III
A
existência de uma mamoa e um castro pré-romanos nos
limites actuais de Fiães, leva-nos muito naturalmente a
deduzir este corolário: o actual território de Fiães era já habitado nos
tempos pré-históricos.
Nos fins da proto-história, é muito verosímil que os celtas fundassem
nas vizinhanças do velho castro a civitas Lancobriga, que adquiriu
grande importância na segunda metade da época romana, isto é, nos 2.º,
3.º e 4.º séculos da era de Cristo.
É fora de dúvida que na primeira idade do
Período histórico, a civitas,
que tinha assento no monte Redondo de Fiães, foi a capital de todas as
vilas, casais e quintas desta região. O espólio arqueológico ali
descoberto não nos permite quaisquer hesitações a este respeito.
Com a invasão dos bárbaros do norte no século
V, é muito provável que a cividade de Fiães, ou se chamasse Lancóbriga
ou tivesse outro nome, − fosse arrasada, saqueada e queimada.
Nos escombros dos dois edifícios desobstruídos em 1925, apareceram travejamentos
carbonizados.
Está-se na alta Idade Média.
No princípio do século VIII, os mouros invadem a Península
Hispânica, não sendo poupado o actual território português.
Começa agora o período da reconquista cristã ou neo-gótico: e quando
este atingira o seu apogeu, surge-nos a terra de Fiães, com sua igreja,
passal e cura de almas. Fala-nos da «igreja de Fiães ad integram» um
documento do Cartório de Pedroso, escrito em pergaminho na segunda
metade do século XI (1079). Essa carta autógrafa encontra-se no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo e foi inserta nos Dipl. et Chart. dos P. M.
H.,
sob o n.º 567.
Vamos transcrevê-la, quase na íntegra.
«Bona quamplurima tam eclesiastica quam secularia
FIamula Suariz Petrosensi monasterio testamento legat.
Charta autographa, ad idem monasterium pertinens, in
Publico Archivo custoditur.
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− In nomine domini qui cum eterno patre simul cum spiritu sancto in
personis trinus ab omnibus fidelibus in terris veneratur unus et in
celis ab angelicis choris adoratur et colitur in trinitate
semper idem unusque deus. Non est ambiguum sed omnibus
hominibus manet patefactum eo quod ego flamula proliz Suariz ob honorem
et reverentiam ipsius sancte: et individue trinitatis aduc de gente in
mea carne pro remedio anime mee de facultatibus meis parvam deo feci
deliberationem.
Ideo ego flamula ut partem adipisci merear in celestibus a domino
seculis infinitis cum angelis sanctis ofero huic sancto et venerabili
altari in monasterio petroso in honorem sancti petri − villa pernominata
Macaneira (= Macieira) IIIIª portionem ad integru... et de illas ecdesias
ubi ego abeo parte de durio usque in illa villa de sagadanes (= Segadães)
tota mea parte ad integru et de toto meo avere medietate ad integru pro
remedio anime mee sive de jumentas quomodo de pane sive de vino sive de
tota mea rem... Et illas ecclesias de fianes (= Fiães) et purzeli (=
Mosteiro) ad integras.
Post obitum meum habeatis illas temporibus cunctis et seculis seculorum.
Si tamen aliquis homo hoc testamentum inrumpere quesierit duo auri
talenta quoquatur (= cogatur) exsolvere et imperatori terre alio tantu
et judicatum.
Et insuper si se corrigere neglexerit sit excomunicatus et a
fide christi separatus.
Facta series testamenti notum die erit
VIII Calendas Magii.
Era M.ª C.ª X.ª VII (= ano de 1079).
Flamula proliz Suariz hoc testamentum propriis manibus
meis − r+ + ovoro.
Testes fuerunt Petro − Menendo
− Suario. Martinus abba
quos vidi. Pelagio notuit.»
Não é fácil identificar a Flâmula Suariz do documento
n.º 567 dos P. M
H., porque esse nome, que deu mais tarde Chamoa Soarez, era muito vulgar
na época; e o patronímico indicador do pai − Soeiro − era também
vulgaríssimo.
Em todo o caso, as verbas do seu testamento dizem-nos claramente que
Dona Châmoa Soares (ou Soeiro) pertencia à alta nobreza neo-goda e era
rica dos tesouros da Fé e de bens materiais.
Para remédio de sua alma e paz de consciência, ela doou ao mosteiro
beneditino de S. Pedro de Pedroso − a quarta parte da villa de
Macieira, o quinhão que tinha nos padroados das igrejas de entre-o-Douro
e Segadães, os padroados íntegros das igrejas de Fiães e Mosteirô (da
Feira) e metade de tudo o que lhe pertencesse, tanto em jumentas como em
pão, vinho, etc. Dado que não há efeito sem causa ou causas
proporcionadas, pergunta-se: − Como explicar uma tão larga dotação a um
mosteiro?
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* *
Duas causas explicam o grande número de fundações religiosas e de
doações às mesmas, nos primeiros séculos da monarquia e sobretudo no que
precedeu a separação de Portugal da
monarquia leonesa:
a) − o espírito religioso da época e o
espírito fidalguesco.
A luta dos cristãos (que escaparam à destruição do império
visigótico nas Espanhas) com os seus opressores − os mouros de África −
começou no meado do século VIII nos montes das
Astúrias e da Galiza, sob a chefia de D. Pelaio.
Este príncipe cristão havia-se refugiado em uma caverna
com alguns de seus valentes e fiéis companheiros; à roda deles se
agruparam naquelas serras asturianas as relíquias dos cristãos expulsos
de todas as outras províncias hispânicas.
