AINDA hoje se ouve falar dos
franceses em muitas terras do nosso país por onde eles passaram a quando
das invasões, e guardam-se na tradição popular lendas e episódios vários
dessa época, cuja narrativa ainda não há muitos anos era feita
directamente por pessoas de avançada idade que a alguma coisa tinham
assistido, ou por outras que reproduziam com grande precisão factos que
ouviram narrar a testemunhas presenciais. Tudo isso vai esquecendo pouco
a pouco; e das tropelias de toda a ordem que a soldadesca inimiga
praticou por esse Portugal além, desde a violação de sepulturas e
profanação de templos, até aos mais variados assaltos, roubos, e
morticínios, só vagamente hoje se fala.
Pois bem sofreram alguns
povos com a entrada do inimigo e sua estada por algum tempo a dentro dos
seus muros, vendo as suas casas e fazendas a saque. E as terras
circunvizinhas do Buçaco foram as que mais padeceram, como é natural;
mas além do que se passou por esse tempo nas cercanias da serra e no
Convento, e de que nos ficou relato minucioso nas
notas tomadas dia a dia pelos frades(1),
não conheço nada, que nos fale em detalhe, dos vandalismos praticados
pelas tropas do exército invasor, ao penetrar nos pequenos povoados com
que iam deparando na debandada da serra.
Do que aconteceu na
freguesia da Moita, poderemos hoje ajuizar em face dum
documento que há anos me foi dado ler(2)
e do qual tirei algumas notas, que hoje reúno neste artigo. Trata-se dum
processo de justificação cível que o então prior
daquela freguesia − Cristóvão Pinto de Almeida Souto Maior(3)
requereu perante as justiças da vila de Ferreiros, e no qual provou os
danos que sofreu da parte do inimigo, que lhe provocaram uma grande
baixa nos seus rendimentos paroquiais.
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A petição foi apresentada em
6 de Julho de 1811, sendo indicados como testemunhas o Capitão Vicente
José Gomes, da Quinta da Igreja, Manuel Martins Heleno, António Simões
do Vale, Manuel Fernandes Lourenço e Apolinário Gomes Dias, de
Carvalhais. Apurou-se que o requerente era o próprio pároco da Moita, a
quem nessa qualidade pertencia parte dos dízimos dos frutos colhidos na
freguesia, e que por direito eram destinados à sua côngrua, sustentação
e mais encargos inerentes ao ofício paroquial; que foi grande a perda
sofrida no ano de 1810 e baixa na parte dos referidos dízimos por causa
da invasão do inimigo, cujo exército passou por todo o território da
freguesia da Moita, desde o último dia de Setembro até 4 de Outubro; que
foram à casa do celeiro, à residência paroquial e ainda às casas dos
lavradores, roubando os frutos que já estavam colhidos, indo também aos
campos onde apanharam e destruíram os que ainda ali havia, sendo o
prejuízo total calculado entre 240 a 280.000 reis, o que se tornou
público por todas as vizinhanças.
As testemunhas ouvidas
confirmaram plenamente a matéria alegada pelo justificante e todas elas
depuseram de forma unânime e com conhecimento de causa. Para não tornar
mais longo o artigo, transcrevo apenas um dos depoimentos, pois todos
eles referem os mesmos factos, mais ou menos nos mesmos termos:
«Apolinario Gomes Dias,
lavrador e morador em Carvalhais, jurou aos Santos Evangellhos; − ao
primeiro disse sabe pelo ver e conhecer que o Reverendo Justificante he
o proprio Parroco Prior desta freguezia de Santheago da Moita termo da
Villa de Ferreiros Comarca e Bispado de Aveiro, assim como também o he
do logar da Povoa do Pereiro termo da Villa de Avelans de Sima e da
Villa de Anadia meeira desta freguezia e da de Sam Paio de Arcos e mais
não disse deste − Do segundo disse sabe pelo ver e presenciar que o
Reverendo Justificante como Parroco e Prior atual percebe a parte dos
dizimos dos fructos que são colhidos nesta dita freguezia os quais são
destinados pera sua congrua, sustentação e mais encargos pertensentes ao
seu offiicio Parroquial; e mais não disse deste; − Do terceiro disse
sabe pela mesma rezão que o anno proximo passado de mil oito centos e
dez teve o Reverendo Justificante uma consideravel perda e perjuizo na
parte que lhe pertense dos dizimos que percebe na rezão de ser invadida
esta freguezia pello exercito francez onde se demorou desde o dia trinta
de setembro athe o dia quatro de outubro do dito anno; e mais não disse
deste − do quarto disse sabe pela mesma rezão que dito tem que os ditos
francezes ou Inemigo comum não só entrarão na casa
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do selleiro do Reverendo justeficante mas ainda nas dos lavradores desta
freguezia levando-lhe e roubando-lhe todos os fructos que já se achavão
recolhidos e destruindo, roubando e inutelisando os mais que se achavão
pendentes pellos campos e siaras desta freguezia donde vinha a
subsistencia do Reverendo justeficante; e mais não disse deste; do
quinto disse sabe pelo ver que nos ditos roubos e destruissão de fructos
recebeo o Reverendo justificante hum grande perjuizo e perda de maneira
que na valia e calculo que ele testemunha faz havia de receber de
perjuizo o milhar de duzentos e oitenta mil reis; e mais não disse e
assignou seu juramento.»
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