Conde da Borralha, Águeda. O hospital de Águeda (Apontamentos para a sua história), Vol. V, pp. 119-126.

ÁGUEDA VIII

O HOSPITAL DE ÁGUEDA

(APONTAMENTOS PARA A SUA HISTÓRIA)

I

NÃO se pode fazer a história de Águeda sem saber a história da igreja e a história do hospital. Nestes dois padrões da religiosidade e caridade cristãs reside a explicação da origem, assim como na situação geográfica se encontra a . causa do desenvolvimento desse aglomerado de casas que, do porto de Santa Eulália de 1017, se transformou no florescente lugar que toma o nome do rio que, há dez séculos(1) pelo menos, e quem sabe há quantos mais, se chama Águeda.

II

Importa, para este caso especial(2), dar apenas a ideia nos seus traços gerais de onde nasceu e há quanto tempo vive o Hospital de Águeda. Desde o século VI, com a expansibilidade do cristianismo coroado pela conversão de Recaredo, que se haviam fundado, por toda a Espanha, grande número de obras pias, entre as quais avultavan1 as albergarias, umas vezes junto dos conventos e outras, mais geralmente, isoladas e dotadas de bens próprios para a sua sustentação(3). Camas, roupas, sal e água para os passageiros pobres usarem era o que o administrador, ou provedor nomeado pelo rei, tinha de fornecer gratuitamente em troca do usufruto da casa e terras mais ou menos vastas de que ficava senhor. Se era poderoso o instituidor, / 120 / como sucedeu com Paio Delgado ou Bartolomeu Domingues, dava no futuro em pingues morgados a obra de caridade, porque o seu rendimento, além de beneficiar o pobre, chegava também para imortalizar ilustres famílias que, como a dos Carvalhos e a dos Soares de Albergaria, abririam um largo crédito nas páginas da nossa história. Se eram pobres, ou se as propriedades se haviam desvalorizado no rendimento (porque constando geralmente de prazos os foros eram de valor fixo e não acompanhavam a progressiva carestia da vida), então essas albergarias estavam condenadas a desaparecer, ou a fundirem-se pela sua insignificância com outras novas instituições herdeiras dos eternos princípios de beleza que as haviam gerado.

Está neste último caso a velha albergaria de Águeda, de cuja existência um documento da primeira metade do século XV nos não permite duvidar. Ei-lo: «D. Afonso rei de portugal e do algarue senhor de cepta − a quantos esta carta vjrem ffazemos ssaber que nos querendo fazer graça e mercee a affonso anes Temos por bem e damo o daquj em deante en quanto nossa mercee for por prouedor e ministrador da albergaria dagada asj e polIa gujza que o erom os prouedores que o antes elIe fforom e porem mandamos aos juizes do dito lugar e ao
nosso contador da dita comarqua e ao almoxarife e ao escrjvam que ora ssom e ao deante forem e a outros quaisquer oficiaes e pessoas a que esto pertencer e esta carta for mostrada que ajam daqui en deante enquanto nossa mercee ffor por prouedor e minjstrador da ditta albergaria o dito afonso anes como dito he e outro nenhúu nom e lhe leixen requerer e fazer adubar e aproueitar todalas vinhas erdades e beens que a dita albergaria ha / os quaes beens queremos e mandamos que con autoridade de vos sobreditos juizes e de húu tabalian ssejam vistos e posto en escripto assj e pela gujsa que forem corregidos e rrepairados e os entreguees a elIe dito affonso annes e orrjginalI desto e inventairo fique en poder deII dito tabaliam e a elIe seja dado os tos. de todo por ssua guarda e mandamos que lhe leixen auer para ssj todolos foros e direitos e rendas dos ditos beens e coussas que pertencerem a albergaria sen outro embargo que ssobre elIo ponhan contanto que elIe mantenha a dicta albergaria e as camas e as outras coussas que se en elIa ham de manteer polos dictos beens Dada na cidade devora Xbiij de nouenbro alvaro viaeiro a fez ano de nosso Sr. jesu Xpto de mill e iiij e Rix
(4).

Além deste, há outro documento produzido trinta e dois anos mais tarde,(5) em que se vê que sendo procurada se não / 121 / [Vol. V - N.º 8 - 1939] encontrou a instituição que ao tempo corria fama de ser antiga. Dum documento congénere a respeito da albergaria das Pedras Talhadas (Doninhas) (6) se diz haver sido uma Rainha que a instituiu. A albergaria fundada em sítio deserto, que deu origem a Albergaria a Velha, o foi pela Rainha D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques. Sabe-se que a esta Rainha e à Rainha Mafalda, sua nora, se devem a maior parte das albergarias espalhadas por esse país, além de que, na inquirição do .princípio do século XIII, se declara ainda padroeiro da igreja de Águeda Afonso II(7) e, consequentemente, ele e seus antecessores seriam presumíveis senhores dos terrenos adjacentes que a Rainha por ventura doara.

