I
NÃO se pode fazer a história
de Águeda sem saber a
história da igreja e a história do hospital. Nestes dois padrões da
religiosidade e caridade cristãs reside a explicação da origem, assim
como na situação geográfica se encontra a . causa do desenvolvimento
desse aglomerado de casas que, do porto de Santa Eulália
de 1017, se transformou no florescente lugar que toma o nome do rio
que, há dez séculos(1)
pelo menos, e quem sabe há quantos mais, se chama Águeda.
II
Importa, para este caso
especial(2), dar apenas a ideia nos seus traços gerais de onde nasceu e
há quanto tempo vive o Hospital de Águeda. Desde o século VI, com a
expansibilidade do cristianismo coroado pela conversão de Recaredo, que
se haviam fundado, por toda a Espanha, grande número de obras pias,
entre as quais avultavan1 as albergarias, umas vezes junto dos conventos
e outras, mais geralmente, isoladas e dotadas de bens próprios para a
sua sustentação(3). Camas, roupas, sal e água para os passageiros
pobres usarem era o que o administrador, ou provedor nomeado pelo rei,
tinha de fornecer gratuitamente em troca do usufruto da casa e terras
mais ou menos vastas de que ficava senhor. Se era poderoso o instituidor,
/ 120 / como
sucedeu com Paio Delgado ou Bartolomeu
Domingues, dava no futuro em pingues morgados a obra de
caridade, porque o seu rendimento, além de beneficiar o pobre,
chegava também para imortalizar ilustres famílias que, como
a dos Carvalhos e a dos Soares de Albergaria, abririam um
largo crédito nas páginas da nossa história. Se eram pobres,
ou se as propriedades se haviam desvalorizado no rendimento (porque
constando geralmente de prazos os foros eram de valor
fixo e não acompanhavam a progressiva carestia da vida), então
essas albergarias estavam condenadas a desaparecer, ou a
fundirem-se pela sua insignificância com outras novas instituições
herdeiras dos eternos princípios de beleza que as haviam gerado.
Está neste último caso a velha albergaria de Águeda, de
cuja existência um documento da primeira metade do século XV
nos não permite duvidar. Ei-lo: «D. Afonso rei de portugal e
do algarue senhor de cepta − a quantos esta carta vjrem ffazemos ssaber que nos querendo fazer graça e mercee a affonso
anes Temos por bem e damo o daquj em deante en quanto nossa mercee for
por prouedor e ministrador da albergaria
dagada asj e polIa gujza que o erom os prouedores que o antes
elIe fforom e porem mandamos aos juizes do dito lugar e ao
nosso contador da dita comarqua e ao almoxarife e ao escrjvam
que ora ssom e ao deante forem e a outros quaisquer oficiaes
e pessoas a que esto pertencer e esta carta for mostrada que
ajam daqui en deante enquanto nossa mercee ffor por prouedor e minjstrador da ditta albergaria o dito afonso
anes como dito he e outro nenhúu nom e lhe leixen requerer e fazer adubar e
aproueitar todalas vinhas erdades e beens que a
dita albergaria ha / os quaes beens queremos e mandamos que
con autoridade de vos sobreditos juizes e de húu tabalian ssejam
vistos e posto en escripto assj e pela gujsa que forem corregidos e rrepairados e os entreguees
a elIe dito affonso annes e
orrjginalI desto e inventairo fique en poder deII dito tabaliam e a elIe seja dado os tos. de todo por ssua guarda e mandamos que lhe leixen
auer para ssj todolos foros e direitos e rendas
dos ditos beens e coussas que pertencerem a albergaria sen
outro embargo que ssobre elIo ponhan contanto que elIe mantenha a dicta albergaria e as
camas e as outras coussas que se
en elIa ham de manteer polos dictos beens Dada na cidade
devora Xbiij de nouenbro alvaro viaeiro a
fez ano de nosso Sr.
jesu Xpto de mill e iiij e Rix(4).
Além deste, há outro documento produzido trinta e dois
anos mais tarde,(5) em que se vê que sendo procurada se não
/ 121 /
[Vol. V - N.º 8 - 1939]
encontrou a instituição que ao tempo corria fama de ser antiga.
Dum documento congénere a respeito da albergaria das Pedras
Talhadas (Doninhas)
(6) se diz haver sido uma Rainha que a
instituiu. A albergaria fundada em sítio deserto, que deu origem a Albergaria a Velha, o foi pela
Rainha D. Teresa, mãe
de D. Afonso Henriques. Sabe-se que a esta Rainha e à Rainha
Mafalda, sua nora, se devem a maior parte das albergarias
espalhadas por esse país, além de que, na inquirição do .princípio do
século XIII, se declara ainda padroeiro da igreja de Águeda
Afonso II(7) e, consequentemente,
ele e seus antecessores seriam
presumíveis senhores dos terrenos adjacentes que a Rainha por ventura
doara.
