Soares da Graça, Rasto das invasões francesas por terras de Anadia, Vol. V, pp. 183-185.

RASTO DAS INVASÕES FRANCESAS POR TERRAS DE ANADIA

AINDA hoje se ouve falar dos franceses em muitas terras do nosso país por onde eles passaram a quando das invasões, e guardam-se na tradição popular lendas e episódios vários dessa época, cuja narrativa ainda não há muitos anos era feita directamente por pessoas de avançada idade que a alguma coisa tinham assistido, ou por outras que reproduziam com grande precisão factos que ouviram narrar a testemunhas presenciais. Tudo isso vai esquecendo pouco a pouco; e das tropelias de toda a ordem que a soldadesca inimiga praticou por esse Portugal além, desde a violação de sepulturas e profanação de templos, até aos mais variados assaltos, roubos, e morticínios, só vagamente hoje se fala.

Pois bem sofreram alguns povos com a entrada do inimigo e sua estada por algum tempo a dentro dos seus muros, vendo as suas casas e fazendas a saque. E as terras circunvizinhas do Buçaco foram as que mais padeceram, como é natural; mas além do que se passou por esse tempo nas cercanias da serra e no Convento, e de que nos ficou relato minucioso nas notas tomadas dia a dia pelos frades(1), não conheço nada, que nos fale em detalhe, dos vandalismos praticados pelas tropas do exército invasor, ao penetrar nos pequenos povoados com que iam deparando na debandada da serra.

Do que aconteceu na freguesia da Moita, poderemos hoje ajuizar em face dum documento que há anos me foi dado ler(2) e do qual tirei algumas notas, que hoje reúno neste artigo. Trata-se dum processo de justificação cível que o então prior daquela freguesia − Cristóvão Pinto de Almeida Souto Maior(3) requereu perante as justiças da vila de Ferreiros, e no qual provou os danos que sofreu da parte do inimigo, que lhe provocaram uma grande baixa nos seus rendimentos paroquiais. / 184 /

A petição foi apresentada em 6 de Julho de 1811, sendo indicados como testemunhas o Capitão Vicente José Gomes, da Quinta da Igreja, Manuel Martins Heleno, António Simões do Vale, Manuel Fernandes Lourenço e Apolinário Gomes Dias, de Carvalhais. Apurou-se que o requerente era o próprio pároco da Moita, a quem nessa qualidade pertencia parte dos dízimos dos frutos colhidos na freguesia, e que por direito eram destinados à sua côngrua, sustentação e mais encargos inerentes ao ofício paroquial; que foi grande a perda sofrida no ano de 1810 e baixa na parte dos referidos dízimos por causa da invasão do inimigo, cujo exército passou por todo o território da freguesia da Moita, desde o último dia de Setembro até 4 de Outubro; que foram à casa do celeiro, à residência paroquial e ainda às casas dos lavradores, roubando os frutos que já estavam colhidos, indo também aos campos onde apanharam e destruíram os que ainda ali havia, sendo o prejuízo total calculado entre 240 a 280.000 reis, o que se tornou público por todas as vizinhanças.

As testemunhas ouvidas confirmaram plenamente a matéria alegada pelo justificante e todas elas depuseram de forma unânime e com conhecimento de causa. Para não tornar mais longo o artigo, transcrevo apenas um dos depoimentos, pois todos eles referem os mesmos factos, mais ou menos nos mesmos termos:

«Apolinario Gomes Dias, lavrador e morador em Carvalhais, jurou aos Santos Evangellhos; − ao primeiro disse sabe pelo ver e conhecer que o Reverendo Justificante he o proprio Parroco Prior desta freguezia de Santheago da Moita termo da Villa de Ferreiros Comarca e Bispado de Aveiro, assim como também o he do logar da Povoa do Pereiro termo da Villa de Avelans de Sima e da Villa de Anadia meeira desta freguezia e da de Sam Paio de Arcos e mais não disse deste − Do segundo disse sabe pelo ver e presenciar que o Reverendo Justificante como Parroco e Prior atual percebe a parte dos dizimos dos fructos que são colhidos nesta dita freguezia os quais são destinados pera sua congrua, sustentação e mais encargos pertensentes ao seu offiicio Parroquial; e mais não disse deste; − Do terceiro disse sabe pela mesma rezão que o anno proximo passado de mil oito centos e dez teve o Reverendo Justificante uma consideravel perda e perjuizo na parte que lhe pertense dos dizimos que percebe na rezão de ser invadida esta freguezia pello exercito francez onde se demorou desde o dia trinta de setembro athe o dia quatro de outubro do dito anno; e mais não disse deste − do quarto disse sabe pela mesma rezão que dito tem que os ditos francezes ou Inemigo comum não só entrarão na casa / 185 / do selleiro do Reverendo justeficante mas ainda nas dos lavradores desta freguezia levando-lhe e roubando-lhe todos os fructos que já se achavão recolhidos e destruindo, roubando e inutelisando os mais que se achavão pendentes pellos campos e siaras desta freguezia donde vinha a subsistencia do Reverendo justeficante; e mais não disse deste; do quinto disse sabe pelo ver que nos ditos roubos e destruissão de fructos recebeo o Reverendo justificante hum grande perjuizo e perda de maneira que na valia e calculo que ele testemunha faz havia de receber de perjuizo o milhar de duzentos e oitenta mil reis; e mais não disse e assignou seu juramento.»

SOARES DA GRAÇA

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(1) Guia Histórico do Viajante no Bussaco, de SIMÕES DE CASTRO.

(2) Processo de Justificação Cível, Arquivo da C. Eclesiástica de Coimbra. 

(3) Da casada Quinta do Morangal, freguesia de EspinheI, concelho de Águeda. 

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