Álvaro Fernandes, O cisne do Vouga: Francisco Joaquim Bingre , Vol. V, pp. 187-207.

O CISNE DO VOUGA

FRANCISCO JOAQUIM BINGRE

O POETA

O distrito de Aveiro conta entre os seus filhos mais ilustres (e não são poucos!...) um poeta tão desconhecido como notável: FRANCISCO JOAQUIM BINGRE, que usou o nome arcádico de Francélio Vouguense e a quem os seus contemporâneos, em gesto de consagração às suas altas faculdades poéticas, denominaram Cisne do Vouga.

BINGRE foi, na verdade, um admirável poeta arcádico, de quem hoje poucos falam e a quem as novas gerações desconhecem por completo − não obstante o seu alto talento e as inúmeras composições poéticas que deixou no seu escrínio.

Sendo poeta de rara inspiração, dedilhando como poucos a lira, a sua obra é quase desconhecida e o seu nome só meia dúzia de antigos o conhecem, e, mesmo assim, sem lhe prestarem o culto merecido. As nossas várias histórias da literatura ou não o citam, ou o citam apenas de passagem, em nota fugitiva que nada diz sobre o valor do poeta, como acontece com a História da Literatura Portuguesa, de MENDES DOS REMÉDIOS. Onde se traça a sua biografia, ainda que resumidamente, é nos diversos dicionários enciclopédicos que possuímos, nos quais se encontram alguns elementos para formarmos um juízo literário a seu respeito. Mas, das novas gerações, quem conhecerá o mavioso lírico do Vouga?

O poeta é completamente desconhecido dos novos, porque as suas obras, na quase totalidade, ficaram inéditas; e algumas, que passaram pelos prelos, saíram à luz em edições modestíssimas, e de tiragens muito restritas. Exemplar da autoria de BINGRE pode hoje considerar-se verdadeira raridade bibliográfica.

No entanto, como dissemos, o poeta é um lírico de viva inspiração, pelo fogo do seu estro comparável a BOCAGE, de quem foi amigo e biógrafo. Pena é que os versos de tão ilustre poeta se encontrem há tantos anos mergulhados na sombra, sujeitos a ficarem esquecidos para sempre, e sem que o público os possa apreciar em letra de fôrma, pois neles, a avaliar pelos / 188 / que lemos, devem existir muitos de real valor, dignos de perpetuidade.

As numerosas composições que deixou, vão sendo roídas pela traça em folhas manuscritas recolhidas por devotos. Apesar dessa recolha, quem sabe se algumas delas andarão extraviadas ou se terão perdido para sempre?

Era obra de grande necessidade dá-las à luz na íntegra, acompanhadas da biografia do poeta e de estudo que focasse o valor do seu estro e a época em que viveu (uma das mais agitadas da literatura portuguesa, pois nela se degladiaram, ferindo-se mutuamente, BOCAGE e AGOSTINHO DE MACEDO, para só falar nos maiorais); ou então, quando não seja possível a publicação integral dessas composições em livro ou livros, tirar delas um extracto, onde se vulgarizem os trechos mais selectos.

As composições de BINGRE foram recolhidas primitivamente por pessoa culta, que teve por elas, sem dúvida, o carinho e cuidado que se prestam às relíquias; e alguém, que herdou esse precioso património, teve a feliz lembrança de tirar dele uma cópia que ofereceu à Biblioteca da Universidade de Coimbra, ficando, assim, livres de extravio, os inéditos do Poeta.

Se não fosse essa cópia, quem sabe as voltas que os originais não dariam e quem sabe se, indo parar às mãos de pessoa inculta ou simplesmente materialista, se não viriam, um dia, a perder para sempre?

E então, nestes tempos que decorrem, tão pouco idealistas, tão pouco amantes de poesia, em que mesmo os grandes vates se sentem no abandono!...

As obras de BINGRE, além do seu valor literário, incontestável, devem possuir, também, valor histórico, pelas referências a vários passos da vida portuguesa, da época napoleónica e miguelista, visto que o poeta teve existência excepcionalmente longa, assistindo ao aparecimento e desaparecimento de três gerações.

BINGRE, o «Cisne do Vouga», o cantor das «vouguenses nayades», é uma glória do distrito de Aveiro e particularmente de Canelas (Estarreja), onde nasceu, onde viveu alguns anos, e onde foram sepultados seus pais.

Era um poeta de raça, espontâneo, natural, mavioso, fadado por Deus para o lirismo. Os seus versos têm inspiração, graça, profundidade. Não encontramos neles (naqueles que lemos) certos defeitos característicos da escola a que pertencem e aos quais nem o grande ELMANO, com todo o fogo do seu génio, pôde subtrair-se.

BINGRE, em nosso entender, pode ser considerado o príncipe dos poetas aveirenses. O distrito de Aveiro não é dos mais fecundos em poetas, mas, ainda, assim, conta líricos de valor, como ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO, de Ílhavo − o autor das Alvoradas e Outonais (que terçou armas com CAMILO, em defesa da escola / 189 / realista); FERNANDO CALDEIRA, de Águeda, o fidalgo burilador da Madrugada e Mantilha de renda; e ADOLFO PORTELA, também de Águeda, autor das Orvalhadas, cujos versos são notáveis pela sua musicalidade e frescura. Pela vastidão da sua obra, pela sua espontaneidade e pelos seus altos voos de lirismo, BINGRE a todos estes sobreleva.

A ajuizar pelo que lemos (e fazendo a crítica pelos seus versos dos últimos anos, de época já declaradamente romântica), era menos afectado que o próprio BOCAGE. Tem versos duma naturalidade e simplicidade encantadoras. Haja em vista a poesia O desengano, a primeira do opúsculo O moribundo Cisne do Vouga... No entanto, o poeta, por nascimento e cultura, era visceralmente clássico.