A antiguidade é certa, embora seja incerta a época da instituição.

III

Ajuda-nos, também, a considerar remota essa instituição uma tão interessante como formosa lenda que um anónimo do século XVIII teve a feliz ideia de registar na margem de uma das amarelecidas folhas do velho Tombo do Hospital. Tinha este uma terra de quatrocentas e setenta varas de comprido por quatro e meia de largo somente, que, como a fita dum caminho, se estendia desde a margem do rio, junto à ponte, até à estrada do Sardão a Recardães, junto à Corga. «Esta terra (diz o anónimo) está na Varzia de Recardaens pegada ao comaro de João Tauares digo ao cõmaro do Capitão João Tauares da ponte arrenda á o Hospital pello preco que lhe pareçã (?) parte do norte com o rio e do sul com a estrada que vem do Sardam pª . Recardaens . e tem dizima a Deus e foi dada pella Raynha Sãcta ao hospital da Largura do coche em que vinha de S. Thiago pela estrada do cruzeiro de Paredes por ser naquele tempo a melhor, e passando pela estrada das Larangeiras defronte do dito Hospital, no tempo do estio em direitura ao campo Limpo já dos fructos ate a estrada da corga, tempo em que não havia quintal de Miguel Henriques da Ponte etc.»(8). E desta maneira poética se fica sabendo porque era tão comprida e tão estreita aquela propriedade. Que adorável ingenuidade a do nosso anónimo, quando nos diz que ainda não existia ao tempo o quintal de Miguel Henriques da Ponte(9)! De coche, é claro, a Rainha não passou, pela simples razão de que tal coisa não havia naquela época e só começou a aparecer no fim do século XVI ou princípio do XVII, muito / 122 / raramente, tornando-se vulgar só depois do meado deste último século. A cavalo ou em andas é que era costume andarem as Donas daquele tempo; mas nada quer dizer este pequeno adulteramento da verdade em face do fundo de sinceridade que transpira da lenda; e esse atavio imaginário e inofensivo, de que é tão fácil à crítica despi-la, é próprio de todas as lendas que tomam sucessivamente a fisionomia das épocas por que vão passando.

Mas a Rainha Santa Isabel foi de facto a S. Tiago? Foi esta a primeira pergunta que a mim mesmo fiz e cuja verdade procurei esclarecer.

IV

Depois de vagarosa e cuidadosamente haver percorrido as páginas do severo e erudito trabalho de RIBEIRO DE VASCONCELOS, sobre D. Isabel de Aragão, fiquei convencido, mais uma vez, que esta, como todas as lendas, tinha um fundo de verdade e que o anónimo não inventara, mas fora apenas eco de uma tradição que, pelo menos, em parte, os documentos registavam.

A 7 de Janeiro de 1325 falecera em Santarém, nos braços da Rainha, El-rei D. Dinis, que remexera agricolamente com seus aforamentos, procurando tornar fecunda, a terra de Portugal, que o abençoava, imortalizando-o com o cognome simpático de Lavrador. Como todos os homens grandes, teve tempo para tudo: para amar como todos, para poetar como poucos e para como nenhum outro criar a Universidade.

