de Neiva, a meio
caminho de Guimarães. Não podia ser tão
restrito o território sublevado, visto ter fornecido ao infante forças bastantes para vencer em S. Mamede.
A Câmara Municipal da Feira e a Comissão de Vigilância
pela Guarda e Conservação do Castelo da Feira «no Intuito
de basear o significado histórico deste Castelo, um dos mais belos
monumentos nacionais, submeteram à ponderosa e ponderada apreciação da
Academia Portuguesa da História a seguinte consulta»
|
Fig. 2 − Castelo da Feira. Barbacã. (p. 112) |
«É admissível a dúvida sobre a grafia ou interpretação das
velhas crónicas e do Nobiliário do Conde D. Pedro (Portugaliae
/ 112 /
Monumenta Historica, Scriptores, páginas 26, 29 e 256), pela qual
se pretende que um dos castelos levantados em 1128 a favor de Afonso
Henriques foi o de Faria e não o da Feira?»
/
113 /
Documentavam a consulta o n.º de 26 de Abril de 1939
de "O Primeiro de Janeiro", separatas dos n.os 16 e 17 do Arquivo
do Distrito de Aveiro e do n.º 68 da Portvcale e o n.º da República de 8
de Maio de 1939.
Na sua sessão de 15 de Junho, tomou a
Academia Portuguesa da História
conhecimento
da consulta e respondeu pela
maneira seguinte:
«Tendo esta Academia recebido o ofício de V. Ex.as de 28 de Maio findo, apresentou-o na sua última sessão. Depois de devidamente
examinados os documentos que o instruem, foi esta Academia de parecer
que não são alegadas provas
suficientes para diminuir a
força do que, a respeito da consulta se encontra no volume Scriptores
dos P. M. H. Examinou até o códice Nobiliário do Conde D. Pedro, onde se
encontra bem clara a palavra Feyra».
Além do Nobiliário existente na Torre do Tombo, sede da
Academia Portuguesa da História,
ALEXANDRE HERCULANO leu, interpretou e imprimiu as duas crónicas
exaradas num códice guardado no Porto.
|
|
Fig. 3 − Castelo da
Feira. Pedra de armas agora reposta sobre a barbacã. «O quarto conde
da Feira dom Diogo Forjaz Pereira mandou fazer esta e o relógio
daquela torre na era de 1567. (p. 113) |
Recorremos à indiscutível competência e reputada autoridade do erudito
historiógrafo e distinto escritor Dr. ARTUR DE
MAGALHÃES BASTO, que teve a gentileza altamente significativa
de responder em "O Primeiro de Janeiro" de 19 de Janeiro de 1940, véspera
da tradicional Festa das Fogaceiras, dia solene para o concelho da
Feira.
«O códice a que se faz referência é o citado códice 79 da Biblioteca
Pública Municipal desta cidade.
Não há dúvida de que HERCULANO leu bem; Feira é o que lá está em dois
lugares (fls. 31 e 40): na primeira passagem diz apenas Castelo da Feira; na segunda acrescenta-se
/
114 /
que é em terra de Santa Maria tratando-se duma cópia
dos fins do século XV, feita por ventura sobre cópia de outra
cópia, e assim sucessivamente, poderia ter-se começado por ler Feira em
vez de Faria, e um copista posterior ter
acrescentado àquela palavra o aposto ou continuado «que
é terra de Santa Maria.»
Essa é uma suposição judiciosa e legítima, concordo; mas
não sei de razões que a corroborem eficazmente. Dizer-se que a Feira
ficava longe de Neiva ou que o senhorio de
Faria andava ligado ao condado de Neiva, não me parece,
só por si, fundamento bastante.
E, pelo contrário, para se crer que foi efectivamente o Castelo da Feira que D. Afonso Henriques «furtou» a sua
mãe, há pelo menos dois argumentos que, se não são decisivos, julgo que têm alguma importância: é o primeiro o
facto de ser historicamente verdade que Ermígio Moniz,
Senhor da Terra da Feira, teve papel primacial na revolta de D. Afonso Henriques contra D. Teresa
− donde é legítimo concluir que a Terra da Feira foi «furtada»,
renegou
a vassalagem antiga − e o segundo a circunstância de não serem apenas as
Crónicas Breves de Santa Cruz de Coimbra as que dizem Castelo da Feira, que é em terra de Santa Maria. O
texto, preferido por HERCULANO, do Livro de
Linhagens atribuído ao Conde D. Pedro, repete exactamente a mesma coisa, e o mesmo se lê no exemplar do
dito Livro, da primeira metade do século XVI, que pertenceu à esplêndida Livraria Manuscrita do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra
e hoje se guarda na Biblioteca Pública do Porto (cod. 466/277, fls. XXXV).
Quer dizer: documentos coevos autorizaram HERCULANO a afirmar que o
senhor da
Terra da Feira esteve na citada revolta pelo lado de D. Afonso
Henriques, e as cópias mais antigas e mais
fidedignas que se conhecem do livro e crónicas mencionadas dizem que,
antes da batalha de S. Mamede, o Castelo
da Feira foi «furtado» a D. Teresa. Não terá isto algum
valor?
Na Biblioteca Pública Municipal do Porto, além do cod. 466/277,
há mais três exemplares − cópias de datas mais recentes do mesmo Livro
de Linhagens. É certo que em dois deles (cod. 427/279 bis, fls. 25 v.; e
cod. 262/279, fls. 6 v.) se lê:
«Castelo de Faria », mas com o oposto «que é em Terra de
Santa Maria.» Aqui, porém, é que parece haver razão
para se admitir lapso do copista, desde que se dê como
assente que a Terra de Santa Maria não chegava até às paragens onde
demorava o Castelo de Faria. Note-se mesmo que no cod. 262/279 a palavra
Faria, que se repete numa nota à margem, foi emendada para Feira por
tinta e mão já remotas. »
/ 115 /
Afastada assim a pretensão de erro, continua a poder afirmar-se que no
Castelo da Feira teve princípio o movimento
separatista de 1128 e foi ele o lugar do nascimento da nacionalidade portuguesa, porque lá se ouviu o primeiro grito de
independência de Portugal ao nascer.
VIII
O INFANTE
D. Afonso Henriques revelou carácter, imitando a sobranceria do seu
primo, conde da Galiza e rei de Leão, ao armar-se cavaleiro na catedral
de Zamora, mesmo que se tivesse prestado
a uma farsa dos conjurados
(15) e considerara-se, desde então,
sucessor ao condado do seu pai, por este recebido em prémio de esforços
e façanhas e não como dote da bastarda real.