Pondo de parte as referências pastoris, como era de moda entre os poetas arcádicos, BINGRE imitou principalmente os modelos quinhentistas, da época de CAMÕES e de FERREIRA:

Por taças de cristal o estilo puro
Bebeu dos grandes Vates quinhentistas.
              Nunca o caminho escuro
              Seguiu dos seiscentistas.
Foi por isso que ao Vouga o fez glorioso
              Bocage luminoso.


Isto mesmo ele escreveu no Moribundo Cisne do Vouga.

Frisando as preferências clássicas de BINGRE, escreveu o poeta JOSÉ MARIA DA COSTA E SILVA numa epístola:

Tu, que aos vates do século brilhante
Do terceiro João de perto imitas...
 

Em todos os seus versos que conhecemos se encontra, mais ou menos, o alto sopro da inspiração, a que o poeta, em linguagem pitoresca, chamava «gás».

Aquele gás que me inflamava tanto...


Dele escreveu, nas suas Considerações mansas, J. AGOSTINHO DE MACEDO, escritor «turbulento» a quem a inveja tanto prejudicou: «Bom poeta e judicioso homem, no qual a capacidade natural supria naturalmente todos os estudos.» INOCÊNCIO FRANCISCO DA SILVA, que dele tratou no seu Dicionário Bibliográfico e no Arquivo Pitoresco, chamou-lhe «estimável e ameníssimo poeta e último representante entre nós da outrora florente escola arcádico-bocageana».

O Amor e a Poesia absorveram desde verdes anos o poeta, como ele confessa nesta quadra:

lnda três lustros perfeitos
Eu d'idade não contava,
Quando já ao amor e às musas
Como um doudo me atirava...

/ 190 /

Se o poeta começou a amar precocemente, não nos consta ter praticado graves delitos eróticos, e parece ter sido exemplar chefe de família. Talvez que o amor a que se refere fosse apenas platónico. A maior paixão da sua vida foi a poesia, que conservou até à morte.

Foi o cantor do «pátrio Vouga» e da sempre airosa Veneza do Atlântico, «onde a antiga Talábriga alça a frente». Numa das suas poesias refere-se às antigas glórias marítimas de Aveiro, cantando assim:


Era no prisco tempo, em que saiam
Por sua foz seus grã-navegadores,
Que as escondidas terras descobriam.
(1)


BINGRE é corruptela do nome alemão Hibinguer. Sua mãe, que era natural de Viena de Áustria, chamou-se Ana Maria Clara Hibinguer e, na aldeia de Canelas, onde viveu com seu marido e filho, o povo adulterou aquele nome, aportuguesando-o em BINGRE, que o poeta adoptou como apelido.

*

FRANCISCO JOAQUIM BINGRE, o Francélio Vouguense da Nova Arcádia e também conhecido por Cisne do Vouga, nasceu na freguesia de Canelas (Estarreja), a 9 de Julho de 1763. Foram seus pais Manuel Fernandes e Ana Maria Clara Hibinguer, austríaca, a quem acima nos referimos. Foi baptizado a 17 do referido mês e ano, tendo o poeta, pelo tempo adiante, nos seus aniversários, confundido esta data com a do seu nascimento.

Transcreve-se a sua própria certidão de idade:

«Aos dezesete dias do mez de Julho de mil setecentos e sessenta e tres baptizei a Francisco Joaquim, filho legitimo de Manuel Fernandes, e de Ana Maria Hibingre, da Pedregosa, desta freguezia de S. Thomé de Canellas, bispado de Coimbra; neto paterno de Manuel Fernandes, e de sua mulher, Joanna Dias, d'esta freguezia de Canellas, e matemo do capitão Gaspar Hibingre, e de Maria Catharina Hibingre, da cidade de Viena d'Austria. Nasceu aos nove do dito mez e anno. Foram padrinhos Francisco da Silva Martins, e Maria, donzella, filha de Manuel João de Figueiredo, da mesma freguezia: e testimunhas o M. R. P. Antonio da Trindade, e Domingos Dias Henriques: do que tudo fiz este assento, que assignei. Era ut supra. O cura José dos Santos Barbosa Carrancho. − P. Antonio da Trindade − Domingos Dias Henriques.»

/ 191 /

O avô materno de BINGRE foi Gaspar Hibinguer, capitão de hússars no reinado da imperatriz Maria Teresa, que morreu combatendo pela pátria. Eis o soneto incompleto (conforme o traz o Guia Histórico do Viajante no Buçaco) que o poeta dedicou à morte de sua mãe (e pena é que o não possamos apresentar completo, pois beleza não lhe falta):

A filha de Gaspar Hibinguer forte,
Do destemido austríaco soldado,
Que no terrível cerco de Belgrado
Nome alcançou do impávido Mavorte;


Minha mãe infeliz, que viu na cárie
Da majestosa Áustria alevantado
Rico arco triunfal ao pai honrado,
Mau destino a arrancou do pátrio norte.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Viena de Áustria o ser lhe deu germano,
Sepultou-se na aldeia de Canelas,
Junto às margens do Vouga lusitano.


Este soneto incompleto tem a seguinte dedicatória: «À morte de minha adorada mãe, a Sr.ª D. Maria Clara Hibinguer, natural de Vienna d'Austria, e enterrada na freguezia de Cannellas, bispado de Aveiro, em 1793.»

Por morte de seu pai, a mãe do poeta ficou desamparada e foi recolhida num convento de Viena. Passado tempo, veio para Lisboa, para casa duma tia materna, «que era ou fora», diz
INOCÊNCIO, dama ou criada do paço da rainha D. Maria Ana de Áustria, esposa de D. João V. Em casa de sua tia e de seu marido Felipe Balestri, esteve alguns anos, tratada e educada como filha e nutrindo a esperança de vir a ser a herdeira de seus parentes e protectores, visto não terem filhos. Infelizmente, o calamitoso terramoto de 1755, destruindo parte de Lisboa, levou na sua voragem os esposos Balestri e a casa e os haveres que possuíam, deixando, mais uma vez, na miséria e na orfandade a infeliz austríaca.

