SEM
veleidades de lançar a público frases de alto conceito que possam captar
a admiração e aplauso dos sábios e das multidões, lembram-me algumas
notas, mais ou menos curiosas, da minha observação e conhecimento, a
respeito da cidade e que poderão fixar-se e servir de estímulo a outros
que melhor pensem, e melhor as saibam relacionar e desenvolver.
Neste pressuposto, direi,
pois: Em boa hora os fundadores do Arquivo do Distrito de Aveiro
tomaram a iniciativa desta publicação e continuam a servi-la com ânimo e
fervor, vencendo atritos e dificuldades, supervenientes, e captando a
simpatia e o esforço doutros amigos dedicados e bons cultores das letras
pátrias. − Salvam-se, assim, do pó do esquecimento ou
total ruína muitas particularidades que, discretamente aproveitadas,
podem conduzir a descobertas e congeminações de mor tomo; e, às vezes,
até, a conclusões que se julgava difícil ou impossível abordar. Em suma,
às vezes, está aí o misterioso fio de Ariadne que através do labirinto
conduz vitoriosamente à porta do palácio encantado...
Embora, pois, sem autoridade
bastante para emitir louvores e incitamentos, seja-me permitido
congratular-me com a fundação do Arquivo do Distrito de Aveiro, e
com o êxito que vai adquirindo esta publicação, e desejar-lhe todas as
prosperidades.
Da minha parte já pouco mais
ou nada posso fazer de colaboração na obra; mas a verdade é esta: nos
grandes projectos e empreendimentos, se entram lances e peças de grande
tomo, e massa preciosa, não faltam de todo elementos de somenos
importância, a ajuntar às falhas.
Aproveitemos, portanto, o
ensejo para aceitar o apelo que me é feito, uma vez mais, e entrar na
romaria.
II.
Neste Arquivo iniciou-se uma secção de efemérides, que ainda não
vai longa; mas pede inevitável seguimento e alguma frescura. Volvamos,
pois, ao caso.
/ 152 /
Começaram, há tempo, obras
de certa magnitude no edifício dos
Paços do Concelho.
Começaram; têm continuado; e vão durando ainda.
Esse edifício é um dos que
mais dá na vista do observador. − Conheço-o, ao menos no exterior, desde
rapazinho, há mais de meio século, pelo seu vulto, em conjunto; pela sua
fachada nobre e ampla; pela sua torre senhorial donde se escoa o som, a
voz simbólica do antigo sino da «ronda» e das manifestações privativas
de regozijo e de luto nacional; e até pela comparação que desse bronze
consagrado estabeleceu a crítica popular, dizendo dos que não têm
fixidez de sentimentos e opiniões, que são como o sino da Câmara «que
toca com todos os ventos, que é de todos os governos, de todos os
partidos...»
Em suma, o edifício dos
Paços do Concelho não se confunde com outro. Desde tenra idade nos
acostumámos a olhá-lo, a ouvi-lo, com certo respeito e certo temor:
símbolo de autoridade, de justiça; de galardão ou de castigo dos
delinquentes.
A população acostumou-se,
desde longe, a volver para aí a atenção, como para coisa que se teme,
que se respeita, que avisa, adverte e ensina. Domina o panorama e os
ânimos da cidade, e vai mais ao longe; das janelas do andar nobre,
altas, amplas, elegantes, graciosas, avista-se a povoação; a beira
litoral; a ria e os seus canais; e, além, a fita de areia que separa o
oceano − e, por fim, o caminho do porto e a grande laguna, que não tem,
ao longo da costa, igual ou semelhante.
Na verdade, os campos, o
porto, a ria, as salinas, o trânsito de pequenos e grandes barcos nos
canais, a vida própria, são características da região; e que, vistas uma
vez ou mais, devidamente consideradas nunca mais podem esquecer.
III.
O edifício, pois, dos Paços do Concelho, se não domina apoteoticamente
em tudo, e por tudo, pela grandeza e sumptuosidade, domina todavia,
empolga − pela categoria, pela regularidade, pela posição sobranceira e
imperativa sobre o casario citadino, sobre os subúrbios, sobre os
arredores; sobre a geografia e sobre a história.
Na minha já provecta idade,
lembro-me, pois, com respeito e carinho, da vida social e política que
se tem desenrolado aqui; dos velhos e dos novos que passaram e ainda
vivem; que se degladiaram em lutas ásperas e partidos adversos; e que
desapareceram do tablado deste mundo, entregando-se aos segredos
misteriosos de alma, se a têm...
Sunt lacrimae rerum...
− quem há que o não considere!