Não o movia a avidez de apossar-se do mando. Tinha o
empenho de honrar e seguir os desígnios e as propensões inoculadas pelo seu pai no ânimo dos que o serviam e acompanhavam. Ao pretender a autonomia de Portugal, não é um filho
rebelde a insurgir-se contra a mãe, para lhe disputar prematuramente o senhorio das terras que ela recebera em dote. Não.
É o sucessor respeitoso do conde D. Henrique no condado obtido com
serviços e heroísmos, a reclamar a herança paterna,
retida ilegitimamente e submissa, por indevida menagem, ao rei
de Leão, honrando os desígnios do seu pai e seguindo-lhe o
exemplo das suas propensões, a promover a independência a que sempre
tendera e que vinculara nos espíritos rebeldes e indómitos dos barões portucalenses.
Não sou eu que o digo. Li-o
na velha crónica
(16):
«E o principe respondeo: certo, conde, bem devia deus de ueer tal cousa
que me uos queredes deytar da terra de meu
padre que elle ganhou aos mouros. E a madre lhe disse:
minha he a terra ca meu padre elRey dom Affonso ma leixou.»
O condado portucalense era legítima que a D. Afonso
Henriques provinha dum pai heróico. Reputava-se o infante tão
senhor das suas terras como o primo o era dos seus estados da
Galiza e de Leão.
/
116 /
Mas D. Teresa,
... a mãe, que tão pouco o parecia
(17),
alegando que o condado era dote seu, desvairada pelo amor,
rendera-se ao jugo de Fernando Peres de Trastâmara, transferira-lhe todo o poderio sobre as terras portucalenses e iam sendo
substituídos os heróicos companheiros do conde D. Henrique pelos
apaniguados do valido. Afastava o filho, com dizer que só dela viria a
herdar as terras de Portugal, apanágio regalengo
com homenagem ao sucessor do trono leonês.
Era esta subordinação que os guerreiros portucalenses repudiavam e pretendiam impedir.
Não foi, pois, a cobiça do mando ou a antecipação de
herança o móbil da revolta; foi um nobre aspirar à autonomia,
um altivo libertamento de todo este povo de aquém Minho, a
sentir-se extremar dos súbditos dos outros estados cristãos da
península hispânica, pelos seus desígnios e pelas suas tendências,
talvez já insufladas pelo espírito de aventura e de expansão
aurido na proximidade do oceano
(18).
Assim, D. Afonso Henriques não pode considerar-se a causa
nem o incentivo dessa rebelião, mas somente o instrumento dela,
o chefe em quem personificaram
(19) a sua arrogância os barões
portucalenses e os seus homens de armas, insofridos todos em
se emanciparem de galegos e leoneses, que consideravam já
estrangeiros e não só rivais.
O moço infante era, pois, o motivo da oportunidade do
estuar do feitio rebelde e altaneiro dos fidalgos portucalenses,
era o pendão apenas
(20), o símbolo em quem punham o seu
fito de independência e preponderância, não para substituírem
a mãe pelo filho no governo do condado, mas para varrerem
dele galegos e leoneses, que os afastavam e substituíam.
O infante, igualmente posto de parte, tinha ainda outro
motivo de queixa pundonoroso e forte.
A mais desenvolvida das duas crónicas breves conta o caso
assim: D. Teresa casara-se com D. Bermudo de Trava e depois
lha tomou o conde D. Fernando, seu irmão, e casou com ela.
E casou D. Bermudo com uma sua filha e do conde
D. Henrique, que havia nome, Teresa Henriques. E por
este pecado foi
depois feito um mosteiro que chamam Sobrado
(21).
/ 117 /
Este Bermudo não aparece nos sucessos de 1128, e quis rebelar-se, três anos depois, no castelo de Seia, do que o impediu D. Afonso Henriques «cujo prisioneiro foi no recontro de
Valdevez, vindo a acabar, passados anos, monge no mosteiro
do Sobrado»
(22).
Se tais enlaces eram só à face da corrupção da época, pouco importa para
o nosso caso. Quanto menos canónicos e mais impudicos eles fossem, mais
indignariam o infante que de certo não gostava, nem os seus descendentes
e sucessores, que lhe chamassem filho de dona amancebada.
Estas foram as causas
colectivas e pessoais da renovação
da revolta que se vinha de longe preparando.
Este levantamento, este arvorar da signa do infante em pendão de
independência, em troféu de liberdade é que constitui o nascer de
Portugal.
IX
1128
A tentativa de 1127
gorou-se pela invasão de Afonso VII
de Leão e Castela, diz ALEXANDRE HERCULANO
(23).
Forçar-lhe a mão seria
suprimir, na altura própria, as suas palavras
mais pertinentes. Ele não escreveu que a revolução de 1128 se
dilatara só:
«pelo distrito de Guimarães, pelo condado de Refoios de
Lima, pelo território de Braga...»
(24).
As reticências são uma resistência a transcrever o muito
intencionalmente afirmado, são ocultar o que deveras importa ao caso da
interferência do Castelo da Feira.
HERCULANO
prossegue:
«e pelas terras, enfim, dos
nobres que seguiam a parcialidade do infante»
(25).
Antes, ao expor a tentativa de 1127, deixara expresso o que
compreendia nessas palavras omitidas:
«As terras de Portugal em que
dominavam ou influíam os parciais de
Afonso Henriques começaram a rebelar-se»
(26).
/ 118 /
Aqui extensamente ficou o pensamento do grande historiador, que media bem o significado das suas expressões.
As terras em que dominavam ou influíam.
Não foram só as terras no domínio confirmado dos partidários do infante; mas também algumas em que só influíam de
qualquer forma. E uma das mais simples era a de terem pertencido à sua
família, aos seus antepassados; durante sete gerações pelo menos.
Não se confinou na província de Entre
Douro e Minho a revolução.
O Castelo da Feira não era só um baluarte erecto numa
saliência rochosa sobre escassa planície. Era a cabeça das vastas
Terras de Santa Maria, que se alongavam por duzentas e quarenta léguas quadradas, entre os rios Douro, Caima e Arda e o oceano,
interceptando a passagem dos condados de Coimbra e
de Viseu para o do Porto. As Terras de Santa Maria eram
porventura a mais vasta das circunscrições revoltadas; por isso
e pela sua situação, a mais importante.
Não se pode duvidar de Ermígio Moniz, um dos chefes da
revolta, ter sido senhor das Terras de Santa Maria à face de
documentos de 1132, 1134 e 1135, em nenhum dos quais se poderia
confundir a palavra Feira, que lá não existe, com Faria;
nem nunca a de Faria se chamou terra de Santa Maria. Tinha
influência, pois, Ermígio Moniz, inseparável de D. Afonso
Henriques desde 4 de Dezembro de 1127, na terra cujo castelo
é o único existente dos dois que se pronunciaram de começo.