Foi nessa altura que Manuel Fernandes (a quem alguns acrescentam Dias e dizem ter sido criado dos Balestri) lhe ofereceu, generosamente ou por amor, protecção, levando-a para Canelas, donde era natural, e onde casaram. Deste consórcio houve apenas um fruto, que foi o poeta.

A família BINGRE, em ano que não podemos precisar, deixou Canelas, e foi estabelecer-se em Lisboa, dedicando-se ao comércio clandestino de fazendas de paquete. Passado pouco tempo, porém, desgostoso do negócio ou por motivos ignorados, Manuel Fernandes voltou para Canelas, onde foi amanhando as suas pequenas propriedades. Ana Maria Hibinguer e o filho continuaram em Lisboa, explorando o mesmo negócio. / 192 /

Porém, a vida comercial da mãe de BINGRE não foi bafejada pela fortuna e, em breve tempo, as dívidas eram enormes e a situação angustiosa. Para maior infortúnio, a asa negra da loucura roçou-lhe o espírito elevado, obrigando-a a retirar-se também para Canelas. Nessa altura, já BINGRE, com os seus versos, tinha adquirido grande fama entre os letrados da época.

Em Canelas o poeta consorciou-se com a sua conterrânea Ana Maria Pires, que foi para ele companheira dedicada e extremosa e de quem teve os seguintes filhos: Raimunda Mariana, que morreu viúva pouco antes de seu pai e foi o único filho do poeta que deixou descendência; Nuno Maria Bingre, falecido no Brasil; António Francisco de Assis Bingre; Bartolomeu Maria Bingre, bacharel em Direito, que morreu em 1829; Francisco Lourenço de Assis Bingre; e Perpétua Clara Bingre, que morreu muito nova. Há discordância entre MARQUES GOMES e INOCÊNCIO: o primeiro diz que o bacharel em Direito fora o Bartolomeu, e o segundo o Nuno Maria, falecido no Brasil. A verdade está com MARQUES GOMES, como consta do Arquivo da Universidade, segundo verificação obsequiosamente feita para o presente estudo. Foi Bartolomeu quem se formou; e tirou carta em 9 de Agosto de 1826, pela segunda vez.

Os pais do poeta morreram ambos em 1793, com pequeno intervalo, ferindo-o rudemente, como é natural, e deixando-lhe um pequeno património. No ano imediato o poeta voltou para Lisboa, cidade buliçosa, onde conhecera muitos amigos e onde o chamava a glória.

A sua fama de poeta facilmente se espalhou; mas não pôde escapar-se às necessidades materiais, porque «a fome mais de uma vez lhe bateu à porta».

Escrevendo inúmeros versos e lutando com imensas dificuldades, ao fim de oito anos de tentativas e de esperanças, conseguiu um lugar de justiça, secundário, em Vila Nova de Anços. Não chegou, porém, a exercer este cargo, por, em 1801, ser nomeado escrivão dos órfãos no Julgado de Ílhavo. Por motivos que se ignoram, em 1824 foi demitido. Mas o poeta tinha amigos, dos verdadeiros; e, como homenagem ao seu talento, no mesmo ano, o corregedor da comarca de Aveiro, Florêncio de Abreu Parada, nomeou-o escrivão da câmara, e do judicial e notas, na vila e concelho de Mira. Em 1828 − ao que parece, a instâncias e por intrigas duma pessoa que se dizia sua amiga, − foi demitido, ficando alguns anos na mais dolorosa e extrema miséria. Em 1834 foi provido no lugar de escrivão da nova comarca de Mira; mas, como esta desaparecesse com a nova divisão judicial de 1836, ficou de novo sem emprego e com a prole a sustentar. Sua esposa havia-lhe morrido em 1823. Nunca mais o poeta conseguiu colocar-se, vivendo de esmolas de amigos e inimigos, até à sua morte, em 1856. Nas suas poesias transparece a sua odisseia, a sua tragédia. O poeta chegou a / 193 / [Vol. V - N. 19 - 1939] passar fome − fome autêntica e não em sentido poético ou metafórico.

Em 1848, escrevendo a J. M. DA COSTA E SILVA (que lhe  pedira elementos para a sua biografia no Ensaio biográfico-crítico sobre os melhores poetas portugueses, 10 volumes, Lisboa, 1850-1855), dizia numa carta:

«Aqui estou viúvo há vinte e cinco anos, aqui tenho enterrado muitos filhos e netos; aqui findarei os tristes dias de 85 invernos, vítima da fome e da penúria, com uma filha viúva e cinco netos, sem abrigo senão o das carcomidas asas deste desditoso velho.»

Mais do que CAMÕES, o poeta foi vivendo inúmeros anos de esmolas, que lhe forneciam regularmente os seus amigos de Aveiro, Eixo, Ílhavo e Vagos. Merece ser citado o seu grande amigo e protector CALlXTO LUlZ DE ABREU, de Eixo, professor de latim no liceu de Aveiro, a quem foram confiados os seus originais. Por instâncias dos seus muitos amigos e admiradores, em 14 de Dezembro de 1852, foi promovido um benefício em seu favor no teatro de S. João. Embora na mais extrema miséria, o poeta era alguém; e poucas vezes um lírico alcançou, como ele, tanta fama e conseguiu que os seus versos fossem assim apreciados. O poeta viveu anos e anos do prestígio dos seus versos. Em tamanha extensão, é, talvez, caso único na literatura portuguesa, pois, entre nós, os poetas são desprezados em vida e só depois de mortos se lhes presta algum culto, ainda que pouco, geralmente.

Com o Cisne do Vouga deu-se o inverso: foi glorificado em vida e esquecido em morto!

Na Ode aos seus beneficentes amigos que formam a comissão caritativa de Aveiro, Eixo, Ílhavo e Vagos, publicada no Periódico dos Pobres, a pedido de João Ferreira da Cruz, de Vagos, ou aí morador, o poeta agradece, reconhecidamente, o sacrifício dos seus amigos e admiradores, que o livraram de morrer à fome. Eis a ode do mais velho dos poetas portugueses desse tempo:

 

                         I
Não apaga o farol da Caridade
                 O sopro de Cocito.
Deus no Trono da sua imensidade
                 Dos mortais ouve o grito,
E com sua imortal beneficência
Lhes vale na indigência.


