TINHAM chegado àquela
povoação havia mais de quinze
dias. Os espectáculos, sempre muito concorridos, eram quase quotidianos
e realizavam-se à tardinha − «à senoitmha» −, no largo da aldeia, mesmo ao pé do cruzeiro
de pedra onde as procissões iam dar volta. Aos domingos, porém, por via
da afluência de gente dos povos vizinhos, as exibições faziam-se mais a
primor, e mais cedo.
Constava a «companhia» de sete elementos: o chefe, homem espadaúdo, de cor brônzea, que usava arrecadas nas orelhas e fazia rir o público com
as suas pilhérias; a mulher, habilíssima no toque de cornetim e grande
fumadora de cachimbo; um garoto dos seus quinze anos e uma menina de
sete; um urso, ao qual o dono, com grande gáudio da assistência,
costumava dar amistosos abraços, antes de exigir dele as mais variadas evoluções
ao som de ensebada pandeireta; o cão, muito destro em saltos mortais; e
finalmente um macaco, cujas habilidades e momices mais do que tudo
encantavam os espectadores, especialmente o rapazio.
Os aldeões, ávidos do imprevisto e do fantástico, apreciavam os
trabalhos dos hóspedes; intimamente, porém, tinham-lhes medo, pois era
voz corrente que os «comediantes» se davam à rapinagem. Por esse
motivo, não havia ninguém que não fechasse, à noite, bem fechadas, as
portas das casas, dos currais e das capoeiras, com receio dalgum
assalto.
Naquele domingo, não houve espectáculo. O público, muito numeroso,
acorreu ansioso; mas logo constou que o filho do «homem do macaco»
estava à morte desde a véspera com uma dor e que o pai e a mãe se
desgraciavam, chorando, chorando tanto, que era de comover as próprias
pedras.
− E já chamaram o surgião? − perguntava num grupo um velhote.
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− Qual surgião, ti Zé! O surgião diz que está lá p'ra a serra!
−
informou um homem de meia idade. − Mas a minha comadre acho que foi, há chisquito, ver se encontrava a ti'Ana do Caifás, que, como vossemecê
sabe, é muito entendida em
espinhelas caídas. Aquilo, por mais que me digam, não é senão espinhela
caída!
− Sim, sim, ti'Manel! diga-lhe que sim! O caso que é, que o rapazinho
está num febrão e não diz palavra. Coitado! A habilidade com que aquele
diabo − o Senhor me perdoe, se eu peco! − apanhava um lenço co' os dentes, de cima duma cadeira! Se
ele morre, é pena!
E tudo eram grupos, comentando desoladamente o sucedido, mais pela
arrelia da falta de espectáculo, do que pela
comiseração que a dor alheia provocava.
Até que alguém lembrou:
− É verdade! E quem fosse chamar o Silvério, o estudante? Diz que está
quase «doutor de medicinas», como agora chamam aos surgiões, e que pesca da arte!
Mas a este tempo já o futuro médico tinha penetrado no
casebre onde se albergava toda aquela miséria ambulante.
O estudante deparou com espectáculo bem confrangedor. Junto da sórdida
enxerga em que o doente ansiadamente lutava com a morte, próximo da
lareira onde só havia uma panela de barro preto meio escondida na cinza,
estava a mulher do saltimbanco, de joelhos, a chorar em silêncio, limpando constantemente as lágrimas à orla da saia,
inclinada sobre o filho. Bastante retirado, sentado nos restos de velha
cadeira, via-se o pobre nómada, com os cotovelos fincados nos joelhos e
o queixo
apoiado nas mãos, a fitar, como sonâmbulo, a negra terra da mísera
quadra, alheado de tudo, a tudo indiferente. A pequenita, em sua
inconsciência, brincava a um canto com o macaco e ria-se, os olhitos
vivos e inteligentes, sem suspeitar da tremenda desgraça que os ameaçava
a todos. Metia dó a atitude
do cão: deitado no solo, olhava compungidamente ora um, ora
outro dos donos, como compreendendo tudo. Às vezes, levantava-se, lambia
as mãos do saltimbanco, aproximava-se da cama, meneando levemente a
cauda, acariciava com o focinho a dona e o doente, e, de cabeça baixa,
numa grande tristeza, ia retomar a primitiva posição.
O estudante aproximou-se do leito, a tempo que a porta era
transposta pela mulher que o tinha ido chamar. Foi ela quem primeiro
falou, dirigindo-se à desolada mãe:
− Olhe, mulherzinha; aqui está o senhor doutor, que vem ver o seu
filho!
Neste momento, o saltimbanco ergueu-se, acercou-se da
cama, seguido pelo cão, − disse no seu incorrectíssimo português:
− Muito obrrigade, senhorre! Muita grazia!
Doenta, o filho!
Muito doenta!
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E as palavras estrangulavam-se-lhe na garganta.