Contra Guimarães marchou o infante
− naturalmente de
longe para perto − e «dirigiu-se à província de Entre Douro e
Minho no mês de Abril»
(27).
Donde viria D. Afonso Henriques?
Está posta de parte a hipótese de ser de Faria, ali perto de
Guimarães, ao dobro da distância de Braga.
De Neiva, à borda do oceano, mais para o norte e pouco
mais longe? Não. Porque, para se dirigir à província de
Entre Douro e Minho, estava para além do Minho ou para o sul
do Douro.
A revolução de 1128, como lhe chama HERCULANO, não foi uma conjura
palatina gerada dentro dos muros duma alcáçova,
foi o levantamento dum grupo de ricos-homens portucalenses,
duma parcialidade importante, provavelmente numerosa, tomando
por insígnia D. Afonso Henriques, por égide o arcebispo D. Paio, mas
cujo verdadeiro dirigente seria Ermígio Moniz, que desde
Dezembro do ano anterior encontramos confirmando os diplomas do infante nas primeiras linhas e depois foi cumulado de
honras e poderio.
/
119 /
Deve ter D. Afonso Henriques partido, para a campanha triunfante em S.
Mamede, da Terra de Santa Maria, a mais vasta
e importante região revoltada, tendo sido o Castelo da Feira o
primeiro a pronunciar-se, o que soltara o brado inicial do movimento, o ninho donde ergueram vão as águias que alcandoraram Portugal ao
nível de nação autónoma e livre.
Nascido assim no Castelo da Feira, vai Portugal, gatinhando,
adquirindo Neiva, entendimentos em Guimarães e a adesão de
Refoios e de Braga, para se pôr de pé no campo de S. Mamede, cortado o
vínculo de suzerania ao rei leonês, entrando, no fim
do seu primeiro dia de glória, em Guimarães a dormir nesse berço da
monarquia, até chegar, de conquista em conquista, ao
baptismo solene de Ourique, à coroação do seu paladino como
rei livre de Portugal liberto. Porque os freires de Alcobaça,
para inventarem
(28) o «somos
livres e temos um rei livre» das cortes de Lamego, tinham-se enfronhado bem no intento dos barões portucalenses do primeiro terço do século XII.
X
QUANDO
Detida ou gorada a tentativa de
1127
(29),
renova-se o levantamento nos primeiros meses do ano seguinte
(30).
É nesta altura que a crónica nos diz:
«entom foy elle pera purtugal,
e a sua madre cassarasse, e
por esta razom alçousse toda a terra a dom affomso amrriques
con sua madre e quando esto vio forçou dous castellos
huum nenha e outro castello da feira»
(31).
A tradição através das crónicas diz certamente quando se rebelaram os dois castelos. Foi quando o infante veio para
Portugal e achou toda a terra alçada com a sua mãe.
O mesmo se lê no Nobiliário do conde D. Pedro.
É de prever que a D. Teresa, ou melhor o Fernando
Peres
de Trava, conde de Coimbra e do Porto, tomasse precauções em vista do
sucedido em 1127 e que toda a terra portucalense estivesse de atalaia,
alçada com a rainha.
Fica perfeitamente indicada a época da sublevação do Castelo da Feira. Foi entre 31 de Março de 1128, depois do último documento
de D. Teresa e do filho, quando este a abandonou
/
120 /
e veio para Portugal − e 27 de Abril, data em que o infante,
já como soberano, confirma o foral de Guimarães.
|
Contrapõe-se serem as crónicas um acerbo de falsidades,
porque até dizem que o infante destes dois castelos fez guerra
ao padrasto e nem o Fernando Peres foi padrasto nem «consta
que tivesse havido combates em Feira e em Neiva entre D. Afonso
e o conde galego.»
Poderá asseverar-se com segurança que o Fernando Peres
não casou com D. Teresa?
Mesmo podendo, isso não destruía a crença
geral, ao tempo dos cronistas, de se ter realizado tal matrimónio ou de
exigir o decoro do trono que se presumisse.
Por haver a decência de mascarar uma circunstância escandalosa não se segue que tudo seja
falso.
|
Fig. 4 − Ara romana
encontrada no Castelo da Feira em 1912. «Ao benévolo deus Tueraeus,
Árcio, filho de Epeico, brácaro, consagrou este monumento (p.
120) |
Põe alguém em dúvida que
D. Afonso Henriques se separou
da mãe? Alguém atribui essa
separação a motivo diverso dos amores dela com o Fernando de
Trava, causa única da preponderância deste? Tais factos são confirmados, assentes, certos. Deixam de ser verdadeiros, porque
se lhes acrescentam pormenores
diversos ou desfigurados?
Não se pode, portanto, tirar argumentos de falsidade das crónicas por
considerarem ou dizerem casamentos essas mancebias.
O que as crónicas não dizem,
nem Duarte Galvão afirma é que
a guerra entre o infante e o galego fosse na Feira ou em
Neiva. O que dizem − e é diverso − é que com estes castelos
guerreou ou destes castelos fez guerra.
Precisamente o que sustento na minha tese: o
Castelo da
Feira foi a base, o ponto de partida, o apoio de D. Afonso
Henriques na guerra contra os partidários da mãe e do Trava.
Dos dois castelos e com os dois castelos, levando a gente que
os guarnecia ou que a eles se pudesse chamar em armas,
é que D. Afonso Henriques, − nascido Portugal livre nesta
convocação, neste levantamento, − o levou ao campo de
S. Mamede a defender a sua autonomia já proclamada, e não
a fazê-la.
/
121 / É certo que o infante, tendo chegado à hoje chamada província do Minho em Abril, só aos 27 de Maio concede couto e
privilégios ao arcebispo de Braga − para quando tiver a terra
portucalense e expressamente para que lhe seja auxiliar − e aí,
nas proximidades de Guimarães, talvez em Neiva, se conserva,
preparando o triunfo, até à batalha de S. Mamede em Junho.
Esperava muito provavelmente a chegada de forças vindas do sul, de mais
longe que as cercanias e redondezas de Braga, como estivera negociando a
adesão e aliança do Arcebispo.
Vejamos, no entanto, o que se prova ter feito D. Afonso
Henriques nesse intervalo.
XI
TÍTULO
Entre a última escritura firmada pela
mãe e pelo filho, a
doação a Garcia Garcez em 31 de Março de 1128 e a batalha
de S. Mamede, conhecem-se três documentos de D. Afonso Henriques.
Enumera-os ALEXANDRE HERCULANO:
|
|
Fig. 5 − Ara romana
encontrada no Castelo da Feira em 1917. «A Bandevelugo Toiraeco,
Lúcio Látrio Blaeso cumpriu de boa mente o voto feito (p.