                         II
Inda na terra a cândida virtude
Tem cultos e tem aras;
Eu inda encontro nela quem me escude
Das rajadas avaras:
Ternas almas inda acho caridosas,
Que me acodem piedosas.  
/ 194 /

                         III
Do pouco pão diário inda há quem: corte
                 Lacrimoso um bocado,
Para arrancar das negras mãos da morte
                 Um velho desgraçado,
A quem o tempo deu pomposo nome,
                 E que hoje mirra à fome.


                         IV
Os meus grandes amigos têm desejos
                 De adoçar-me a amargura,
Mas do tráfico seu não têm sobejos
                 Fragmentos de fartura.
Faltam os bens da fortuna ao patriotismo;
                 Nos ricos sobra o egoísmo.


                         V
Quantos destes cantei ao som da Lira,
                 Que Apolo encordoara!...
Quantos hoje me vêem gemer em Mira,
                 Fechando a mão avara!...
Mas quem a entes tais inda lisonja, (?)
                 Que são da pátria esponja!...


                         VI
Vates, eu me enganei... Esses fantasmas
                 De colossal grandeza,
Ante os olhos de Deus são uns miasmas
                 De fósfora leveza...
Esses grandes heróis, esses caudilhos
                 Só tem uns falsos brilhos!...


                         VII
Eu cantei os heróis da independência,
                 Armígeros guerreiros;
Cantei Reis, Generais, dei à ciência
                 Louvores verdadeiros;
Mas que fruto tirei desses Cantares?
                 Misérrimos azares!...


                         VIII
Tive bravos aplausos de palavras,
                 Muitas palmas batidas,
Com que se pagam da Poesia as lavras,
                 E nada de colhidas...
Nunca tive das musas sementeiras,
                 Senão o pó das eiras...


                         IX
Com lágrimas de sangue o seu poema
                 Camões pobre escrevia,
E da triste carreira à hora extrema
                 Indigente morria.
Dos grandes figurões, que ele cantara,
                 Só com seu Jau se achara. 
/ 195 /

                         X
Assim eu só convosco, Amigos caros
                 Da caridosa lista,
Me vejo, em quanto sôfregos avaros
                 Cevando estão a vista
Nos redondos dobrões, escarnecendo
                 De quem está gemendo...


                         XI
Do Vouga o novo cisne sonoroso
                 Um grito deu d'espanto...
Mas ah!... que brada em vão o bom Veloso
                 Com seu mélico canto...
Aos olhos do egoísmo e da avareza
                 É réproba a pobreza.


                         XII
A ferrugenta Lira em vão dedilho,
                 Amados benfeitores,
Com a trémula mão cansada, e velho
                 Para dar-vos louvores...
Se ao cumo do Parnaso inda subira,
                 De flores vos cobrira.
                                         (Mira, 15 de Fevereiro de 1848)

A obra de BINGRE deve ter-se ressentido da sua precária situação económica, pois o desemprego e as necessidades devem ter exercido pressão deletéria no espírito do poeta, prejudicando-lhe a elaboração das suas criações artísticas. Não escreve Lusíadas quem dorme em leitos de seda, poderemos dizer; mas, se as necessidades, não sendo demasiadas, espicaçam as faculdades criadoras, o infortúnio, a miséria contínua, a fome material, só poderão roubar a última esperança ao artista, lançando-o na apatia e na negligência.

BINGRE, sem emprego, com família e sem recursos, teve de lutar com as maiores dificuldades. Os últimos anos da sua vida, em Mira, foram da mais extrema miséria, ainda assim atenuada um pouco pela generosidade confortante de meia dúzia de admiradores e amigos, que não quiseram que sucumbisse à fome o Cisne do Vouga, o maior cantor do nosso distrito.

Apesar de viver na mais crua miséria e de colher muitos desgostos, o poeta teve uma longa, excepcional, existência. Que teria sido dele e dos seus, se a caridade o não socorresse, se os admiradores do seu estro o não amparassem até à hora da sua morte?

Mas, nesse ponto, BINGRE foi, talvez, mais feliz do que o próprio CAMÕES, que, tirante o socorro real dos 15.000 reis anuais, teve apenas, como caridade voluntária, o hospital e a mortalha da casa de Vimioso...  / 196 /

Velho e pobre, o Cisne do Vouga foi verdadeiramente cisne − só deixou de cantar para morrer. À sua lira não quebraram as cordas com a idade; quando muito, enferrujariam um pouco.

O poeta já não podia segurar a pluma, e ainda cantava harmoniosamente. Chama-se isto ser poeta até à medula. Senil, caquético, não podia escrever, mas ditava os seus versos ao seu neto, o P.e Francisco Cardoso Bingre. O sagrado fogo da poesia aqueceu-lhe o espírito até à hora do trespasse.

Conservou sempre lúcidas as suas faculdades intelectuais. Mas a sua idade ia longa. Todos os seus companheiros da Arcádia tinham baixado ao sepulcro e ainda ele, por mercê de Deus, vivia e versejava. Porém, não podia ser eterno. Em 28 de Dezembro de 1855, teve uma queda ao erguer-se da cama, o que talvez antecipasse a sua morte. Em Março de 1856, atacou-o uma febre intermitente e a 26 do mesmo mês sucumbia, contando a preciosa idade de 92 anos, 8 meses e 17 dias.

No limiar da morte, o poeta, desterrado na «fétida» Mira, traçou a sua biografia neste soneto:

 

Na aldeia de Canelas fui gerado,
E nela também tive o nascimento;
Na corte de Lisboa, a meu contento,
Longo tempo vivi afortunado.