A antiguidade é certa, embora seja incerta a época da
instituição.
III
Ajuda-nos, também, a
considerar remota essa instituição
uma tão interessante como formosa lenda que um anónimo do
século XVIII teve a feliz ideia de registar na margem de uma
das amarelecidas folhas do velho Tombo do Hospital. Tinha
este uma terra de quatrocentas e setenta varas de comprido
por quatro e meia de largo somente, que, como a fita dum
caminho, se estendia desde a margem do rio, junto à ponte,
até à estrada do Sardão a Recardães, junto à Corga. «Esta terra
(diz o anónimo) está na Varzia de Recardaens pegada ao
comaro de João Tauares digo ao cõmaro do Capitão João
Tauares da ponte arrenda á o Hospital pello preco que lhe pareçã (?)
parte do norte com o rio e do sul com a estrada que
vem do Sardam pª . Recardaens . e tem dizima a Deus e foi
dada pella Raynha Sãcta ao hospital da Largura do coche em
que vinha de S. Thiago pela estrada do cruzeiro de Paredes
por ser naquele tempo a melhor, e passando pela estrada das
Larangeiras defronte do dito Hospital, no tempo do estio em
direitura ao campo Limpo já dos fructos ate a estrada da corga, tempo em
que não havia quintal de Miguel Henriques da
Ponte etc.»(8). E desta maneira poética se fica sabendo porque
era tão comprida e tão estreita aquela propriedade. Que adorável ingenuidade a do nosso anónimo,
quando nos diz que
ainda não existia ao tempo o quintal de Miguel Henriques da
Ponte(9)! De coche, é claro, a Rainha não passou, pela simples
razão de que tal coisa não havia naquela época e só começou
a aparecer no fim do século XVI ou princípio do XVII, muito
/ 122 / raramente, tornando-se vulgar só depois do meado deste último
século. A cavalo ou em andas é que era costume andarem as Donas daquele
tempo; mas nada quer dizer este pequeno adulteramento da verdade em
face do fundo de sinceridade que
transpira da lenda; e esse atavio imaginário e inofensivo, de
que é tão fácil à crítica despi-la, é próprio de todas as lendas que
tomam sucessivamente a fisionomia das épocas por que vão passando.
Mas a Rainha Santa Isabel foi de facto a S. Tiago? Foi esta a primeira
pergunta que a mim mesmo fiz e cuja verdade procurei esclarecer.
IV
Depois de vagarosa e
cuidadosamente haver percorrido as páginas do severo e erudito trabalho
de RIBEIRO DE VASCONCELOS,
sobre D. Isabel de Aragão, fiquei convencido, mais uma vez, que esta,
como todas as lendas, tinha um fundo de verdade e que o anónimo não
inventara, mas fora apenas eco de uma tradição que, pelo menos, em
parte, os documentos registavam.
A 7 de Janeiro de 1325 falecera em Santarém, nos braços
da Rainha, El-rei D. Dinis, que remexera agricolamente com seus
aforamentos, procurando tornar fecunda, a terra de Portugal, que o
abençoava, imortalizando-o com o cognome simpático de
Lavrador. Como todos os homens grandes, teve tempo para tudo: para amar
como todos, para poetar como poucos e para como nenhum outro criar a
Universidade.
D. Isabel, mal expirara o marido, vestira o hábito das Claristas; mas
vestira-o em sinal de dó e não, segundo expressamente declarou,
implicando o facto acto de profissão ou clausura, pois desejava, acima
de tudo, manter íntegra a sua
liberdade de acção, podendo despir o mesmo hábito sempre que julgasse
conveniente, o qual recebera das mãos de suas camareiras, Donas
Seculares, e não da mão de religiosas. Continuaria sustentando Donas e
Donzelas, casando-as como convinha à honra do seu estado, e vivendo com
os seus familiares em seus próprios castelos e lugares, sem obrigar sua
pessoa e bens a nenhuma Ordem, regra ou colégio quer antes, quer até
depois da sua morte. Ela conhecia profundamente a sociedade do seu
tempo. O vergonhoso caso de D. Maior Dias,
cujas intenções haviam sido miseravelmente deturpadas, mesmo
já em vida, fora para ela edificante. Lutara, vencera, mas
aprendera também. Gastou os primeiros tempos que se seguiram à morte de
D. Dinis, sufragando-lhe a alma e dando execução às clausulas do
testamento de que era principal testamenteira e, ao aproximar-se o
verão, partiu em peregrinação para lucrar das indulgências de que era
rica a basílica do apóstolo S. Tiago. Precisava estar de volta antes do
aniversário
/ 123 /
da morte do marido. Iria a Odivelas, e depois fixaria definitivamente residência em Coimbra. Fez, no entanto, mistério a
grande Rainha da sua ida a S. Tiago; por isso talvez passasse um tanto
despercebida, pois «os de sá companha per alguns dias que non entendião
a que partes hir queria, atá que nom chegou acerca de Santiago a hum
logar que he alõgado da Villa per huma legoa...»; já outro tanto não
sucedeu na volta em que «as gentes das comarcas per hu vinha sahião de
sá propria vontade aos caminhos, e logares hu passaua por a veerem, por
a bondade que della ouuiom dizer»(10). Isto na generalidade, porque não especializa terra alguma. Não conheço lenda alguma, ao norte de Águeda,
que me possa guiar. Ao sul, porém, temos a do Cértoma, à qual se
encontram referências no século XVIII já,(11) que, embora como
explicação do nome deste rio − agua certo má − seja infantil e
absolutamente prejudicada por numerosa documentação dos Portugaliae
Monumenta Historica, não é para desprezar.