121) |
«O primeiro diploma do
infante é o foral de Guimarães (27 de Abril) já citado na nota
antecedente; o segundo é a nomeação de Mendo Afonso para conde do
distrito de Refoios; o terceiro é a carta de couto de Braga
em
recompensa dos serviços que esperava de D. Paio»
(32).
Argumenta-se que não há
um único diploma anterior a 24 de Junho de 1128 em que D. Afonso Henriques se declare
senhor do condado.
O que há são estes três; mas
chegam para desfazer o equívoco.
Que qualidade se arrogava D. Afonso Henriques ao conceder forais e ao
nomear condes? A de filho submisso da senhora
das terras portucalenses não, de certo.
/ 122 /
Se no terceiro diploma põe no futuro a posse dessas terras,
não deixa de praticar um acto de senhorio delas, coutando e
concedendo privilégios ao arcebispo. Não estava na posse completa do condado, mas mostrava-se senhor dele e, mais ainda,
praticava actos de domínio e soberania.
Nesses três documentos, como já na doação a Garcia Garcez,
D. Afonso Henriques denominava-se só infante, filho do conde
D. Henrique e da rainha D. Teresa, ou só desta, ou também
neto de Afonso 6.º. E só infante continua a dizer-se nos diplomas posteriores, sem se denominar nunca senhor do condado.
É JOÃO PEDRO RIBEIRO quem o ensina:
«É tão constante o título Infans nos diplomas até a Era 1173
(ano de 1135), como se vê dos números seguintes, que este
(a carta de couto de Coja de 3 de Setembro de 1128, do
livro preto da Sé de Coimbra), e alguns outros diplomas,
em que o senhor D. Afonso se intitula Princeps, fazem entrar em dúvida a
exactidão da sua data»
(33).
O estado português já existia, portanto, ao lavrar-se a carta
de couto de Braga, visto que o seu magistrado já assim se considera e como tal outorga.
Em 3 de Setembro seguinte (na referida carta de Coja,
cuja data parece a João Pedro Ribeiro antecipada), D. Afonso Henriques
não sé desdiz das suas afirmações de competência e soberania, antes as
confirma naquela palavrinha «totius». Já é
príncipe de toda a província portucalense, o que confirma ter
sido antes senhor de parte dela, da porção a seu favor rebelada.
Aqui está, portanto, um fundamento mais da tese de Portugal ter nascido antes de 24 de Junho de 1128 e de ter ido já
vivo e separado da mãe, armado em guerra e tão robusto que
venceu, para o campo de S. Mamede, junto do castelo de Guimarães, mas fora
deste e da cidade, onde nascera o futuro rei.
XII
ERMÍGIO MONIZ
O personagem talvez mais influente dos rebeldes era Ermígio
Moniz, da família dos possuidores das Terras de Santa Maria e
alcaides mores do Castelo da Feira, cabeça delas. Irmão do leal
aio do infante, aparece-nos seu dapifer ou mordomo-mor, antes de lhe
suceder neste cargo o irmão Egas Moniz, que criara
D. Afonso Henriques e lhe fora fiador em 1127, mas que só
figura como dapifer de 1139 a 1145.
/
123 /
Muito maior serviço prestara o Ermígio ao futuro rei do que ir de corda
ao pescoço desempenhar-se da palavra que por este dera. Muito mais fizera por
ele do que criá-lo e instruí-lo.
É também no Ermígio que se radica o senhorio das Terras de Santa Maria
ou da Feira, há sete gerações na posse da família, apesar de só os
irmãos Egas e Mem nos aparecerem mandando nessa comarca por 1104
(34).
Impõe-se que Ermígio Moniz
fosse o propulsor da revolta, o primeiro a
pronunciar-se no Castelo da Feira a favor do filho
do conde D. Henrique, na rebeldia que acaudilhava, em que
erguera por símbolo o infante, mas cujo fito era a libertação do
território portucalense da soberania do reino leonês e da preponderância de intrusos e estranhos. Temos de admitir que Ermígio Moniz,
− herói envolto no bolor dos códices, vulto
sumido nas engelhas dos pergaminhos amarelentos, protagonista olvidado pela ingratidão dós tempos, nome confuso nas
entrelinhas de genealogistas pechosos − foi o principal fautor do
levantamento de que surgiu a pátria portuguesa. Inverteu D. Afonso
Henriques de filho rebelde em paladino duma independência ansiada, não
pensando de certo na nacionalidade incipiente
e auspiciosa, mas querendo a livre acção nos seus domínios.
Aproveitou o ensejo para transformar uma rixa de família na
aurora da consolidação duma autonomia sonhada pelo conde D. Henrique.
Dirigiu toda a trama da revolta, reunindo forças,
apadrinhando benesses, predispondo os de Guimarães pela confirmação prévia do foral, em recompensa dos serviços do ano
anterior, a evidenciar-lhes a cumplicidade, e embaindo o ambicioso arcebispo bracarense. Fez-se, assim, não só o braço
direito, mas a cabeça directriz do partido do infante.
Portanto, a dedução lógica e concatenada leva-nos ao convencimento de
ter nascido no Castelo da Feira a revolução dos ricos-homens em
1128, da
qual «derivou a separação definitiva
de Portugal e a consolidação da autonomia portuguesa»
(35).
No Castelo da Feira teve assim início a nossa nacionalidade.
A grande distância de ser
este célebre conde ou senhor da
terra da Feira o personagem talvez mais influente na revolução
a ser o primeiro iniciador e principal executor do movimento
de 1128 (e não de outro anterior e sem êxito) torna-se pequena e
vence-se facilmente raciocinando um pouco.
Quem seria o chefe da revolta de
1128, triunfante e de que
resultou a independência nacional?
«Afonso Henriques era o pendão apenas
− hipótese que a sua curta idade
justifica − da revolta»
(36).
/ 124 /
O cavalheirismo de Egas Moniz não seria perfeito, se ostensivamente se cumpliciasse com os desígnios de Afonso Henriques, diz um dos meus opositores e concorda também que o cunhado
Sancho Nunes seria uma figura decorativa.
O arcebispo D. Paio, a quem HERCULANO chama rude, andava
tão afastado do movimento, que só pouco antes da batalha decisiva o infante lhe concedeu o couto de Braga para que o ajudasse. Bem se vê que não era o chefe.
O Soeiro Mendes, se não
fosse tão rude como o irmão, não
deixaria, por mais matreiro, estampar na carta de couto aquelas
palavras «ut sis adjutor meus» que põem à mostra não só a coroa, mas a
calva do padre, nem precisaria antecipar a dádiva,
se, como chefe da revolta, dispusesse do cofre das graças.