Por génio natural às musas dado,
Numa Arcádia de um sábio ajuntamento,
Cultivei na poesia o meu talento,
E por Cisne do Vouga fui cantado:


A fortuna que às cegas sempre gira,
Dando-me um encontrão àquella altura,
Nos vergeis me lançou da areenta Mira:


Aqui sem fausto algum e sem ventura,
Quarenta anos pulsei eu inda a lira,
E aqui me abriu a morte a sepultura.

Em tenra idade, começou BINGRE a aprender gramática e língua latina com o professor régio MANUEL PEREIRA DA COSTA. Porém, por dificuldades da vida, foi retirado dos estudos e ingressou na loja materna. Apesar da erudição que revela nas suas poesias, não teve o poeta estudos completos ou regulares.

Matriculou-se na Aula do Comércio, mas não chegou a concluir o curso.

Segundo os seus contemporâneos, BINGRE «era de estatura mediana, reforçado de corpo, testa espaçosa, olhos azuis bem assombrados, e presença agradável e simpática.»

Foi o maior improvisador do seu tempo, depois de BOCAGE. Nos seus momentos de inspiração e improvisação, dizem os coevos que mudava por completo de fisionomia.

Eram conhecidos dois retratos do poeta: um, pertencente / 197 /  ao Dr. FRANCISCO ANTÓNIO DE RESENDE, e outro, a CALIXTO LUÍS DE ABREU, seus grandes admiradores. A gravura publicada no Arquivo Pitoresco, da autoria de PEDROSO, sob desenho de NOGUEIRA DA SILVA, é reprodução do primeiro daqueles retratos, que dizem ser cópia muito fiel do original.

O Dr. HERNANI CIDADE, no seu interessante estudo Bocage, (1936, Ed. de Lelo & Irmão), ao traçar a biografia deste grande poeta, transcreve vários períodos de BINGRE, que ignoramos donde foram extraídos. Por ele ficamos a saber que o Cisne do Vouga escreveu artigos biográficos e críticos sobre BOCAGE, de quem foi grande amigo e camarada arcádico.

BINGRE foi particular amigo do bacharel em leis e «insígne poeta trágico» MANUEL JOAQUIM BORGES DE PAIVA, natural de Esgueira, autor dum volume de poesias e de quatro tragédias, três das quais ficaram inéditas. Ignoramos qual o mérito deste poeta. BINGRE dedicou-lhe uma elegia na sua morte, ocorrida em 1824.

O Dr. PEREIRA CALDAS, que foi professor do liceu de Braga e publicista, escreveu uma necrologia de BINGRE no jornal O Bracarense, n.º 81, de 1856.


O MORIBUNDO CISNE DO VOUGA

Em benefício do poeta, foi publicado em 1850, seis anos antes da sua morte −, o opúsculo de 100 páginas, intitulado O Moribundo Cisne do Vouga (colecção de algumas peças mais importantes extraídas das obras poéticas do sr. FRANCISCO JOAQUIM BINGRE, nos últimos momentos da sua vida). Foi seu editor o grande amigo e admirador do poeta, CALIXTO LUÍS DE ABREU, já citado, natural da antiga vila de Eixo, que também dedicou a BINGRE um artigo no Campeão do Vouga, n.º 451, de 10-9-1856. O opúsculo, a obra mais importante que do poeta foi publicada, é oferecida pelo editor «aos amadores da literatura nacional». Trata-se dum livrinho muito raro − uma verdadeira relíquia bibliográfica. Por casualidade, depois de várias tentativas, tivemos há pouco a satisfação de adquirir um exemplar. Guardámo-lo como preciosidade, como lembrança querida do poeta. Foi ele o motivo deste nosso despretensioso estudo, que tem apenas finalidade evocativa, procurando arrancar ao olvido injusto o maior poeta do distrito de Aveiro.

Tão notável poeta como modesto, pois nunca se preocupou com a publicação das suas obras, poetando porque isso lhe estava no temperamento (os pregadores e os poetas nascem, como diz o nosso povo) e não aspirando a que o seu nome se perpetuasse.

Como este livro do poeta é raríssimo (sem com isto desejarmos abusar da paciência do Arquivo), vamos dar aos leitores / 198 / alguns excertos, para que melhor aquilatem do valor do estro do Cisne do Vouga.

O livrinho abre por uma linda poesia, em verso branco, intitulada O desengano, onde o poeta, já velho, conta as suas amarguras:

Curvado sobre o lar da choça minha,
Açoitado do inverno, eu aquecia
A um cepo seco de oliveira aceso
            As mãos enregeladas.


A figura senil do Desengano entra-lhe na choupana, toma a palavra e evoca-lhe a sua vida quase extinta, as suas loucuras da mocidade, os seus desvarios, e as ingratidões constantes de que foi vítima, passando os seus últimos anos esquecido de muitos, debatendo-se nas garras da miséria e do infortúnio.

Que ganhaste, Francélio, em dar louvores
A guerreiros cruéis, que heróis chamaste?
Por ventura contigo repartirão
              Os roubados despojos?


Tu tens desperdiçado versos de oiro
Com fofos cortesãos, venais ministros...


E mais adiante:

Onde estão os amigos lisonjeiros,
Que nos grandes festins palmas te davam?
Ricos sempre de hipócritas aplausos,
              De pródigas palavras?...


E, depois, referindo-se à insídia de alguém que ele tivera por amIgo:

Tu há pouco inda viste um falso amigo,
Simulado traidor − fingindo afagos
Arrancar-te das mãos o pão diário
                      De teu parco sustento.


Não contente com isto, o monstro enorme,
(Inchado, sem motivo, em seu veneno)
Tu o viste intentar com vil calúnia
                      Levar-te ao cadafalso.