D. Isabel, mal expirara o marido, vestira o hábito das Claristas; mas vestira-o em sinal de dó e não, segundo expressamente declarou, implicando o facto acto de profissão ou clausura, pois desejava, acima de tudo, manter íntegra a sua liberdade de acção, podendo despir o mesmo hábito sempre que julgasse conveniente, o qual recebera das mãos de suas camareiras, Donas Seculares, e não da mão de religiosas. Continuaria sustentando Donas e Donzelas, casando-as como convinha à honra do seu estado, e vivendo com os seus familiares em seus próprios castelos e lugares, sem obrigar sua pessoa e bens a nenhuma Ordem, regra ou colégio quer antes, quer até depois da sua morte. Ela conhecia profundamente a sociedade do seu tempo. O vergonhoso caso de D. Maior Dias, cujas intenções haviam sido miseravelmente deturpadas, mesmo já em vida, fora para ela edificante. Lutara, vencera, mas aprendera também. Gastou os primeiros tempos que se seguiram à morte de D. Dinis, sufragando-lhe a alma e dando execução às clausulas do testamento de que era principal testamenteira e, ao aproximar-se o verão, partiu em peregrinação para lucrar das indulgências de que era rica a basílica do apóstolo S. Tiago. Precisava estar de volta antes do aniversário / 123 / da morte do marido. Iria a Odivelas, e depois fixaria definitivamente residência em Coimbra. Fez, no entanto, mistério a grande Rainha da sua ida a S. Tiago; por isso talvez passasse um tanto despercebida, pois «os de sá companha per alguns dias que non entendião a que partes hir queria, atá que nom chegou acerca de Santiago a hum logar que he alõgado da Villa per huma legoa...»; já outro tanto não sucedeu na volta em que «as gentes das comarcas per hu vinha sahião de sá propria vontade aos caminhos, e logares hu passaua por a veerem, por a bondade que della ouuiom dizer»(10). Isto na generalidade, porque não especializa terra alguma. Não conheço lenda alguma, ao norte de Águeda, que me possa guiar. Ao sul, porém, temos a do Cértoma, à qual se encontram referências no século XVIII já,(11) que, embora como explicação do nome deste rio − agua certo má − seja infantil e absolutamente prejudicada por numerosa documentação dos Portugaliae Monumenta Historica, não é para desprezar.

A Rainha atravessaria o rio?

Teria ido por Aveiro?

Esta vila era regalenga desde 1306, data em que D. Dinis, por contrato de escambo com os conventos de S. João de Tarouca e Celas de Guimarães de a par de Coimbra, adquirira duas partes da mesma;(12) mas a sua importância não podia ser grande; o crescimento da população na Idade Média era lento e havia pouco mais de um século que fora trocada pela vila sertaneja de Avô (13).

A ideia de um embarque até Ovar, embora pudesse admitir-se, tem que ser posta de parte, visto que ao descrever-se o que a Rainha levava quando foi a S. Tiago se diz «a mua era enfreada de hum freo que nom era senom ouro e prata e pedras preciosas» o que prova que ia a cavalo. A ida por Aveiro neste meio de transporte não é muito natural. A principal via de comunicação entre o norte e o sul do país, provada por documentos desde época muito mais remota do que aquela que nos interessa, passava por Águeda e era o mais curto caminho entre Coimbra e o Porto. Encontram-se mencionadas as pontes de Águeda e Vouga, que, naturalmente, andariam em construção em 1262 e 1298, nos testamentos do chantre Gonçalo Gonçalves e de seu sobrinho o bispo D. Sancho, do Porto(14). A ponte de Coimbra, principiada em 1132(15), foi acabada por / 124 / esta época, e bem podiam ser aquelas começadas na mesma ocasião.

Há todas as probabilidades da Rainha Santa ter passado por aqui, mas, não havendo documentação, é lícito duvidar pelo penos enquanto se não souber de lenda, em terras ao norte de Águeda, que se relacione com o facto.

V

Conhecida a lenda, é curioso registar a seguinte coincidência: quando três séculos depois se realizaram, em Coimbra, as festas da canonização, da Rainha, foi encarregado de pregar o sermão um padre de Águeda.

E não foi certamente por ser de Águeda que o Dr. Frei Jorge Pinheiro foi indicado para tal fim; mas sim pelo prestígio que cercava o seu nome, como orador sagrado, que o fez subir de Prior do Convento da Batalha, Lente da Universidade e deputado da Inquisição, ao mais alto lugar a que podia aspirar dentro da sua religião e da sua pátria − Provincial da Ordem de S. Domingos.

VI

No ano de 1533, certamente sob a influência da corrente do Renascimento, de que foi uma das principais colaboradoras a Rainha D. Leonor, protectora de Gil Vicente e criadora das Misericórdias, o Rei D. João III mandou proceder à organização do Tombo das propriedades do Hospital de Águeda, do qual consta ter o mesmo Hospital duas casas onde moravam «os albregeiros e osPitaleiros», uma que servia de em ela se agasalharem os pobres e pedintes, isto é, a albergaria antiga e a outra que era uma casa de forno aonde estavam os « osPitaleiros», isto é, naturalmente aqueles que tratavam do Hospital. Estas casas eram térreas e ocupavam pouco mais ou menos o sítio onde hoje está uma casa do Sr. António de Almeida, comerciante,(16) toda a embocadura da Rua Ferraz de Macedo e ainda talvez entrasse no prédio confinante do lado do nascente, porque tinha de frente vinte e três varas, sendo o fundo de oito.

