Rodrigues Vieira, Lembranças e esquecimentos, Vol. V, pp. 151-154.

LEMBRANÇAS

E ESQUECIMENTOS

SEM veleidades de lançar a público frases de alto conceito que possam captar a admiração e aplauso dos sábios e das multidões, lembram-me algumas notas, mais ou menos curiosas, da minha observação e conhecimento, a respeito da cidade e que poderão fixar-se e servir de estímulo a outros que melhor pensem, e melhor as saibam relacionar e desenvolver.

Neste pressuposto, direi, pois: Em boa hora os fundadores do Arquivo do Distrito de Aveiro tomaram a iniciativa desta publicação e continuam a servi-la com ânimo e fervor, vencendo atritos e dificuldades, supervenientes, e captando a simpatia e o esforço doutros amigos dedicados e bons cultores das letras pátrias. − Salvam-se, assim, do pó do esquecimento ou
total ruína muitas particularidades que, discretamente aproveitadas, podem conduzir a descobertas e congeminações de mor tomo; e, às vezes, até, a conclusões que se julgava difícil ou impossível abordar. Em suma, às vezes, está aí o misterioso fio de Ariadne que através do labirinto conduz vitoriosamente à porta do palácio encantado...

Embora, pois, sem autoridade bastante para emitir louvores e incitamentos, seja-me permitido congratular-me com a fundação do Arquivo do Distrito de Aveiro, e com o êxito que vai adquirindo esta publicação, e desejar-lhe todas as prosperidades.

Da minha parte já pouco mais ou nada posso fazer de colaboração na obra; mas a verdade é esta: nos grandes projectos e empreendimentos, se entram lances e peças de grande tomo, e massa preciosa, não faltam de todo elementos de somenos importância, a ajuntar às falhas.

Aproveitemos, portanto, o ensejo para aceitar o apelo que me é feito, uma vez mais, e entrar na romaria.

II. Neste Arquivo iniciou-se uma secção de efemérides, que ainda não vai longa; mas pede inevitável seguimento e alguma frescura. Volvamos, pois, ao caso. / 152 /

Começaram, há tempo, obras de certa magnitude no edifício dos Paços do Concelho. Começaram; têm continuado; e vão durando ainda.

Esse edifício é um dos que mais dá na vista do observador. − Conheço-o, ao menos no exterior, desde rapazinho, há mais de meio século, pelo seu vulto, em conjunto; pela sua fachada nobre e ampla; pela sua torre senhorial donde se escoa o som, a voz simbólica do antigo sino da «ronda» e das manifestações privativas de regozijo e de luto nacional; e até pela comparação que desse bronze consagrado estabeleceu a crítica popular, dizendo dos que não têm fixidez de sentimentos e opiniões, que são como o sino da Câmara «que toca com todos os ventos, que é de todos os governos, de todos os partidos...»

Em suma, o edifício dos Paços do Concelho não se confunde com outro. Desde tenra idade nos acostumámos a olhá-lo, a ouvi-lo, com certo respeito e certo temor: símbolo de autoridade, de justiça; de galardão ou de castigo dos delinquentes.

A população acostumou-se, desde longe, a volver para aí a atenção, como para coisa que se teme, que se respeita, que avisa, adverte e ensina. Domina o panorama e os ânimos da cidade, e vai mais ao longe; das janelas do andar nobre, altas, amplas, elegantes, graciosas, avista-se a povoação; a beira litoral; a ria e os seus canais; e, além, a fita de areia que separa o oceano − e, por fim, o caminho do porto e a grande laguna, que não tem, ao longo da costa, igual ou semelhante.

Na verdade, os campos, o porto, a ria, as salinas, o trânsito de pequenos e grandes barcos nos canais, a vida própria, são características da região; e que, vistas uma vez ou mais, devidamente consideradas nunca mais podem esquecer.


III. O edifício, pois, dos Paços do Concelho, se não domina apoteoticamente em tudo, e por tudo, pela grandeza e sumptuosidade, domina todavia, empolga − pela categoria, pela regularidade, pela posição sobranceira e imperativa sobre o casario citadino, sobre os subúrbios, sobre os arredores; sobre a geografia e sobre a história.

Na minha já provecta idade, lembro-me, pois, com respeito e carinho, da vida social e política que se tem desenrolado aqui; dos velhos e dos novos que passaram e ainda vivem; que se degladiaram em lutas ásperas e partidos adversos; e que desapareceram do tablado deste mundo, entregando-se aos segredos misteriosos de alma, se a têm...

Sunt lacrimae rerum... − quem há que o não considere!

Conjuntamente, vem à memória, aspectos, mudanças, particularidades, malsins, exóticas ou extravagantes, mais ou menos curiosas, que, se muitos esqueceram, outros as lembram sempre, a granel, a acaso, a propósito ou despropósito. Assim lembram, reaparecem ou desaparecem, com os lugares, as figuras, / 153 / a representação dos acontecimentos, e como se revive outra vez transitoriamente!