E foi este punhado de briosos combatentes que se propôs resistir ao
império dos Califas e às máximas do Alcorão. A fé religiosa, não menos
que a independência, influiu nesta resolução.
Os descendentes de D. Pelaio saíram das montanhas, assentaram sua corte
em Gijon, depois em Oviedo, fundando aí a catedral.
Pouco a pouco, foram alargando o círculo do seu domínio territorial,
chegando a reconquistar a Galiza com Portugal até ao Douro, em tempos de
Afonso IlI, o Magno. E esta fronteira
ficou sendo por um longo período de tempo o limite do império cristão.
Estas balizas, continuamente atacadas pelas invasões muçulmanas, não
foram rôtas senão momentaneamente pelas vitoriosas armas de Almançor,
nos fins do século X.
Por sua vez, os reis de Leão
− Ordonho, Ramiro, Afonso Magno, Afonso V
e D. Fernando Magno, seu filho − atravessaram a Lusitânia até ao Mondego;
e deles o último, pela conquista de Coimbra, assegurou a posse das
três províncias do norte.
Os filhos deste, sucessivamente D. Garcia, D. Sancho e D. Afonso VI,
confirmaram a dominação, aumentaram as guarnições das praças fortes,
trouxeram povoadores do Minho e Galiza para os estabelecer junto ao
Mondego e, pouco a pouco, tudo se foi melhorando, cultivando e
povoando. Um dos mais poderosos meios de cultura, povoação e polícia −
foram as fundações religiosas coevas da conquista, porque o espírito dos
reis e dos povos, fortemente impregnado da crença católica, ao mesmo
passo que estabelecia a independência e o senhorio nas terras
restauradas, aí assentava igualmente o culto católico.
É este um facto incontestável, atestado pela história, quer
profana quer eclesiástica.
Do mesmo princípio religioso procedia também que algumas fundações e
dotações eram feitas ao modo de restituições ou composições com a
própria consciência.
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Em casos tais e para remédio das suas almas, os grandes e senhores deixavam em seus testamentos legados pios, destinados a
igrejas e mosteiros, − instituíam capelas e sufrágios e, para a sua
permanência e perpetuidade, davam-lhes rendas. Foi este o motivo que
mais pesou no ânimo de Dona Chamoa Soares ao fazer tão larga doação ao
mosteiro de Pedroso, como ela mesma o declara.
À imitação dos grandes e senhores, até os cristãos menos
abastados se compraziam em dar em vida, ou legar para depois da morte,
uma parte de seus bens às igrejas e mosteiros, afim de participarem de
suas orações e sufrágios: e assim se foi fundando e dotando a maior
parte delas, à custa do fervor religioso dos povos.
Resta-me dizer algo acerca do
espírito fidalguesco.
As igrejas e mosteiros eram para os seus fundadores e
benfeitores um título de nobreza e um atestado de fidalguia, porque as
fundações ou dotações não eram inteiramente graciosas: no princípio,
isto é, desde o século VIII aos fins do século X, estas doações recaíam
no domínio laical.
Os mesmos chefes da Igreja autorizavam isto, porque aquilo que então
mais importava era restabelecer o culto religioso nas terras novamente
tomadas aos mouros; e a necessidade fazia que se aliciassem desse modo
os homens poderosos, únicos capazes de levantar à sua custa os templos.
Donde procedia que o fundador de uma igreja ou mosteiro era como o
proprietário dela, transmitindo-a na sua herança a
descendentes e herdeiros: − era um domínio como outro qualquer, que se
devolvia e partilhava, se dava, vendia, trocava, etc.
Dona Chamoa Soares doou a Pedroso o padroado da igreja
de Fiães, em 1079, porque ela lhe pertencia, por a ter fundado, ou
herdado de seus progenitores.
Esta disciplina durou enquanto existiu a causa que a permitiu e tolerou.
Em 1090, D. Afonso VI, de Leão, pediu à Santa Sé que modificasse esta
disciplina: e os legados apostólicos e mais Prelados da Península
católica estabeleceram que se observassem na Espanha os cânones da
Igreja universal a tal respeito, cessando assim a tolerância consentida
nestes países, pela razão acima declarada.
O costume, porém, estava muito arreigado, era difícil de extirpar.
A luta contra extorsões e abusos cometidos pelos padroeiros
de igrejas ou mosteiros, foi longa e tenaz. Ainda em tempos de El-Rei D.
Fernando (séc. XIV) encontramos as queixas de
Prelados, clamando: − que os fidalgos se introduziam nos mosteiros a
título de seus naturais, isto é, descendentes dos padroeiros, fundadores
ou benfeitores, − invadindo as celas dos ovençais (padres
administradores da casa), a cozinha, a adega, o celeiro,
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e tirando daí por suas mãos o que lhes parecia, para eles e sua
comitiva de homens e mulheres, para seus cavalos, aves e cães de caça.
Estas comedorias ou
colheitas se tinham como prerrogativas de distinção e nobreza, sendo muito estimadas dos ricos homens,
infanções e cavaleiros: eram para os que as possuíam outros
tantos pergaminhos de grandeza e fidalguia e, por tal motivo, muito
procuradas e solicitadas.
Como se disse no fascículo
n.º 18 desta revista, o mosteiro de Pedroso
queixou-se a EI-Rei D. Dinis, em 1288, da violência
que lhe faziam os descendentes de ex-padroeiros da igreja de Fiães,
pousando e comendo nela contra o decreto real, pois a dita igreja,
quanto ao seu padroado, pertencia in solidum a Pedroso.
Fiães − 1940
PADRE MANUEL F. DE SÁ
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