JÚLIO DINIS E O DISTRITO DE
AVEIRO − JÚLIO DINIS E AVEIRO − COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO
JÚLIO
DINIS − talvez o mais lido dos romancistas portugueses e com certeza o único que tem sempre abertas as
portas de todos os lares − nasceu no Porto no dia 14
de Novembro de 1839. Nas comemorações do seu primeiro centenário, foi,
portanto, àquela cidade que couberam as maiores honras e foi ela que maior
luzimento lhes deu.
O Arquivo do Distrito de Aveiro sente-se
na obrigação de se associar às
manifestações feitas à memória do mais ilustre
dos cultores do romance campesino entre nós. Quando para
isso não bastasse a circunstância de o pai do escritor, o Dr. José
Joaquim Gomes Coelho, ser natural de Ovar e, portanto, do distrito de
Aveiro, poderíamos invocar, para nossa justificação, um motivo de maior
peso: grande parte da obra literária do conhecidíssimo romancista foi
concebida em Ovar; parte dela ali foi escrita. E não só isso, O Sr. Dr. EGAS MONIZ, no seu valiosíssimo trabalho
− Júlio Diniz e a sua obra -,
esplêndido repositório de informação acerca do famoso autor de As
Pupilas, provou que muitos dos tipos, populares e não populares, que
figuram nos romances de JÚLIO DINIS − em especial naqueles cujos entrechos
ele faz decorrer na aldeia − foram moldados em indivíduos da
região de Ovar; que grande quantidade de termos e expressões populares
que o autor pôs na boca das
suas personagens são da mesma região e ainda hoje vivem;
e que nas descrições da natureza foi ainda a mesma parte do nosso
distrito que o inspirou. Quer dizer: os romances campesinos
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Aveiro e por actores indivíduos do povo que ao tempo nele
viveu, com costumes e linguagem que em nossos dias se mantêm
inalteráveis ou pouco modificados.
Seria curioso extrair das obras deste autor todos os grandes quadros populares que nelas existem e mostrar e provar a sua actual
persistência. Por agora, porém, só chamamos a
atenção dos leitores do Arquivo para a flagrante verdade dos
seguintes: a esfolhada, de As Pupilas,. e a cena da distribuição
do correio, a da representação do auto, a do enterro de Ermelinda e a
das eleições, de A Morgadinha. Só quem haja nascido e vivido nalguma
das aldeias do litoral do nosso distrito
as poderá verdadeiramente compreender. A observação do
autor é penetrantíssima; a descrição é perfeita. No que concerne à cena
da distribuição das cartas, sabemos, da maneira insofismável, que o autor
se inspirou na realidade vareira. Antes do aparecimento de A
Morgadinha, escrevia ele, em
carta, a Custódio Passos: − «Entre as poucas distracções que esta vila
(Ovar) oferece aos seus visitantes, nenhuma tanto
do meu gosto como a da chegada do correio. − Todos os dias
me levanto mais cedo para estar às nove horas na loja em que se
distribuem as cartas. Imagina tu uma pequena sala humildemente mobilada,
com bancos e mesa de pinho e uma estante ao fundo contendo in-folios de formidável aspecto. Um homem
idoso, a quem chamam aqui doutor, mas de cujo grau ainda
não tirei informações, como decerto teria já feito um nosso conhecido,
toma fleumaticamente a sua pitada, conservando ele só uma
imperturbável indiferença no meio da ansiedade de quantos o rodeiam. −
Mais de trinta pessoas, homens, mulheres e crianças, sentadas no chão,
no limiar da porta e na rua, fitam com impaciência a esquina donde deve
surgir o
portador das cartas. − Quando este aparece, todos se levantam a um tempo, e apinham-se sobre o mostrador, como se
pretendessem abafar o pobre do doutor. − Este, cônscio da
importância da sua pessoa, retira-se, de uma maneira grave,
ao seu gabinete, sujeita as cartas recebidas a uma tal ou qual
classificação e volta para distribui-las. É o caso de repetir aqui
pela milionésima vez o Conticuere Omnes perfeitamente aplicável à situação. O homem lê pausadamente o nome da pessoa a quem vem a
carta sobrescriptada, estende-se um braço, entrega-se a carta e, ás vezes, é ali mesmo aberta e lida.
À medida
que o maço se vai esgotando, é para ver as transições por que passa a
fisionomia dos que ainda nada receberam desde que principia o receio
até que se desvanece de todo a última esperança. − Faz pena vê-los partir tão desconsolados. Escuso
dizer-te que eu não sou simples espectador desta cena, mas
actor e dos mais possuídos do seu papel.»
Na Morgadinha, o quadro está apenas mais desenvolvido.