A segunda poesia é uma ode à Ingratidão, em que o poeta faz o inventário dos grandes ingratos e perversos da história: Caim, os filhos de Jacob, «os pérfidos hebreus», os «Neros
matricidas», etc. Refere-se também à ingratidão puramente afectiva:

Já não se encontram Pilades e Orestes,
                   Gratos, fieis, constantes;
São raras as terníssimas Alcestes;
E as Artemisas − conjugais amantes;
Já não se matam Cleópatras e Didos
                   Por amantes perdidos.
/ 199 /

Refere-se à ingratidão de certas pátrias, que lançam ao abandono os seus maiores poetas e intelectuais:

O memorando Ovídio, o cantor triste
                   Desterrado no Ponto,
A dor da ingratidão lá não resiste:
Ele exclama, entre queixas e ais sem conto:
«Não verás, Roma ingrata, os meus destroços;
                   Não possuirás meus ossos.»


Séneca, o mestre do maior tirano
                   − Do feroz tigre − Nero −,
Em seu sangue fartar via este insano,
Discípulo cruel, ingrato e fero.
Marco a Cícero fez, por seu desdoiro,
                   Cortar a língua de oiro.


No Proteo canta a decadência da pátria e as suas estéreis lutas fratricidas, evocando a gloriosa época dos descobrimentos e conquistas:


Hoje, da audácia do Gama
E de seus nautas ousados,
Que nos resta?... só memória
Dos varões assinalados.


E apresenta um vaticínio que, felizmente, não chegou a realizar-se:


No grande livro dos Fados
Eu li que a triste Ulisseia
Vai a ter a mesma sorte
Que teve a altiva Pompeia.


Aquele tão decantado
Nobre Reino Lusitano,
Vai desapar'cer do Globo
À maneira d'Herculano.


Aos setenta anos de idade, sentindo os primeiros assomos da decrepitude, já vislumbrava a morte e, no entanto, durou ainda mais vinte e três anos. Eis um soneto dessa idade dedicado ao «sr. Francisco Luís d'Abreu, que − estando casado e estabelecido em Pernambuco − voou a Portugal para valer a sua mãe decrépita, e a seu irmão preso na Relação do Porto, por motivos políticos, no tempo da Usurpação em 1830»:

Septuagenário já, a velha lira
Mal posso dedilhar c'o a mão tremente:
Cansada tenho já a voz cadente,
Que algum dia acendeu de amor a pira.


Apolínio clarão já não me inspira
Influxo divinal de um estro ardente;
A decrépita idade − o Deus fulgente −
Já não ousa aquecer, costas me vira.

/ 200 /

Aquele gás, que me inflamava tanto;
Desfaleceu de todo; apoquentado,
Já debalde nas asas me levanto:


Porém, teu nobre arrojo sublimado,
Se faz, ó grande Abreu, erguer meu canto,
É voz de Cisne à morte aproximado.


Nos últimos anos da sua vida, esbulhado do emprego, o poeta passou necessidades materiais − fome de pão −, como confessa no seguinte soneto:

Morreu pobre − o Camões; pobre − Garção;
Quita, e Matos viveram na pobreza;
Bocage teve lances de escasseza,
Muitos dias sofreu falta de pão.


Santos e Silva tinha uma ração
Do Hospital na botica por fineza:
Parece que capricha a Natureza
Em fechar à Poesia a dextra mão!


Aqueles foram Vates de alto espanto,
Que deixaram no mundo eterno nome,
Muitas vezes comendo o próprio pranto;


Tal o Bingre, mirrado se consome;
Se os não pode imitar no doce canto,
Ele os imita vítima da fome.


Aos oitenta anos de idade, o Cisne, que se julgava moribundo, cantava ainda, na Poesia Ao Natalício do Autor (em 17
(2) de Julho de 1843).

Ó pátrio Vouga, o cantor vosso
Hoje fixou o círculo da vida;
               Marcou o seu destroço
               Octogenária lida.
No bronze o Tempo deu co'a mão pesada
               A última pancada.


Seu relógio fugaz o derradeiro
Natalício apontou da longa era;
               Emperrou o ponteiro
               No oitenta, que numera.
Lachesio pôs na roca com fadiga
               A derradeira estriga.


Foi o último dos poetas da Nova Arcádia, como ele lembra nestes versos:


Ficou só o cantor do Vouga − anoso  −
Para as portas fechar da Academia...

/ 201 /

Refere-se desdenhosamente à nova escola literária, que não conseguiu tirá-lo dos seus moldes clássicos:

Labirintos românticos, charadas,
Frases hieroglíficas do Nilo,
               São as afrancesadas
               Canções do novo estilo...
Já se não cantam nénias lacrimosas,
               Elegias saudosas...


Escreveu um soneto a BONAPARTE (Na Ínvasão de Massena, ouvindo as bombardas do Buçaco):

Caiu Mênfis soberba, Tiro altiva,
Babilónia caiu, caiu Cartago;
Tróia em chamas ardeu, sentiu o estrago
Do ataque pertinaz da mão Argiva;


Macedónia expirou; sofreu cativa
Tebas, a de cem portas, mortal trago;
Roma o nome perdeu: − no Estígio lago
Submersas todas são, nenhuma é viva.


Ciro, Sesostris, Alexandre fero
Jazem todos no pó; Dario ufano,
E o filho de Peleu, o herói d'Homero;


Baixou ao reino escuro de Sumano
Júlio César audaz: sumiu-se Nero;
Resta cair Páris e o seu tirano.


Em nota a este soneto, diz-nos o editor do Moribundo Cisne do Vouga: «Este soneto foi-nos recitado pelo sr. Bingre, alguns dias depois que o havia composto. Nunca admirámos tanto o nosso amigo, como naquele momento de verdadeiro entusiasmo patriótico; pareceu-nos perfeitamente inspirado, quando em particular nos anunciava a queda − muito próxima − do Grande Homem do Século. Verificada a profecia, fomos também no cortejo respeitoso, com que muitos amigos tributaram ao Insigne Vate do Vouga as bem merecidas homenagens.»

A sua canção do 82.º aniversário é admirável, em pensamento e forma:

Finalmente cheguei á grande meta,
Onde negra coluna o Tempo marca
             Da existência provecta.
             Já vejo a fusca barca
Em que devo passar o pantanoso
Rio do esquecimento pavoroso.