Nessa carta de couto assinam primeiro o arcebispo contemplado, a seguir o marido da irmã do infante e logo depois
Ermígio Moniz. Segue-se Garcia Soares e só na quinta linha
confirma o Soeiro Mendes.
O arcebispo teve precedência por ser um dos contraentes e pela dignidade eclesiástica.
O Ermígio Moniz tem um lugar de honra, porque acima
dele na comitiva do infante só se interpunha, pela chegada afinidade, a figura decorativa do cunhado Sancho Nunes. E esta uma das
bases que tornam verosímil a minha conjectura de ser
o Ermígio Moniz o chefe e o iniciador do movimento de 1128.
XIII
FAMÍLIA
Esclareçamos dois pontos postos em dúvida: a influência
de Ermígio Moniz nas terras de Santa Maria ou da Feira,
em 1128, e a família a que ele pertencia.
Costumado a apreciar os homens pelo valor pessoal, pelos
seus feitos e pelas suas obras, sou um tanto avesso a meticulosidades de árvores de costados e de parentescos remotos e
revelhos; mas o meu predecessor na Comissão de Vigilância do
Castelo da Feira, Dr. AGUIAR CARDOSO, com a sua paciência de
beneditino e o seu justo critério de investigação histórica, deixou
elementos para apurar a ascendência dos irmãos Moniz, cuja
autenticidade explica nestas palavras:
«Devo dizer que esta genealogia não é cópia dos livros de
linhagens, tanta vez indocumentados, e, por isso, não poucas
vezes pejados de erros. Não é nada disso. Desfiei-a eu
próprio nos documentos autênticos que com pulsei e confrontei quando escrevi as Memórias do Concelho da Feira»
(37).
/ 125 /
«Podemos portanto reconstituir por esta maneira indubitável
a família de D. Ero até à quinta geração, segundo os autênticos
documentos aqui apresentados:
1 − D. Ero casado com D. Adozinda teve filhos D. Gundosindo Erotis
casado com D. Andrequina Pala (P. M. H. n.º 12) e D. Egas Erotis (P. M.
H. n.º 384).
2 − D. Egas Erotis teve filhos: D. Múnio Viegas, o primeiro
deste nome e D. Gonçalo Viegas (P. M. H. n.~º 384 e doc. de 1012 − nota: escritura de 10 de Junho de 1012
citada pelo Dr. JOSÉ JÚLIO GONÇALVES COELHO em Notre Dame
de Vendôme edição de 1907).
3 − D. Múnio Viegas, o primeiro
deste nome, teve filhos: D. Egas Moniz,
primeiro do nome nesta família, casado
com D. Toda, .e D. Garcia Moniz, morto na reconquista das
Terras de Santa Maria (P. M. H. n.º 465).
4 − D. Egas Moniz, casado com D. Toda teve filhos:
5 − D. Múnio Viegas, segundo do nome,
casado com
D. Unisco (P. M. H. n.os 464 e 473) e D. Ermígio»
(38).
Agora examinemos mais documentos com AEXANDRE HERCULANO.
«São eles três pergaminhos de Pedroso... numerados 38,
55 e 57... Consta deles que um certo Egas Erotis, pessoa
principal no distrito portucalense entre Douro e Vouga, se
retirara para o norte, quando AI Manssor restabeleceu na
Beira o domínio de Córdova. Reconquistada por Afonso V
uma porção do território ao sul do Douro, Egas Erotis
voltou ali e recobrou o senhorio dos vilares e aldeias que
lhe pertenciam vindo a falecer no reinado de Bermudo III.
Seu filho Gonçalo Ibn Egas, casado com D. Flâmula, e que
já possuía por si e por sua mulher vários bens naqueles
sítios, reuniu a eles os de seu pai»
(39).
O documento 384 dos Portugaliae Monumenta Historica
e 19 das Deduções Chronológicas conta-nos como Egas Erotis, pai
deste
Gonçalo, do Múnio Viegas e dos bispos, foi com medo
dos moiros para o Minho abandonando quanto possuía entre Douro e Vouga.
O Gonçalo Viegas ou Ibn Egas, o que
quer dizer Gonçalo filho de Egas,
foi o senhor do MarneI e transaccionou propriedades aí e em Lamas com o conde das Terras de Santa Maria, Mem
Lucídio (40). São ambos indicados na tradição como reedificadores da Feira no local da antiga Lancóbriga
(41), dando-lhes
/ 126 /
por companheiro o conde Mem Guterres. Mas este, aliás chamado duque, era cunhado duma rainha de Leão e pai da
D. Endrequina Pala, casada com Gundosindo Eris ou Erotis e
doutra rainha de Leão
(42) e, portanto tio-avô por afinidade
do
Gonçalo Viegas do MarneI, contemporâneo, como se viu, do
Mem Lucídio que aparece em documentos de 1014 a 1050.
O Gundosindo, genro do Mem Guterres, era viúvo em 897. Podia o sogro viver ainda, mas não podemos considerá-lo vivo
mais 150 anos para coexistir com os outros dois.
Ou houve duas reedificações da Feira, ou o duque Mem
Guterres não entrou nisso.
Voltemos à descendência do Egas Erotis.
3 − O seu filho Múnio Viegas,
o primeiro do nome, foi
chamado o Gasto, como quem diz o Gasco, porque veio com a
armada dos Gascões reconquistar o Porto, trazendo consigo dois
irmãos bispos, um D. Sesnando, bispo do Porto, e outro D. Inigo,
Enego ou Nónego, bispo da Vandoma (?!) e os filhos.
[Obs.: Ver ERRATA no final desta
página]
Como fica dito, um neto
deste Múnio Viegas usou o mesmo
nome do avô e casou com D. Unisco e o outro neto chamou-se:
5 − Ermígio Viegas
(43) e é seu filho:
6 − Múnio Ermigues, governador do Põrto
(44), casado com
D. Ouroana, como diz o Nobiliário do conde D. Pedro, ou com
D. Valido Trocosendes, como diz o Livro Velho de Linhagens.
Tiveram quatro filhos:
7 − Mem Moniz, morto na
tomada de Santarém
(45);
7 - Egas Moniz, aio de D. Afonso Henriques e, com
o
irmão Mem, mandantes in Arauca et Terra de Sancta Maria,
quando o pai governava o Porto
(46);
7 − Martim Moniz, morto na batalha de Ourique, pessoa
diversa do primo atravessado na porta do castelo de Lisboa; e
7 − Ermígio Moniz, mordomo da cúria de D. Afonso
Henriques de 1130 a 1136 e senhor das Terras de Santa Maria.
|
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Fig. 6 − Castelo da Feira. Terrenos onde se está abrindo a estrada
envolvente (p. 127) |
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Que todos quatro eram irmãos provam os diplomas 35 e 37
das Dissertações Cronológicas de 1116 e 1123. No primeiro (transcrito
por VlTERBO no verbo − jantar −) o bispo D. Hugo
cede um direito na vila de Palacíulo (talvez Paços de Brandão
/ 128 /
do concelho da Feira) por amor de Egas Moniz, de Mem Moniz
e de Ermígio Moniz e das respectivas mulheres. No segundo
diz-se claramente que os três são filhos e netos de Múnio Viegas
e Ermígio Viegas. Não tem importância o erro do patronímico
do pai, visto citar-se o avô. Era Múnio Ermigues, por ser filho de
Ermígio, como este era Viegas por ser filho de Egas Moniz,
o Gasto. Até o diploma mostra o motivo do nome dos dois
irmãos: um Ermígio como o avô e o outro Egas como o bisavô
em quem coincide o patronímico.