A Rainha atravessaria o rio?
Teria ido por Aveiro?
Esta vila era regalenga desde 1306, data em que D. Dinis,
por contrato de escambo com os conventos de S. João de Tarouca e
Celas
de Guimarães de a par de Coimbra, adquirira duas partes da mesma;(12)
mas a sua importância não podia ser grande; o crescimento da população
na Idade Média era lento e havia pouco mais de um século que fora
trocada pela vila sertaneja de Avô
(13).
A ideia de um embarque até Ovar, embora pudesse admitir-se, tem que ser
posta de parte, visto que ao descrever-se o que a Rainha levava quando
foi a S. Tiago se diz «a mua era enfreada de hum freo que nom era senom
ouro e prata e pedras preciosas» o que prova que ia a cavalo. A ida por
Aveiro neste meio de transporte não é muito natural. A principal via de
comunicação entre o norte e o sul do país, provada por documentos desde
época muito mais remota do que aquela que nos interessa, passava por
Águeda e era o mais curto caminho entre Coimbra e o Porto. Encontram-se
mencionadas
as pontes de Águeda e Vouga, que, naturalmente, andariam em
construção em 1262 e 1298, nos testamentos do chantre Gonçalo Gonçalves
e de seu sobrinho o bispo D. Sancho, do Porto(14). A ponte de Coimbra,
principiada em 1132(15), foi acabada por
/ 124 / esta época, e bem podiam ser aquelas começadas na mesma ocasião.
Há todas as probabilidades da Rainha Santa ter passado
por aqui, mas, não havendo documentação, é lícito duvidar pelo penos enquanto se não souber de lenda, em terras ao norte de Águeda,
que se relacione com o facto.
V
Conhecida a lenda, é curioso
registar a seguinte coincidência: quando três séculos depois se realizaram, em Coimbra, as
festas da canonização, da Rainha, foi encarregado de pregar o sermão um
padre de Águeda.
E não foi certamente por ser de Águeda que o Dr. Frei
Jorge Pinheiro foi indicado para tal fim; mas sim pelo prestígio
que cercava o seu nome, como orador sagrado, que o fez subir de Prior do
Convento da Batalha, Lente da Universidade e
deputado da Inquisição, ao mais alto lugar a que podia aspirar
dentro da sua religião e da sua pátria − Provincial da Ordem
de S. Domingos.
VI
No ano de 1533, certamente
sob a influência da corrente do Renascimento, de que foi uma das
principais colaboradoras a Rainha D. Leonor, protectora de Gil Vicente e
criadora das
Misericórdias, o Rei D. João III mandou proceder à organização do Tombo
das propriedades do Hospital de Águeda, do qual
consta ter o mesmo Hospital duas casas onde moravam «os albregeiros e
osPitaleiros», uma que servia de em ela se
agasalharem os pobres e pedintes, isto é, a albergaria antiga
e a outra que era uma casa de forno aonde estavam os « osPitaleiros», isto é, naturalmente aqueles que tratavam do Hospital.
Estas casas eram térreas e ocupavam pouco mais ou menos
o sítio onde hoje está uma casa do Sr. António de Almeida,
comerciante,(16) toda a embocadura da Rua Ferraz de Macedo e ainda
talvez entrasse no prédio confinante do lado do nascente, porque tinha
de frente vinte e três varas, sendo o fundo de oito.