Conjuntamente, vem à
memória, aspectos, mudanças, particularidades, malsins, exóticas ou
extravagantes, mais ou menos curiosas, que, se muitos esqueceram, outros
as lembram sempre, a granel, a acaso, a propósito ou despropósito. Assim
lembram, reaparecem ou desaparecem, com os lugares, as figuras,
/ 153 /
a representação dos acontecimentos, e como se revive outra vez
transitoriamente!
Lembrava alguém que nós
devíamos ter duas vidas, ou duas séries de vida: uma, a vida ordinária,
breve ou longa, até a Parca lhe pôr termo, até à morte ordinária,
ocorrida de qualquer modo, − e que leva ou manda levar aos páramos da
sepultura; e outra... posterior, isto é, post mortem, conforme o
determinasse o Supremo Autor da Natureza, duma duração média, − para
voltarmos ao que fôramos, para considerarmos as suas fases, − para
conversarmos, sossegadamente, com aqueles com quem convivemos, para
sofrer ou gozar à semelhança do que nos sucedera; e para enfim...
depois, morrermos definitivamente...
Na verdade, se assim
voltaríamos a sofrer, − que consolação, que enlevo não podia haver − de
renovar os sentimentos da alma, de comparar o estado segundo da alma com
a situação primeira, na família, na sociedade, nos exercícios
psicológicos e morais que constituem o que se chama ainda
propriamente... a vida!
Mas a hipótese, se mal se
figura, mais mal ainda se realiza: − temos de aceitar as coisas; os
acontecimentos, em definitivo, como eles são, isto é, como têm sido e
continuarão a ser inexoravelmente.
Em todo o caso, na
impossibilidade de ir mais além, transladarei, si licet, o pouco
ou muito que vier a pêlo, da memória imaginativa, aos bicos da pena já
oxidada e perra.
− O
Largo da Cadeia,
assim singelamente recordado, hoje, relembra o seu antigo prospecto e
aspecto; o seu pavimento de terreno areado, despido e nu; e em frente o
edifício do Liceu, os seus portais de ogiva singela, de que agora
singelamente se desdenharia, e que já se tentou levar
para longe. − Lembra também, ao fundo, a velha
casa do Correio(1), velha, eterna,
impotente para dar lugar a uma construção, sempre hipotética. Lembra o
velho director ou fiel, o médico Crispiniano da Fonseca, e o seu
empregado de confiança, o Godinho, António Maria Godinho da Silveira
Soares de Albergaria, tipo modelar de honradez e fidelidade, que, sendo
miguelista convicto, e de família dos mesmos sentimentos, não quis
aceitar, nem ele nem os irmãos, emprego oficial do regime liberal,
sempre aferrado aos seus princípios, mas inspirava inteira confiança
como empregado particular, como depois longos anos prestou na Caixa
Económica de Aveiro os seus serviços de escrituração, de remuneração
modesta e dedicada. − A Caixa Económica de Aveiro, aonde isso vai! E
como subsiste ainda a aura que obteve e se radicou!
Ao longo da casa do Correio,
fazia-se então a praça da hortaliça, em duas filas de cestos de verga ou
correia, e canastras, até à escadaria que dava até à Costeira...
A Costeira...
/ 154 /
Lembram-se do que era a
Costeira? Uma viela estreita, e esconsa, estrangulada, entre edificações
ordinárias, onde figurou durante muito tempo o António José Lopes,
capitalista e negociante de Ovar; e do lado oposto, o Dom Juan Muné,
fotógrafo, avis rara e boémio; − e a loja do Domingos Pequenino,
Domingos Mourão, e da tia Mariquinhas Mourão, a doceira, do Convento...
Bondade extrema; bondade característica nunca desmentida, − e digna
antecessora e mãe adoptiva da actual Conceição Maria dos Anjos, da mesma
bondade, como se fosse por dinastia.
Vem à tela da memória,
também, de passagem, a
igreja de S. Miguel,
que não cheguei a conhecer em pé, mas que, segundo a tradição, era um
edifício antigo de fábrica artística, delicada, que se foi arruinando,
arruinando, e desapareceu... Estava disposto esse templo de tal modo que
os presos da Cadeia Pública, nos baixos dos Paços do Concelho, ouviam de
lá Missa e assistiam a outros exercícios devotos.
Vejam lá como são as coisas
e como elas mudam! − E se não tem certo sabor moral recordá-las, muito
de passagem!
Recordar a Costeira, o Largo
da Cadeia; o Correio; o pardieiro e silveiral onde mais tarde se
construiu o teatro(2); e até as questões que se levantaram sobre o título a
dar a essa casa de espectáculos, sobre a primazia dos accionistas
conforme o maior ou menor número de acções tomadas...
Mas estes apontamentos vão
agora já extensos. Si licet... verão depois o seu seguimento.
P.e RODRIGUES VIEIRA |