A influência dos descendentes do Egas Erotis e do Gundosindo Eris, filhos do conde D. Ero e da condessa D.
Adozinda de
Montoroio, é incontestável nesse vasto território de ente
Vouga e Douro, onde fundam e dotam mosteiros como Grijó,
Pendorada e Cucujães.
Desde que foram reconquistadas, não saíram essas
Terras
de Santa Maria da Feira da descendência de Egas Erotis até
aparecerem sob o mando dos seus quartisnetos Mem e Egas
Moniz, o aio, por 1104.
XIV
MAIS FAMÍLIA
Sigamos agora um Nobiliário da Casa do Costeado de
Guimarães, corroborando-o, quanto possível, por documentos
autênticos.
2 − Aquele Gundosindo Erotis ou Eris lançou os moiros
das Terras de Santa Maria que povoou, fundando a maior parte
das igrejas que aí há e, casado com D. Andrequina Pala, filha
do duque Mem Guterres (um dos indicados reedificadores da
Feira no sítio da antiga Lancóbriga), tiveram
(47) um filho:
3 − Soeiro Gundosendes ou Gosendes que sucedeu ao
seu
pai nas Terras de Santa Maria e teve três filhos:
4 − Guterre e Ausindo doadores do mosteiro de Grijó
(48) e
4 − Nuno Soares, o Velho, fundador
desse mosteiro em 922
e que defendeu dos moiros a Terra de Santa Maria. Casou
e teve:
5 − Soeiro Nunes despojado por Almansor das suas Terras da Feira. Casou
e teve:
6 − Formarígio Soares que tornou a conquistar a Terra
de Santa Maria e foi pai de:
7 − Soeiro Formarigues, casado com
D. Elvira Nunes
/
129 / Vol.V1-N.O.2-1940
Áurea, morto em 1110 no combate de Vatalandi
(49). Foram
pais de:
8 − Nuno Soares
(50), Soeiro Soares, Pelágio Spares,
casado com uma
neta de Múnio Viegas
(51), Pedro Soares, Ero Soares,
Maior Soares, Toda Soares e Salvador Soares
(52).
Todos estes são os Soares de Grijó, assim chamados porque o pai Soeiro
Formarigues e eles foram doadores a esse célebre mosteiro.
Assim nos fica outra série de referências à perda, reconquista e posse
das Terras de Santa Maria por descendentes do conde D. Ero.
XV
FURTADOS OU FORÇADOS
É inane o argumento de que a tradição refere ter D. Afonso
Henriques «furtado» dois castelos e, tendo Ermígio Moniz por seu o da
Feira, escusar de furtá-lo.
Ainda que Ermígio Moniz já
fosse, em começos de 1128, senhor do Castelo
da Feira, havendo prestado dele menagem à D. Teresa, levantando-se a
favor do infante, furtava-o ao senhorio de quem lho confiara, lho dera
ou lho confirmara.
Ora o furtado é termo do Nobiliário do conde D. PEDRO que ALEXANDRE
HERCULANO transcreve grifando e, portanto, não adopta, antes estranha ou
pretende acentuar. E refere-se a D. Afonso Henriques que furtou sem
dúvida à mãe os castelos da Feira e de Neiva, aceitando o
pronunciamento dos senhores portucalenses a seu favor e para tirar à D.
Teresa o governo do condado sujeito a Leão e transformá-lo no Portugal
independente e autónomo, de que veio a ser rei.
Mas aparece-nos, por então, como senhor titular das Terras de Santa
Maria, depois da morte do conde D. Henrique, um estranho à família de Ermígio Moniz, na qual se conservara o senhorio dessa região e a
propriedade ou o domínio de muitos bens nela situados, havia sete
gerações pelo menos.
O diploma que nos revela essa usurpação:
«É uma doação a Gonçalo Gonçalves, de II das calendas de Junho da era
1150 (Doc. de Pedroso no Cart. da Fazenda
/ 130 /
da Universidade) feita pela infanta D. Teresa, aparecendo entre os
confinantes:
Post morte de illo comes Henricus, Petrus Gundisalvis confirmo et tenebat
ipsa civitas S. Maria.
Esta fórmula de confirmação é singular, não sendo fácil encontrar outra
semelhante em que se aluda à morte do imperante que deixou de existir.
Admitindo, porém, o diploma como genuíno, pode supor-se a confirmação
posterior, ou antes, segundo nos parece, cumpre que assim o pensemos,
aliás fica inútil a declaração do confirmante, que nas palavras «post
mort de illo comes Henricus» evidentemente quis marcar uma época diversa
daquela em que fora exarado o diploma, isto é, uma época incerta,
posterior a 1112 de muitos ou poucos anos»
(53).
No texto deste diploma há, a explicar a confirmação de
quem tivesse o governo das Terras de Santa Maria, este trecho:
«et est ipso Monasterio in loco predicto Villar subtus mons
Maior discurente ribulo Februs territorio Sanefa Maria de Civitate
(54).
Não estará aqui o fio da meada? Não seria
este governo
das Terras de Santa Maria entregue a outrem a causa que atirou, depois
da morte do conde D. Henrique, os filhos do Múnio Ermigues para o
partido do infante?
Os povos dessas terras, vassalos tradicionais daquela família, a ela
ligados por interesses de colonos e rendeiros com os proprietários e
enfiteutas dos seus casais, tenderiam certamente a libertar-se do mando
dum intruso e seguiriam de bom grado aquele dos seus tradicionais
senhores que se propunha enxotar estranhos e estrangeiros da autoridade
local e da preponderância no território portucalense.
O senhorio das Terras de Santa Maria reconhecido ao Ermígio Moniz (ainda
com mais acentuada preferência sobre o aio) pelo grato D. Afonso
Henriques transmuda-se assim, de
merecida recompensa, em justa restituição.
Nesta hipótese cabe bem o termo «furtar».