Estas casas do Hospital foram demolidas com a abertura da nova estrada
para o Porto, funcionando posteriormente o mesmo numa casa da
encruzilhada da Rua de Baixo com a de
José Maria VeIoso (casa aonde hoje mora o Sr. J. Freitas
Sucena) enquanto se construía o edifício da rua do Barril, vendido
/ 125 /
pela Misericórdia(17) por anti-higiénico, em praça, em Aveiro,
em Junho de 1900.
|
HOSPITAL-ASILO CONDE DE SUCENA
Actualidade |
É evidente que todas as casas da vila, que pagavam foro ao Hospital,
foram construídas em terreno de uma propriedade rústica que em épocas
remotas alguém deu para, com seu rendimento, se sustentar a albergaria.
Grosso modo pode considerar-se essa propriedade como circunscrita por
uma linha que, partindo do Oeste do Botaréo, atravessasse a Rua de Baixo
em direcção ao norte, até chegar às traseiras das casas da Rua de Cima,
e daí voltasse para o nascente (sempre por detrás das casas) até se
encontrar perfeitamente ao sul de um ponto
determinado na Rua de Cima pela extremidade de uma linha de vinte e nove
varas, começadas a contar da Viela dos Padres. Neste ponto a mesma linha
atravessaria essa rua e as casas em direcção ao norte até ao caminho da
igreja, retrocedendo então para a Viela dos Padres, aonde obliquaria
para noroeste (por detrás das casas da Praça Nova) até encontrar o
caminho da Rua de S. Bento para a igreja, o qual seguiria até às
escadas, tomando daí para o norte até se encontrar em frente da porta da Alta-Vila, contra a qual seguiria, voltando pela Rua do Vale
/ 126 / em direcção ao Barril e daí pela margem do rio ao Botaréo,
aonde começara.
Havia, além disto, casas no Outeiro do Vale e terras no
campo de Recardães.
VII
|
Em 1639 organizou-se um novo
Tombo, (o mais antigo que actualmente existe) transcrevendo-se o
antigo, com
o visível fim de actualizar os nomes dos foreiros e registar as casas
construídas no espaço que medeia entre a organização de um e outro Tombo.
Comparando minuciosamente o Tombo do Hospital com o da Igreja,
pode-se estabelecer com
rigor, do lado do nascente, a trajectória da linha acima descrita. Estes dois documentos são
preciosos pela visão retrospectiva que nos concedem e devem ser
guardados religiosamente, pois, se eles porventura tivessem desaparecido, ficariam para sempre
inexplicados fenómenos indispensáveis à compreensão da história de
Águeda.
|
JOSÉ
RODRIGUES SUCENA
1.º Conde de Sucena |
VIII
Com o produto da venda do
velho Hospital, promovida pelo provedor da Misericórdia José Rodrigues
Sucena, Visconde e primeiro Conde de Sucena, dada a larga liberalidade
deste, foi
possível inaugurar-se em 1922 o novo edifício, em condições de
comodidade e desenvolvimento que se não podem certamente
comparar com as do primitivo, ao qual se deu o nome de
Hospital-Asilo Conde de Sucena, esquecendo-se, assim, o que
um Hospital ao outro deve, circunstância que se procura remediar, restabelecendo por esta forma a tradição.
CONDE DA BORRALHA |
(1)
− Portugaliae Mon. Hist., Diplom. et Chartae, doc. XI.
(2)
−
Este ligeiro estudo foi feito para depois de impresso ser posto à
venda, revertendo o seu produto em benefício do hospital.
(3)
−
Vide Elucidário de VITERBO,
palavra Albergaria.
(4)
−
Chancel. de D. Afonso V, I, 37,
fl. 18, verso.
(5)
−
Estremadura, 7 fl., 10. Na Chancelaria de D. Afonso V
está ilegível esta carta.
(6)
−
Chancel. de D. Afonso V, livro 26,
fl. 6.
(7)
−
Inquirições de D. Afonso II, livro 2,
fl. 128, verso.
(8)
−
Tombo do Hospital de Águeda (ano de 1639)
fl. 31, verso.
(9)
−
Este faleceu em 1785.
(10)
− R. VASCONCELOS, D. Isabel de Aragão,
VI, I, pág. 48-49.
(11)
− BAPTISTA DE CASTRO, Mapa de Portugal, ed. 1870, VI, I, pág. 72.
(12)
− Chanc. de D. Dinis, livro 5,
fl. 68 e 70.
(13)
− Ibidem, fl. 69.
(14)
− Dissert. Chronol., J. P.
RIBEIRO, ed.. de 1896, tomo V, pág. 77 e
80.
(15)
− R. DE VASCONCELOS, D. Isabel de Aragão, vol.
I, pág. 134.
(16)
−
Antiga casa da Rosa Bicha, na Praça
Nova.
(17)
−
A qual havia sido instituída em 12 de
Novembro de 1859.
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