Estas casas do Hospital foram demolidas com a abertura da nova estrada para o Porto, funcionando posteriormente o mesmo numa casa da encruzilhada da Rua de Baixo com a de
José Maria VeIoso (casa aonde hoje mora o Sr. J. Freitas Sucena) enquanto se construía o edifício da rua do Barril, vendido
/ 125 /  pela Misericórdia(17) por anti-higiénico, em praça, em Aveiro, em Junho de 1900.

HOSPITAL-ASILO CONDE DE SUCENA
Actualidade

É evidente que todas as casas da vila, que pagavam foro ao Hospital, foram construídas em terreno de uma propriedade rústica que em épocas remotas alguém deu para, com seu rendimento, se sustentar a albergaria. Grosso modo pode considerar-se essa propriedade como circunscrita por uma linha que, partindo do Oeste do Botaréo, atravessasse a Rua de Baixo em direcção ao norte, até chegar às traseiras das casas da Rua de Cima, e daí voltasse para o nascente (sempre por detrás das casas) até se encontrar perfeitamente ao sul de um ponto determinado na Rua de Cima pela extremidade de uma linha de vinte e nove varas, começadas a contar da Viela dos Padres. Neste ponto a mesma linha atravessaria essa rua e as casas em direcção ao norte até ao caminho da igreja, retrocedendo então para a Viela dos Padres, aonde obliquaria para noroeste (por detrás das casas da Praça Nova) até encontrar o caminho da Rua de S. Bento para a igreja, o qual seguiria até às escadas, tomando daí para o norte até se encontrar em frente da porta da Alta-Vila, contra a qual seguiria, voltando pela Rua do Vale / 126 / em direcção ao Barril e daí pela margem do rio ao Botaréo, aonde começara.

Havia, além disto, casas no Outeiro do Vale e terras no campo de Recardães.

VII

Em 1639 organizou-se um novo Tombo, (o mais antigo que actualmente existe) transcrevendo-se o antigo, com o visível fim de actualizar os nomes dos foreiros e registar as casas construídas no espaço que medeia entre a organização de um e outro Tombo.

Comparando minuciosamente o Tombo do Hospital com o da Igreja, pode-se estabelecer com rigor, do lado do nascente, a trajectória da linha acima descrita. Estes dois documentos são preciosos pela visão retrospectiva que nos concedem e devem ser guardados religiosamente, pois, se eles porventura tivessem desaparecido, ficariam para sempre inexplicados fenómenos indispensáveis à compreensão da história de Águeda.

JOSÉ RODRIGUES SUCENA
1.º Conde de Sucena

VIII

Com o produto da venda do velho Hospital, promovida pelo provedor da Misericórdia José Rodrigues Sucena, Visconde e primeiro Conde de Sucena, dada a larga liberalidade deste, foi possível inaugurar-se em 1922 o novo edifício, em condições de comodidade e desenvolvimento que se não podem certamente comparar com as do primitivo, ao qual se deu o nome de Hospital-Asilo Conde de Sucena, esquecendo-se, assim, o que um Hospital ao outro deve, circunstância que se procura remediar, restabelecendo por esta forma a tradição.

CONDE DA BORRALHA

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(1) Portugaliae Mon. Hist., Diplom. et Chartae, doc. XI.

(2) Este ligeiro estudo foi feito para depois de impresso ser posto à venda, revertendo o seu produto em benefício do hospital. 

(3) Vide Elucidário de VITERBO, palavra Albergaria.

(4) Chancel. de D. Afonso V, I, 37, fl. 18, verso.  

(5) Estremadura, 7 fl., 10. Na Chancelaria de D. Afonso V está ilegível esta carta.  

(6) Chancel. de D. Afonso V, livro 26, fl. 6.

(7) Inquirições de D. Afonso II, livro 2, fl. 128, verso.

(8) Tombo do Hospital de Águeda (ano de 1639) fl. 31, verso. 

(9) Este faleceu em 1785.  

(10) R. VASCONCELOS, D. Isabel de Aragão, VI, I, pág. 48-49.

(11)BAPTISTA DE CASTRO, Mapa de Portugal, ed. 1870, VI, I, pág. 72.

(12)Chanc. de D. Dinis, livro 5, fl. 68 e 70.

(13)Ibidem, fl. 69.

(14)Dissert. Chronol., J. P. RIBEIRO, ed.. de 1896, tomo V, pág. 77 e 80.

(15)R. DE VASCONCELOS, D. Isabel de Aragão, vol. I, pág. 134.

(16) Antiga casa da Rosa Bicha, na Praça Nova.  

(17) A qual havia sido instituída em 12 de Novembro de 1859.

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