Ermígio Moniz influía naquela região, era querido daqueles
povos, parente dos donos dos seus lugaree e casais e isso lhe facultou
insurgi-los e o furto do Castelo da Feira.
Ora se o «furtar» não tivesse cabimento para o Ermígio
Moniz, a respeito deste castelo, menos o tinha com respeito ao
/ 131 /
de Neiva, cujo alcaide e cujo conde confirmaram (conjuntamente com o
Ermígio Moniz, que só invocou o senhorio de Santo Estêvão) a carta de
couto de Fragoso a 4 de Dezembro de 1127. Se a confirmação em tal
diploma é sinal de estarem
já os confirmantes feitos e entendidos com o infante para um
movimento autonomista, o alcaide de Neiva não tinha que furtar o seu
castelo, tendo de mais a mais ao seu lado no mesmo
partido o conde que nele delegara o comando.
XVI
DAPIFER
No Bobo HERCULANO fantasiou Egas Moniz
dapifer em 1128,
na véspera da batalha de S. Mamede, quando ainda nem Ermígio Moniz o
era.
É fantasia de romancista que bem longe está de ser
erro − de historiador.
Foi-me, porém, oposto, como
argumento fundamental, que:
«Já depois de 7 de Dezembro de
1127, o Ermígio Moniz
que confirma a carta de couto invocada por HERCULANO, confirma
igualmente, e como Mordomo da Cúria, a segunda doação do castelo e
terras de Soure aos Templários, feita
por D. Teresa, em 29 de Março de 1128 (in Fr. BERNARDO
DA COSTA, História da Militar Ordem... de Cristo, doc. n.º I)»
Previamente, tomemos o peso ao argumento.
Sendo de 31 de Março de 1128 o último diploma da
D. Teresa com intervenção do filho, como diz HERCULANO na
citada página 496, que importância tem a hipótese de, dois dias antes, o
Ermígio ter confirmado a segunda doação de Soure aos
Templários?
Acompanhando o infante no séquito da
mãe, podia ter ensejo
de assistir aos actos de soberania da D. Teresa, sendo amigo,
partidário, confidente e conselheiro do filho e estando decidido
até a revoltar-se com este, logo que se apresentasse oportunidade, como
já tentara ou tinha começado a fazer.
Não punha isso mácula no carácter e integridade moral do
audaz rebelde, nem constituía mesmo prova de inconstância no seu credo
político, inalterável e persistente, como se demonstra desse próprio documento. Já em 4 de Dezembro de
1127 a
revolta se manifestara, como anteriormente em Guimarães, ao
tempo de Afonso VII vir cercar a cidade e Egas Moniz o dispor a erguer o
cerco com a sua fiança. Sucederam-se as tentativas
precursoras, mas só a de 1128 vingou, talvez começando mais
forte, mais vasta ou melhor organizada.
/ 132 / Ora eu desconfio que o Ermígio Moniz não acompanhou
mais a D. Teresa depois da morte do conde D. Henrique e que não confirma
nenhum diploma dela nesse intervalo.
Mas o espantoso era imputar-se a qualidade de mordomo mor de D. Teresa a
Ermígio Moniz, desde que VITERBO, o cauteloso e seguro VITERBO, que fala
três vezes no seu Elucidário
dessa bisada doação, que mostra conhecer tal documento, afirma
textualmente na lista dos mordomos mores:
«VI − Ermígio Moniz − principiou com o governo do Infante,
ou Príncipe D. Afonso Henriques; mas não em o ano
de 1128... Mas não tardara que o fosse... Desde 1130
até 1136 são muitas as cartas em que se encontra o Mordomo Mor Ermígio Moniz.»
Não tive à mão a obra do frade, para verificar a referência,
mas corri ao Dicionário Bibliográfico do INOCÊNCIO a indagar do
frei BERNARDO DA COSTA e lá decifrei a charada:
«285) História da militar ordem de Nosso Senhor Jesus
Çristo, Tomo I, Coimbra, of. de PEDRO GINIOUX, 1771 −
Este volume, único publicado... cujas notícias são autenticadas com documentos... Estes documentos, porém, segundo
afirma JOÃO PEDRO RIBEIRO nas Observações Diplomáticas,
pág. 85, estão inquinados de erros, porque o autor se aproveitou para transcrevê-los das cópias que, no tempo e por
ordem del rei D. Sebastião, fizera o desembargador Pedro
Alvares Seco, as quais foram extraídas com o maior asseio e limpeza, mas
sem nenhuma exactidão.»
Entre quem nele se estriba e JOÃO
PEDRO RIBEIRO que o
exautora, não há que duvidar. Fiei-me no escrupuloso escritor do século
XVIII e pus de quarentena o frade contaminado de inexactidão pelo Dr.
Seco.
GAMA BARROS conta-nos o caso sucintamente:
«Passaram-se dois diplomas no mesmo mês: um a 19
doando o castelo e terra de Soure, outro a 29 confirmando
a doação e marcando os limites da terra. E no ano seguinte, 1129, o príncipe D. Afonso fez igual doação aos templários,
mas sem mencionar as que fizera sua mãe, provavelmente porque não as
tinha por válidas»
(55).
Isto apurei num momento; mas seguidamente pus-me a
desenvencilhar o caso e vim ao conhecimento de que a tal
/
133 /
segunda doação de Soure pela D. Teresa é simplesmente falsa.
Li a nota 2 da página 65 dos
Documentos Falsos de Santa Cruz de Coimbra
publicados em 1932 pelo Dr. RUY DE AZEVEDO, onde diz, errando a data,
como a todo o bom académico pode acontecer:
«A doação de Some aos Templários pela rainha D. Teresa em Abril (aliás
29 de Março) de 1128 é, como reconheceu ERDMANN, falsificação do diploma
original de Março (dia 19) do mesmo ano. O fim da fraude foi, cremos
nós, intercalar no diploma os limites que esse castelo teve depois de 1147.»
Folheei o volume I da História da Expansão Portuguesa no
Mundo do mesmo autor, onde, a páginas 23, se confirma isto, já com a
data certa:
«Os limites do castelo de Soure, saído do território de Coimbra,
aparecem-nos descritos pela primeira vez em falso
diploma da referida doação de D. Teresa, datado de 29 de Março de 1128
(dez dias posterior ao verdadeiro). Já noutro lugar apreciámos os
motivos da fraude, que deve remontar ao final do século XII.»
Metido neste assunto e sem pretensões a historiador que
me obriguem a seguir os estudos portugueses espalhados pelas revistas
alemãs, vi-me forçado a conhecer CARL ERDMANN, autor dos Papsturkunden
in Portugal e a ler dele Der Kreuzzugsgedanke in Portugal a que se
refere o citado Dr. RUY DE AZEVEDO.