A mulher também se pôs de
pé. Fitou o marido, mas eram
de ódio profundo os olhares que os desgraçados trocaram, enquanto o
estudante auscultava o moribundo e lhe tomava o pulso. Houve um longo
silêncio.
Examinado sumariamente o pequeno, o futuro clínico dirigiu-se
discretamente à mulher que o fora procurar e, ao mesmo tempo que sentia
fixarem-se sobre ele, pesados como chumbo,
os olhares perscrutadores daqueles pais, a quem o vendaval da desgraça
açoitava implacável e impiedosamente, segredou-lhe:
− Está pronto! Não tem dois minutos de vida! Nada há
a fazer!
Os desgraçados compreenderam tudo. Mas foi a
mãe quem primeiro
exteriorizou a sua dor. Soltou um grito estridentíssimo
e perguntou, como alucinada :
− Môrreto?! Môrreto, o meu
filho?!
O médico não respondeu: voltou-se para o homem, deixou
cair a cabeça sobre o peito e encolheu os ombros, como quem dizia que
nada se podia esperar.
E então aqueles dois miseráveis, que mutuamente se odiavam, acharam-se
irmanados no mesmo infortúnio, e ali, sobre o cadáver do filho, de
joelhos, um de cada lado da cama, longamente misturaram as suas lágrimas
e confundiram a sua dor.
A pequenita, vendo chorar os pais, pôs-se
também aos gritos, indiferente
às festas do macaco; e o cão, dum lado para o outro, ganindo baixinho e
mexendo a cauda em desespero, via-se bem que o seu desejo seria minorar,
com toda a grandeza da sua dedicação, a irreparável desventura dos
donos!...
*
No dia seguinte, à noitlnha, foi o funeral. Meia hora depois do toque do
sino − três rápidas «corridas», próprias de pobres −, começou a
chegar gente, homens e crianças, todos em maior número do que
habitualmente, em virtude das circunstâncias especiais de que aquela
morte fora rodeada. O caixão do infeliz, mandado fazer pela caridade dos
vizinhos, havia sido transportado para casa dum deles, em cuja saleta
estava em exposição, em cima dum banco. Sobre pequena mesa, à
cabeceira do caixão, erguia-se um velho crucifixo, no meio de dois
castiçais de vidro com velas a arder, e junto do supedâneo da cruz
via-se uma toalha branca, dentro de pequena salva de metal.
A quadra estava quase cheia de gente, mulheres e crianças especialmente,
com os olhos pregados no cadáver. Em pé, junto do féretro, os olhos
marejados, estava a mãe, a pobre mãe, cujo rosto se vincava de fundas
rugas, traços indeléveis de indizíveis sofrimentos passados.
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Semelhava uma estátua de dor: não ouvia as banais palavras e expressões de conforto, inúteis e importunas, que as
mulheres lhe dirigiam. Indiferente a tudo − a palavras e a
pessoas −, a pobre mulher só tinha uma preocupação, um só pensamento − o
filho, o mísero ente, gerado em suas entranhas, que a morte ali tinha, imobilizado e inerte, à espera de
que a piedade de pessoas estranhas o conduzisse para o modesto
cemitério daquela aldeia estranha, aonde ela por certo jamais
voltaria!
À medida que a hora do saimento se ia aproximando, mais
e mais gente chegava, envergando fatos domingueiros. Já tinha vindo o
homem da cruz, o rapaz da caldeirinha e a mulher com
o tabuleiro da cera. O sacristão, depois de entregar a um garoto
a campainha, que outros garotos atropeladamente disputavam,
pôs-se a distribuir velas pelos homens, recomendando-lhes que as não
acendessem.
Depois, chegou o abade, já de sobrepeliz, acompanhado de pessoas gradas
da terra. Soou a hora no relógio da torre, e
logo o sacerdote entrou na sala onde estava exposto o defunto,
aos lados do qual se tinham disposto o cruciferário e o encarregado da
caldeirinha.
Então, abrindo o livro, o padre começou a «encomendar» o morto. Essa
operação foi rápida. Depois o abade, empunhando o hissope que lhe era
oferecido, fez uma leve aspersão, voltou as costas aos circunstantes e
saiu.
Seguiu-se o mais − choros, gritos, a dor daquela
mãe amargurada, o
desespero do miserando pai, que pouco antes
surgira de dentro da casa, desgrenhado, horrivelmente pálido,
caminhando de olhos esgazeados, como autómato, para o caixão e caíra
sobre o cadáver, louco, fora de si, num último e instintivo abraço...
Rapidamente, se organizou o «acompanhamento» e se pôs
em marcha. À frente, pelo meio do caminho, ia o garotito da campainha,
criança talvez dos seus onze anos. Vestia o fato do domingo, de cotim
escuro, e levava calçadas umas botas de
atanado, muito folgadas, que dir-se-iam pertencer ao pai ou a
algum irmão. Tangia a campainha em movimentos variados e,
de vez em quando, já cansado, mudava-a para a outra mão.