Lembrava alguém que nós devíamos ter duas vidas, ou duas séries de vida: uma, a vida ordinária, breve ou longa, até a Parca lhe pôr termo, até à morte ordinária, ocorrida de qualquer modo, − e que leva ou manda levar aos páramos da sepultura; e outra... posterior, isto é, post mortem, conforme o determinasse o Supremo Autor da Natureza, duma duração média, − para voltarmos ao que fôramos, para considerarmos as suas fases, − para conversarmos, sossegadamente, com aqueles com quem convivemos, para sofrer ou gozar à semelhança do que nos sucedera; e para enfim... depois, morrermos definitivamente...

Na verdade, se assim voltaríamos a sofrer, − que consolação, que enlevo não podia haver − de renovar os sentimentos da alma, de comparar o estado segundo da alma com a situação primeira, na família, na sociedade, nos exercícios psicológicos e morais que constituem o que se chama ainda propriamente... a vida!

Mas a hipótese, se mal se figura, mais mal ainda se realiza: − temos de aceitar as coisas; os acontecimentos, em definitivo, como eles são, isto é, como têm sido e continuarão a ser inexoravelmente.

Em todo o caso, na impossibilidade de ir mais além, transladarei, si licet, o pouco ou muito que vier a pêlo, da memória imaginativa, aos bicos da pena já oxidada e perra.

− O Largo da Cadeia, assim singelamente recordado, hoje, relembra o seu antigo prospecto e aspecto; o seu pavimento de terreno areado, despido e nu; e em frente o edifício do Liceu, os seus portais de ogiva singela, de que agora singelamente se desdenharia, e que já se tentou levar para longe. − Lembra também, ao fundo, a velha casa do Correio(1), velha, eterna, impotente para dar lugar a uma construção, sempre hipotética. Lembra o velho director ou fiel, o médico Crispiniano da Fonseca, e o seu empregado de confiança, o Godinho, António Maria Godinho da Silveira Soares de Albergaria, tipo modelar de honradez e fidelidade, que, sendo miguelista convicto, e de família dos mesmos sentimentos, não quis aceitar, nem ele nem os irmãos, emprego oficial do regime liberal, sempre aferrado aos seus princípios, mas inspirava inteira confiança como empregado particular, como depois longos anos prestou na Caixa Económica de Aveiro os seus serviços de escrituração, de remuneração modesta e dedicada. − A Caixa Económica de Aveiro, aonde isso vai! E como subsiste ainda a aura que obteve e se radicou!

Ao longo da casa do Correio, fazia-se então a praça da hortaliça, em duas filas de cestos de verga ou correia, e canastras, até à escadaria que dava até à Costeira... A Costeira... / 154 /

Lembram-se do que era a Costeira? Uma viela estreita, e esconsa, estrangulada, entre edificações ordinárias, onde figurou durante muito tempo o António José Lopes, capitalista e negociante de Ovar; e do lado oposto, o Dom Juan Muné, fotógrafo, avis rara e boémio; − e a loja do Domingos Pequenino, Domingos Mourão, e da tia Mariquinhas Mourão, a doceira, do Convento... Bondade extrema; bondade característica nunca desmentida, − e digna antecessora e mãe adoptiva da actual Conceição Maria dos Anjos, da mesma bondade, como se fosse por dinastia.

Vem à tela da memória, também, de passagem, a igreja de S. Miguel, que não cheguei a conhecer em pé, mas que, segundo a tradição, era um edifício antigo de fábrica artística, delicada, que se foi arruinando, arruinando, e desapareceu... Estava disposto esse templo de tal modo que os presos da Cadeia Pública, nos baixos dos Paços do Concelho, ouviam de lá Missa e assistiam a outros exercícios devotos.

Vejam lá como são as coisas e como elas mudam! − E se não tem certo sabor moral recordá-las, muito de passagem!

Recordar a Costeira, o Largo da Cadeia; o Correio; o pardieiro e silveiral onde mais tarde se construiu o teatro(2); e até as questões que se levantaram sobre o título a dar a essa casa de espectáculos, sobre a primazia dos accionistas conforme o maior ou menor número de acções tomadas...

Mas estes apontamentos vão agora já extensos. Si licet... verão depois o seu seguimento.

P.e RODRIGUES VIEIRA

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(1) − A casa do correio não era muito antiga, pois que é mais moderna que o Liceu. A. igreja de S. Miguel foi demolida propositadamente, e não por estar arruinada. Os presos ouviam a missa que era rezada numa capela exterior à igreja, construída para esse fim pela Câmara em 1706. [Nota de JOSÉ FERREIRA DE SOUSA]

 

(2) − Não era pardieiro, mas sim as paredes já construídas até a altura das vergas das portas e destinadas ao Teatro. Como a obra ficasse longo tempo parada, ali se desenvolveram as silvas. Esta construção principiou no dia 22 de Junho de 1857, no sítio das casas que foram de João Veríssimo. [Nota de JOSÉ FERREIRA DE SOUSA]

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