Trabalho escusado seria esse, porque nenhum estudioso de assuntos
históricos deixou passar despercebida a publicação em Coimbra, no ano de
1938, das Chancelarias Medievais Portuguesas e lá, a páginas 21, a
doutora ABlAH REUTER ensina a sábios e leigos:
«Não há na verdade razão para ter sido lavrada uma segunda doação de D.
Teresa. Tal doação é manifestamente falsa pelo simples facto de
mencionar como confirmantes o bispo de Coimbra D. Bernardo e o dapifer
Ermígio Moniz, pois o primeiro só foi eleito e o segundo só teve o cargo
depois de Afonso Henriques se ter apossado do governo. A indicação dos
termos, omitida na primeira, mostra que foi forjada por ocasião de
alguma dúvida com os vizinhos quanto a delimitações.»
O diploma de frei Bernardo considera-se falso em Portugal
e no estrangeiro e já fora desprezado por VITERBO.
/
134 /
Quando cheguei a esta conclusão, foi como se me nascesse
uma alma nova. Ressurgia-me puro da culpa do bandalhismo político, de
troca-tintas do século XII o meu herói. É que Ermígio Moniz, irmão do
fidelíssimo e dedicado aio, desse protótipo de português primitivo,
nobre, heróico, íntegro e inflexível, não desmerecia da progénie e
avulta-se digno de encarnar as aspirações separatistas e grandiosas do
conde D. Henrique, o progenitor incontestável da independência das suas
terras, da autonomia de Portugal.
A sua figura histórica fica bem imponentemente erguida no recanto do
castelete do vetusto Castelo da Feira a empunhar a signa branca com a
cruz azul do infante e a inspirar-nos a afirmativa, cada vez mais confirmada:
− AQUI NASCEU PORTUGAL.
Feira, 10 de Março de 1940.
VAZ FERREIRA
_____________________________________________________
(1) − CAMÕES, Lusíadas, III, XXIX.
(2) −
História de Portugal, I, 276.
(3) −
Ibidem, I, 286.
(4) − Panorama VII, pág. 37 - 2.ª edição, pág. 38.
(5) − Panorama VII, pág.
38 - 2.ª edição, pág. 45.
(6) − Panorama VII,
pág. 45 - 2.ª edição, pág. 61.
(7) − Panorama VII, pág.
39 - 2.ª edição, pág. 51.
(8) −
História de Portugal, I, 287.
(9) − CAMÕES, Lusíadas,
II, XIV.
(10) − O
Bobo, 7ª edição, pág. 12 e 13.
(11) − ... «depois de ter feito antecipadas mercês ao metropolitano,
dirigiu-se em armas à província de Entre Minho e Douro... A revolução
alastrou logo pelo distrito de Guimarães, pelo condado de Refoios de
Lima, pelo território de Braga; Teresa, que segundo parece estava
ausente quando ela rebentou... ». −
História Universal, de CÉSAR CANTU, X, 355.
(12) − História de
Portugal, I, 495.
(13) − JOÃO PEDRO RIBEIRO,
Dissertações Cronológicas, I, 243, doc. XXXVI,
citado por ALEXANDRE HERCULANO, História de Portugal, I, 241.
(14) −
História de Portugal, I, 495.
(15) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 283.
(16) − Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, 26.
(17) − CAMÕES,
Lusíadas, IlI, XXXI.
(18) −
ALEXANDRE HERCULANO, O Bobo, 2.ª edição, 12 e 13.
(19) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 286; ANTÓNIO ENES e
CÉSAR CANTU, História Universal, X, 355 e 356; MODESTO LAFUENTE,
Historia
General de Espana, III, 313.
(20) −
OLIVEIRA MARTINS, História de Portugal, I, 65.
(21) −
Port. Mon. Hist., Scriptores, 26.
(22) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 299.
(23) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 284.
(24) − Ibidem, I, 287.
(25) − Ibidem mesma página.
(26) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 284.
(27) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 287, e ANTÓNIO ENES e
CÉ5AR CANTU, História Universal, X, 355 (vide nota II).
(28) − COELHO DA ROCHA,
Ensaio sobre a história do governo e da legislação
de Portugal, 45.
(29) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 284.
(30) − Ibidem, I, 286; ANTÓNIO ENES e CÉSAR CANTU,
História Universal, X,
355.
(31) − Portugaliae Monumenta Historica, ScriPtores, 26.
(32) − História de Portugal,
I, 496.
(33) −
Nota 3, a páginas 94 das Dissertações Cronológicas.
(34) − JOÃO PEDRO RIBEIRO,
Dissertações Cronológicas, doc., 124. III, 42, Monarquia
Lusitana, lI, Liv. 7, Cap. XXX, 545, col. 2.
(35) − ALEXANDRE HERCULANO,
O Bobo, 2.ª edição, 9.
(36) −
OLIVEIRA MARTINS, História de Portugal, I, 65.
(37) − Migalhas de história no concelho da Feira, no
"Correio da Feira", n.º 1530 de 5 de Março de 1927.
(38) − AGUIAR CARDOSO,
Memórias do Concelho da Feira, XXXI.
(39) − História de Portugal, III, 428.
(40) − Portugaliae Monumenta Historica, doc. 276, 378, 384 e 549.
(41) − PINHO LEAL,
Portugal Antigo e Moderno, III, 155, 1ª col.
(42) − Portugaliae Monumenta Historica, doc. 12;
VITERBO, Elucidário, lI,
33, verbo Igreja; ANTÓNIO CAETANO AMARAL, Memórias de Literatura
Portuguesa, VII, pág. 139, nota 157; e História Genealógica da Casa
Real, pág. 50.
(43) − Portugaliae Monumenta Historica, doc. 464 e 473.
(44) − JOÃO PEDRO
RIDElRO, Dissertações Cronológicas, doc. 124
(45) − Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pág. 28.
(46) − JOÃO
PEDRO RIBEIRO, Dissertações Cronológicas, doc. 124, III, 49.
(47) − Portugaliae Monumenta Historica, doc. 12.
(48) −
Ibidem, doc. 26.
(49) −
ALEXANDRE HERCULANO, História de Portugal, I, 219; Portugaliae
Monumenta Historica, doc. 722, 842, 902 e 921.
(50) −
Portugaliae Monumenta Historica, doc. 545.
(51) −
JOÃO PEDRO RIBEIRO, Dissertações Cronológicas, doc. 37.
(52) −
VITERBO, Elucidário, II, 139, verb. Passaes.
(53) − ALEXANDRE HERCULANO,
História de Portugal, I, 484 e 485.
(54) − JOÃO
PEDRO RIBEIRO, Dissertações Cronológicas, doc. 33.
(55) −
História da Administração, I, 362.
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