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Não menos curioso seria o estudo dos diferentes tipos. Aí
encontraríamos a mesma fidelidade, a mesma meticulosidade de descrição.
Assim, pois, se JÚLIO DINIS é portuense pelo nascimento
− com o que a
cidade do Porto justamente se pode orgulhar −,
o escritor, sem deixar de ser portuense, é também nosso, pela
simpatia que lhe mereceu a região vareira e pelo carinho com
que legou à posteridade; em páginas que por muito tempo
serão lidas e compreendidas, variadíssimos aspectos da vida da
sua população.
*
Não deixa de ter interesse o registo do pouco que JÚLIO
DINIS deixou escrito a respeito da cidade de Aveiro. Em carta
escrita de Ovar em 11 de Maio de 1863, dizia ele:
«Conto por toda a semana que vem partir para Aveiro. Eu
tenho evidentemente tendências para estacionar. Estou aqui há
quinze dias, conheço que não me tenho divertido demasiado, e
vou ficando, e custa-me a resolver a continuar a jornada.»
No dia 14 do mesmo mês, escrevia noutra carta:
«Não sei quando partirei
para Aveiro...»
Efectivamente, noutra, datada de 12 de Junho, informava
um amigo:
«Parece-me que já não vou a Aveiro. Um parente em
casa de quem tencionava hospedar-me, tem de partir para
Lisboa. Mandando-me dizer que ficava a casa às minhas
ordens; ora isto é motivo para nem sequer entrar na cidade,
pois teria de aceitar o convite, o que, na ausência dele me
não convém. »
JÚLIO DINIS receava fazer essa visita, em virtude das más
informações que a respeito de Aveiro lhe davam. Pertencem a uma carta
de 3 de Julho de 1863 estas palavras:
«Em primeiro lugar, desde que principiei a sentir que
robustecia em Ovar, fui adiando a minha partida, intimidado
pelas descrições tétricas que os facultativos daqui me faziam
de Aveiro; em segundo lugar, concorreram cartas de família
em que se me pedia que me demorasse até que se pusesse em
exploração o caminho de ferro, para me visitarem; em terceiro,
a saída de Aveiro de um primo em casa de quem tinha de me
hospedar, porque na ausência dele seria eu obrigado a aceitar
a hospitalidade da família, que conheço pouco ou nada e, por
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isso, a viver pouco á vontade, condição indispensável para eu viver bem.»
Até que, finalmente, a nossa cidade o veio a receber em seu seio.
É do
dia 28 de Setembro de 1864 a seguinte carta, dirigida, como outras, a
CUSTÓDIO PASSOS:
«'Escrevo-te de Aveiro. São 7 horas da manhã do histórico
dia de S, Miguel. Acabo de me levantar. Acordou-me o silvo da
locomotiva. Abri de par em par as janelas a um sol desmaiado que me
anuncia o inverno. − A primeira coisa que este sol alumiou para mim,
foi a folha de papel em que te escrevo; aproveito-a como vês,
consagrando-te neste dia os meus primeiros pensamentos e o meu
primeiro quarto de hora. − Aveiro causou-me uma impressão agradável ao
sair da estação; menos agradável ao internar-me no coração da cidade,
horrível vendo chover a cântaros na manhã de ontem, e imensas nuvens
cor de chumbo a amontoarem-se sobre a minha cabeça; mas, sobretudo
intensamente aprazível, quando, depois de estiar, subi pela margem do
rio e atravessei a ponte da Gafanha para visitar uma elegante
propriedade rural que o primo, em casa de quem estou hospedado, teve o
bom gosto de edificar ali. − Imaginei-me transportado à Holanda, onde,
como sabes, nunca fui, mas que suponho deve ser assim uma coisa nos
sítios em que for bela. − Proponho-me visitar hoje os túmulos de Santa
Joana e o de José Estêvão, duas peregrinações que eu não podia deixar
de fazer desde que vim aqui.
A casa em que moro fica fronteira á que pertenceu ao José
Estêvão. Há ainda, vestígios das obras que ele projectava fazer-lhe e
que, por sua morte, ficaram incompletas. Tudo isto se vendeu, e
dizem-me por uma ninharia. − Cheguei a Aveiro um pouco dominado pela apreensão de que talvez viesse ser infeccionado pelos eflúvios
pantanosos da terra e cair atacado pelas sezões, circunstância que, não
obstante o colorido local que me havia de dar, nem por isso me havia de
ser muito agradável. Nada, porém, de novo me tem por enquanto sucedido,
e continuo passando bem, e, o que é mais, engordando...»