Pelos lados do caminho, em duas filas bastante
longas,
seguiam indistintamente as outras pessoas, mas na parte anterior do cortejo fúnebre predominavam as crianças e os rapazes.
Os homens e os adolescentes levavam numa das mãos uma vela de cera, das
pequenas, à laia de castiçal. A meia distância das duas, filas de gente,
e em frente do caixão; marchava o cruciferário, vestindo uma opa cor de trigo com cabeção verde, o qual
segurava um crucifixo de metal amarelo, cheio de azebre, apoiando-o sobre o braço esquerdo, como se fosse uma criança. Logo
após, ia o abade, de livro aberto, e ao lado dele o da caldeirinha.
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O caixão, aberto, era transportado à mão por quatro rapazes de catorze a quinze anos, aos quais se seguiam outros
quatro, mais pequenos, com a tampa, cujas asas consistIam em simples
pedaços de fita de nastro, pregados pelas extremidades aos quatro
cantos.
Fechavam o préstito um sujeito com a toalha, a mulher que conduzia à
cabeça o tabuleiro da cera, vazio, e outras mulheres, talvez seis ou
sete, todas de luto, e chinelas, e longas «capoteiras» pretas a caírem
sobre saias muito rodadas, da mesma cor.
Em diversos pontos do trajecto, grupos de curiosos apareciam
− homens em mangas de camisa, sujos do trabalho; mulheres, de
canastras à cabeça, outras com crianças ao colo, a larada dos filhos
agarrada às saias, sujos, ranhosos, de dedos metidos na boca. E todos se
aproximavam, estendendo os pescoços, para verem o cadáver, em cujo
rosto, magro, lívido, se lia toda uma odisseia de fome e miséria. E não
era raro surpreenderem-se no rosto daquelas mulheres − daquelas mães! − lágrimas de
pura comoção por essoutra mãe, muito mais desgraçada do que a mais desgraçada de todas elas.
− Coitadinho!
− Coitadinha da criança!
− Parece mesmo que vai a
dormir, o pobre!
E o «acompanhamento» seguia, seguia sempre, devagar,
enquanto o senhor abade ia pronunciando uma ou outra frase latina.
Mas já os sinos se ouviam, repetindo a sua toada plangente, que se
repercutia pelos montes da aldeia, − sinal de que o cortejo se
aproximava da igreja. Depois... o préstito entra no templo, o caixão é
colocado sobre um simples e desguarnecido banco que se encontrava a meio
da igreja, o abade lê mais umas frases, e recompõe-se o «acompanhamento», que em breve transpõe o portão do cemitério, a dois
passos dali.
Foi o final. Primeiramente, os «pegadores» puseram o caixão sobre a
terra revolta, à beira do coval. Em seguida, o abade, após breve
leitura, aspergiu a cova, funda e negra, aspergiu o cadáver, deu rápidas
ordens ao sacristão e retirou-se logo, em companhia dalguns lavradores.
Os restantes completaram a obra. Cobriu-se primeiro o cadáver com a
toalha. Dois homens colocaram a tampa no seu lugar, e eles e o coveiro
e mais outro homem baixaram com
presteza o corpo à sepultura, servindo-se para isso de quatro paus, em
cujas extremidades havia um pequeno gancho de ferro, que se aplicava a
cada uma das asas do caixão.
Imediatamente, quase todas as pessoas se aproximaram do coval e atiraram
com as mãos ou com o pé alguns torrões para dentro dele. O coveiro, que
já se munira da enxada e cuspia nas mãos a fim de dar o início à
operação do enterramento,
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entrou a puxar terra para a cova, de envolta com ossos, bocados de
madeira apodrecida, restos de vestes de outros mortos...
Dentro em pouco, ei-lo que salta para o coval e, de pé sobre o caixão,
já totalmente coberto de terra, pisa que pisa com os
grossos sapatões; ataca o caixão por todos os lados, com o cabo da
enxada; puxa nova terra, pisa sempre, numa ânsia, e a tarefa
termina na presença dos raros curiosos que junto do local se mantinham.
O Sol ia desaparecendo sobre o mar, muito vermelho,
semelhante a enorme queijo dentro de fantástica bandeja da
mesma cor. Levantava-se dos telhados e das raras chaminés o
fumo dos lares. Ao longe, dominando os mil ruídos precursores da noite, ouviam-se, como em orfeão, a três vozes, os cantos
tradicionais das raparigas:
A Senhora da Saúde
prometeu e há de dar,
prometeu e há de dar
carvalhos p'ra 'star à sombra
rapazes p'ra namorar,
rapazes p'ra namorar.
E o canto misturava-se com o barulho das espadelas nos
cortiços, nesse rústico trabalho que consiste em separar do caule do
linho, previamente esmagado e triturado nos engenhos,
as fibras que, reduzidas a fio, hão de produzir o tecido que dará
os lençóis onde se nasce e se morre, a camisa do trabalho e das
cerimónias e a toalha com que se cobre a mesa e se amortalham os mortos.
JOSÉ PEREIRA TAVARES |