Nestas fétidas ribas, tão lutuosas
Co'as sombras, que vagueiam dos finados,
             Ululando − medrosas
             Com passos desregrados,
Venho trazer, com susto ao precipício,
Hoje o meu derradeiro natalício.

/ 202 /

Penaliza-nos não a poder transcrever até ao fim. Raros serão os poetas que, com oitenta e dois anos de idade, cantem ainda com tanto brilho. Esta poesia é uma das suas melhores composições.

Nos últimos anos da sua vida, o Cisne, numa idade tão provecta, renega, como BOCAGE, os seus versos da mocidade, profanos e eróticos, e compõe admiráveis hinos religiosos, que
apresenta no Moribundo Cisne do Vouga. Como introdução a esses hinos ou salmos, lê-se o seguinte soneto:

Na lira onde cantei amor profano,
Vou agora cantar Amor Divino,
De novo encordoada, e com mais tino
Ao som da sacra voz do desengano.


Se algum dia − com ela − ao falso engano
Dei louvores em louco desatino;
Hoje o ídolo conheço, vil, malino,
Que em moço me causou acerbo dano.


Se o dom, que me foi dado, da Poesia,
Pelo Supremo Autor da Natureza,
Eu não soube empregar como devia,


Hoje desse cantar muito me pesa!...
Hoje, em hinos aos Céus, com melodia
Vou do Eterno louvar toda a Grandeza.


E a Deus − Ente Supremo − dedica os seus Sete Salmos Penitenciais neste soneto:

Ó Deus, Supremo Artífice Divino
Da humana construção maravilhosa,
Desta ambulante máquina estrondosa,
Obra do teu incógnito Destino;


Eu, que as molas gastei d'aço tão fino
Em desvairada vida vergonhosa,
Que através sempre andei pela enganosa
Estrada, que me fez de Ti indino;


Hoje − da vida na estação madura,
Em que os erros da verde primavera
Vejo do desengano na pintura


Hoje venho ofertar, á Tua espera,
Outro canto melhor de eterna dura,
Que sempre a Ti, Senhor, cantar devera.


Os seus salmos são, na verdade, admiráveis hinos religiosos, em que o poeta presta as suas homenagens mais sentidas ao Criador. São excelentes modelos de poesia religiosa, que tão poucos cultores há tido entre nós.
/ 203 /

o 1.º salmo começa:


Ó Deus, sublime ser, Deus conhecido
Pelas obras da Tua Omnipotência!
                Aos olhos escondido
Da Tua imensidade na ciência!
Eu me abismo, Senhor, se a fundo penso
                No Teu poder imenso!...


É admirável, em profundeza teológica, o 2.p salmo do opúsculo, que assim começa:

Causa imensa − sem fim − das causas todas,
Universal Senhor da Natureza,
              Que no disco, onde rodas
De teu brilho imortal na Gloria acesa,
És permanente Luz de eterno dia,
              Que nunca principia.


Tu, que apertas na dextra o raio aceso,
Sem nunca te queimar; que no Teu dedo
              Susténs do Mundo o peso;
Tu, da Eternidade o grão segredo,
Por vão filosofia não mostrado,
              Ao calculo és vedado.


Neste salmo tem expressões de grande beleza literária e filosófica:

Teus olhos são, Senhor, mais penetrantes
Que os vidros astronómicos da Terra:
                 De Teus Paços brilhantes
Vês a formiga que no chão se encerra...


No 3.º salmo acha justa a cólera de Deus ante tantas impiedades humanas, e refere-se à justiça divina que, na «rectíssima balança», pesa o bem e o mal praticados pelo homem:


Eu sei avaliar o quanto é justa
A Tua ira, meu Deus, Tua vingança,
                Que a todo o mundo assusta!...
Sei que a Tua rectíssima balança
Pesa − com igual mão − castigo e prémio,
                Da Tua Lei no grémio.


No 4º salmo arrepende-se de só haver cantado na sua lira assuntos frívolos e mundanos, não cantando na sua mocidade, como devia, a glória de Deus.

Tenho cantado na profana lira .
Ó Deus − tão sofredor − profanos versos,
                 Louvando com mentira
Falsas mulheres vãs, homens perversos,
Dando aos fantasmas vãos do Mundo infenso
                 O Teu devido incenso.

/ 204 /

O dom, que tu me deste da Poesia,
Para as acções cantar só da virtude,
                 Com doce melodia,
Jamais em honra tua empregar pude;
Sempre afeito às lisonjas dos mundanos,
                 Cantei os seus enganos.


No 5.º salmo deseja para si, embora se encontre no termo da vida, a inspiração divina que iluminou o espírito dos antigos profetas da Bíblia.

Ó Musa, que ensinaste o Rei Profeta
Na harpa a modular canções divinas,
                 Tão sábia, tão discreta;
Se a minha humilde Iira tu me afinas,
Pode ser que também o mesmo faça...
                 Musa, Divina Graça!


Se a Moisés, se a David, se a Jeremias
Arrancaste com teu sonoro canto
                 Tão doces melodias;
Se a minha Iira afinas, talvez tanto
Farei, celeste Musa, se me inflamas
                 Em tão divinas chamas.


No 6.º salmo, em delicadíssima imagem, compara Deus ao pelicano que fere o peito para alimentar os seus filhos:

Ó Deus de compaixão, Deus de piedade,
Pelicano de amor, que o peito fendes
                  Com tanta Caridade,
Só para alimentar aos que defendes...


O último salmo − o 7.º − é todo escrito em linguagem náutica, onde se reconhece o poeta que nasceu, viveu e morreu em região marítima, como é a de Aveiro (Canelas, Ílhavo e Mira).

Pois me vejo ancorado neste porto
Tão seguro da Tua mis'ricórdia,
                    Dá-me, meu Deus, conforto
Para com Tigo andar sempre em concórdia;
Não me tires, Senhor, tão forte amarra,
                    Quando eu sair da barra.