As suas últimas referências a Aveiro foram expressas em carta do Porto,
datada de 27 de Outubro de 1864 e dirigida a EUGÉNIO LUSO:
«Andava com vontade de conversar consigo. Separámo-nos em Aveiro,
mas duma maneira que não permitia uma despedida secundum artem. Lembra-se? Você estava metido dentro de uma carruagem, eu sobre a plataforma de
uma estação de caminho de ferro onde pela primeira vez havia pousado os
pés.» − «...tudo isto e outras muitas coisas se me renovam
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na memória, sem que as possam ofuscar as outras recordações embora
recentes, que me ficaram de Aveiro, da sua ria, do seu mexilhão, dos
seus ovos moles e sobretudo das suas belas trigueiras. Porque de facto
não sei se concorda comigo, em Aveiro há trigueiras como em parte
nenhuma.»
*
Além da consagração do escritor, feita no dia 7 de Dezembro, em sessão
plenária da Academia das Ciências, na qual falaram os Drs. JÚLIO DANTAS
e EGAS MONlZ, este último sobre O Teatro Inédito de Júlio Dinis, as
principais comemorações do centenário foram as seguintes:
No Porto − Dia 13 de Novembro: Exposição bíblio-iconográfica, na
Biblioteca Municipal; Conferência no Palácio de Cristal sobre O valor
moral na obra de Júlio Dinis − pelo Dr. JOAQUIM COSTA; Concerto popular
no Jardim da Cordoaria;
Palestra no Conservatório sobre Vida e obra de Júlio Dinis − pelo
professor ALBANO MORGADO. − Dia 14: Romagem ao túmulo do romancista, no
cemitério de Agramonte, onde o poeta ANTÓNIO
CORREIA DE OLIVEIRA recitou versos seus, alusivos à comemoração; Descerramento duma lápide na casa onde faleceu o escritor; Sessão
solene, à noite, na Faculdade de Medicina, em que falaram os
professores: FERNANDO MAGANO (A lição do Dr. Semana), LUÍS DE
PiNA (A
Medicina na obra de Júlio Dinis), HERNANI MONTEIRO (Júlio Dinis e a
tradição literária da Escola Médica do
Porto) e ALMEIDA GARRETT (Júlio Dinis, médico e professor);
Comemorações nos colégios de Mousinho de Albuquerque e João de Deus. −
Dia 15: Espectáculo infantil no Teatro de Carlos Alberto, com recitação,
vários números musicais e de ginástica e a exibição do fono-filme de As Pupilas do Senhor Reitor; Sessão solene, à tarde, no Grande Colégio
Universal, com uma conferência do professor ANTÓNIO MOREIRA. − Dia 18:
Sessão artístico-musical, no Clube dos Fenianos, precedida duma
conferência do Dr. LUÍS DE PINA acerca de Júlio Dinis, inspector de
almas. − Dia 29: Espectáculo público, de amadores, com a peça extraída
dos Fidalgos da Casa Mourisca.
Anuncia-se ainda, para o fim do ano corrente, a publicação dum número do
Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, «inteiramente consagrado
ao grande romancista», no qual «serão publicados, além das conferências e dos discursos proferidos durante as
comemorações, estudos originais firmados por alguns dos nossos homens de
letras».
EM LISBOA − Dia 14: Sessão de homenagem à memória de JÚLIO DINIS, na
Faculdade de Letras, com palestras dos Drs. ELSA PACHECO e VITORINO NEMÉSIO; Sessões no Liceu de
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Maria Amália e Instituto de Odivelas, e comemoração na Emissora
Nacional, se bem que muito modesta.
EM OVAR, a comemoração reduziu-se à homenagem de
O Povo de Ovar, que publicou um número especial no dia 16
de Novembro, com colaboração do Dr. EGAS MONIZ; a uma romagem das
escolas da vila à casa onde JÚLIO DINIS residiu,
junto da qual falou a professora D. MARGARIDA COENTRO DE PINHO; e a
uma conferência pronunciada no «Colégio de Júlio Dinis» pelo professor
MANUEL JOSÉ PATRÍCIO.
NO LICEU DE AVEIRO, foi comemorado o centenário com uma palestra da
aluna do 7.º ano, ONDlNA GOMES LEITE; com prelecções dos professores de
Português de todas as turmas e com leituras de trechos de cada uma das
obras do escritor. A aula de Português do dia 14, no 6.º ano, foi'
exclusivamente dedicada ao ,glorioso romancista.
*
Limitamos às palavras que aí ficam a nossa homenagem à
memória do grande espírito que se chamou JOAQUIM GUILHERME
GOMES COELHO e que assinou as suas obras com o doce pseudónimo de JÚLIO
DINIS: à memória do escritor a respeito de
quem EÇA DE QUEIRÓS, numa frase que é uma admirável síntese,
afirmou, por ocasião do seu falecimento: viveu de leve, escreveu
de leve, morreu de leve.
8 de Dezembro de 1939.
JOSÉ PEREIRA TAVARES
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