Se outra vez velejar c'o pano solto,
Ajuda-me, meu Deus; enche-me as velas,
                    Lá no alto mar revolto,
Com Teu sopro; e me salva das procelas,
E dos corsários crus; que seu forçado
                    Não seja ao remo atado.


Se não fosse a escassez de espaço, o abuso das transcrições e a extensão da poesia, este salmo ficaria à maravilha (como dizem os franceses) nas páginas do Arquivo, onde bastantes leitores que o desconhecem (a ele, salmo) muito o apreciariam, ,principalmente os da zona marítima, que são a maioria. Nas
/ 205 / outras estrofes desta bela composição o poeta emprega os seguintes termos e frases náuticas: parceis, cachopos duros, baixeI roto, ventos seguros, rumo, piloto, leme, bravo mar, sirtes tormentosas, enganosas sereias, tufão, solto pano, manto ousado, agulha, prumo, rota, pego, porto, tempestade. Basta ler esta poesia para avaliar da arte de BINGRE e do seu engenho poético. O Cisne do Vouga era realmente cisne. Impressiona as almas sensíveis ver um poeta deste quilate jazer no mais profundo esquecimento.

Na mesma linguagem náutica, é lindíssima, em forma e conceito, a poesia com que glosou um soneto da 1.ª Viscondessa de Balsemão (D. CATARINA MICAELA DE SOUSA CÉSAR DE LENCASTRE)(3).

O soneto e a glosa foram impressos pela primeira vez em folheto, saído da Tip. do Governo Civil de Aveiro. Eis o princípio da glosa:


Pois à vista do porto estou da morte
Com meu fraco baixel desarvorado,
Por duros furacões dum vento forte
As velas rotas já, leme quebrado;
Pois a agulha num giro desvairado
Não acerta no rumo do seu norte,
A Ti clamo no mísero abandono,
Grande Deus, que do alto desse Trono


Acodes sempre aos ais da humanidade
Amparando o mortal, que a Ti recorre
Nos extremos da sua adversidade:
Se impuro, mas contricto, a Teus pés corre,
Tu o lavas na fonte da piedade;
Como Pai o socorres quando morre;
Do alto desse trono ouvindo o grito,
Lanças o braço ao pecador contricto.


Nesta lindíssima poesia, o poeta faz uma longa resenha dos seus pecados, que talvez exagerasse por espírito de humildade:

Nos prazeres do mundo embriaguei-me;
Os apetites vãos me envenenaram;
Em enganosos filtros enredei-me;
De Ti sórdidos gostos me apartaram...


E mais adiante:

Seguindo a louca voz dos apetites,
Não cuidei de mais nada sobre a Terra;
Minha devassidão foi sem limites;
Os vicias me fizeram dura guerra...

/ 206 /

Aos oitenta e seis anos de idade, ainda vive e, pegando na lira, canta o seu descalabro físico e económico:

Sem forças, sem vigor, curvado ao peso
De oitenta e seis invernos, já não posso
Suster o podre tronco nos esteios
              De umas delgadas canas.


Nos últimos anos da sua vida, era (o que não admira) uma ruína fisiológica, mas ainda versejava:

Perdi todo o calor, sou todo um gelo,
Em torpor é caído o meu Composto;
Tenho frios os pés, mãos, peito, e rosto,
E cheio de saraiva o meu cabelo.


De pálido tornei-me em amarelo,
Perdi todo o sabor, perdi o gosto:
À mísera indigência vivo exposto,
Suportando da gota o cru flagelo.


Transformado num frígido esqueleto,
Conservo quente só o meu juízo,
E no meu coração um grato afecto:


Porém, se me faltar todo o preciso,
De amarelo talvez me torne em preto,
Que é negra a fome neste chão, que piso.


Ao despedir-se para sempre da família (uma filha e netos), refere-se à pobreza extrema com que abandona este mundo e não esquece, embora sem vaidade, a sua glória, o renome literário que conquistara:

Filhos da minha Filha, amados Netos.
Duas vezes meus Filhos tão queridos;
Recebei os meus últimos gemidos,
Recebei meus recônditos afectos.


Vós sois os meus amados mais dilectos,
Em que sempre fixei os meus sentidos;
Queira o Céu que sejais dos escolhidos,
Que Deus escritos tem nos Seus decretos.


Vai o fôro pagar à Natureza
O vosso velho Avô que assaz vos ama,
Envolvido nas mantas da pobreza:


Abrasado de amor na viva chama,
Nada tem que deixar-vos de riqueza,
Mais que o débil pregão da sua fama.

/ 207 /

Foi esta, talvez, a última composição do quase centenário poeta, que só depôs a lira para morrer. Podemos chamar-lhe o seu canto de cisne.

Como os leitores puderam verificar pelas extensas e contínuas transcrições, BINGRE foi, na verdade, um alto poeta e não era em vão, nem pedantemente, que exclamava «o dom, que me foi dado da Poesia», «o dom, que tu me deste, da Poesia» − ele próprio se reconhecendo eleito das Musas. Os versos que transcrevemos confirmam em absoluto as suas afirmações.

Quanto a nós, para à leitor inteligente, a melhor crítica ou comentário a fazer a um poeta... é transcrever-lhe os próprios versos.

ÁLVARO FERNANDES

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_________________________________________

(1)(1) Refere-se principalmente ao célebre navegador JOÃO AFONSO DE AVEIRO, que descobriu as terras de Benim. (V. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 17, pág. 9 e segs.).

(2)O poeta confundiu a data do seu baptismo com a do seu nascimento, que foi a 9 do referido mês e ano.. 

(3) − Nasceu em 1794 e faleceu em 1824. Ver a sua biografia na Ilustração, jornal universal, t. 1, 1845, pág. 127 e seg. Segundo MENDES DOS REMÉDIOS, «a sua obra está inteiramente inédita, mas bem merecia a consagração da publicidade.»

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