José Pereira Tavares, Os saltimbancos, Vol. V, pp. 97-102.

LITERATURA REGIONAL

(CONCELHO DE OLIVEIRA DE AZEMÉIS)

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OS SALTIMBANCOS

TINHAM chegado àquela povoação havia mais de quinze dias. Os espectáculos, sempre muito concorridos, eram quase quotidianos e realizavam-se à tardinha − «à senoitmha» −, no largo da aldeia, mesmo ao pé do cruzeiro de pedra onde as procissões iam dar volta. Aos domingos, porém, por via da afluência de gente dos povos vizinhos, as exibições faziam-se mais a primor, e mais cedo.

Constava a «companhia» de sete elementos: o chefe, homem espadaúdo, de cor brônzea, que usava arrecadas nas orelhas e fazia rir o público com as suas pilhérias; a mulher, habilíssima no toque de cornetim e grande fumadora de cachimbo; um garoto dos seus quinze anos e uma menina de sete; um urso, ao qual o dono, com grande gáudio da assistência, costumava dar amistosos abraços, antes de exigir dele as mais variadas evoluções ao som de ensebada pandeireta; o cão, muito destro em saltos mortais; e finalmente um macaco, cujas habilidades e momices mais do que tudo encantavam os espectadores, especialmente o rapazio.

Os aldeões, ávidos do imprevisto e do fantástico, apreciavam os trabalhos dos hóspedes; intimamente, porém, tinham-lhes medo, pois era voz corrente que os «comediantes» se davam à rapinagem. Por esse motivo, não havia ninguém que não fechasse, à noite, bem fechadas, as portas das casas, dos currais e das capoeiras, com receio dalgum assalto.

Naquele domingo, não houve espectáculo. O público, muito numeroso, acorreu ansioso; mas logo constou que o filho do «homem do macaco» estava à morte desde a véspera com uma dor e que o pai e a mãe se desgraciavam, chorando, chorando tanto, que era de comover as próprias pedras.

− E já chamaram o surgião? − perguntava num grupo um velhote. / 98 /

− Qual surgião, ti Zé! O surgião diz que está lá p'ra a serra! − informou um homem de meia idade. − Mas a minha comadre acho que foi, há chisquito, ver se encontrava a ti'Ana do Caifás, que, como vossemecê sabe, é muito entendida em espinhelas caídas. Aquilo, por mais que me digam, não é senão espinhela caída!

− Sim, sim, ti'Manel! diga-lhe que sim! O caso que é, que o rapazinho está num febrão e não diz palavra. Coitado! A habilidade com que aquele diabo − o Senhor me perdoe, se eu peco! − apanhava um lenço co' os dentes, de cima duma cadeira! Se ele morre, é pena!

E tudo eram grupos, comentando desoladamente o sucedido, mais pela arrelia da falta de espectáculo, do que pela comiseração que a dor alheia provocava.

Até que alguém lembrou:

− É verdade! E quem fosse chamar o Silvério, o estudante? Diz que está quase «doutor de medicinas», como agora chamam aos surgiões, e que pesca da arte!

Mas a este tempo já o futuro médico tinha penetrado no casebre onde se albergava toda aquela miséria ambulante.

O estudante deparou com espectáculo bem confrangedor. Junto da sórdida enxerga em que o doente ansiadamente lutava com a morte, próximo da lareira onde só havia uma panela de barro preto meio escondida na cinza, estava a mulher do saltimbanco, de joelhos, a chorar em silêncio, limpando constantemente as lágrimas à orla da saia, inclinada sobre o filho. Bastante retirado, sentado nos restos de velha cadeira, via-se o pobre nómada, com os cotovelos fincados nos joelhos e o queixo apoiado nas mãos, a fitar, como sonâmbulo, a negra terra da mísera quadra, alheado de tudo, a tudo indiferente. A pequenita, em sua inconsciência, brincava a um canto com o macaco e ria-se, os olhitos vivos e inteligentes, sem suspeitar da tremenda desgraça que os ameaçava a todos. Metia dó a atitude do cão: deitado no solo, olhava compungidamente ora um, ora outro dos donos, como compreendendo tudo. Às vezes, levantava-se, lambia as mãos do saltimbanco, aproximava-se da cama, meneando levemente a cauda, acariciava com o focinho a dona e o doente, e, de cabeça baixa, numa grande tristeza, ia retomar a primitiva posição.

O estudante aproximou-se do leito, a tempo que a porta era transposta pela mulher que o tinha ido chamar. Foi ela quem primeiro falou, dirigindo-se à desolada mãe:

− Olhe, mulherzinha; aqui está o senhor doutor, que vem ver o seu filho!

Neste momento, o saltimbanco ergueu-se, acercou-se da cama, seguido pelo cão, − disse no seu incorrectíssimo português:

− Muito obrrigade, senhorre! Muita grazia! Doenta, o filho! Muito doenta! / 99 /

E as palavras estrangulavam-se-lhe na garganta.

A mulher também se pôs de pé. Fitou o marido, mas eram de ódio profundo os olhares que os desgraçados trocaram, enquanto o estudante auscultava o moribundo e lhe tomava o pulso. Houve um longo silêncio.

Examinado sumariamente o pequeno, o futuro clínico dirigiu-se discretamente à mulher que o fora procurar e, ao mesmo tempo que sentia fixarem-se sobre ele, pesados como chumbo, os olhares perscrutadores daqueles pais, a quem o vendaval da desgraça açoitava implacável e impiedosamente, segredou-lhe:

− Está pronto! Não tem dois minutos de vida! Nada há a fazer!

Os desgraçados compreenderam tudo. Mas foi a mãe quem primeiro exteriorizou a sua dor. Soltou um grito estridentíssimo e perguntou, como alucinada :

− Môrreto?! Môrreto, o meu filho?!

O médico não respondeu: voltou-se para o homem, deixou cair a cabeça sobre o peito e encolheu os ombros, como quem dizia que nada se podia esperar.

E então aqueles dois miseráveis, que mutuamente se odiavam, acharam-se irmanados no mesmo infortúnio, e ali, sobre o cadáver do filho, de joelhos, um de cada lado da cama, longamente misturaram as suas lágrimas e confundiram a sua dor.

A pequenita, vendo chorar os pais, pôs-se também aos gritos, indiferente às festas do macaco; e o cão, dum lado para o outro, ganindo baixinho e mexendo a cauda em desespero, via-se bem que o seu desejo seria minorar, com toda a grandeza da sua dedicação, a irreparável desventura dos donos!...

*

No dia seguinte, à noitlnha, foi o funeral. Meia hora depois do toque do sino − três rápidas «corridas», próprias de pobres −, começou a chegar gente, homens e crianças, todos em maior número do que habitualmente, em virtude das circunstâncias especiais de que aquela morte fora rodeada. O caixão do infeliz, mandado fazer pela caridade dos vizinhos, havia sido transportado para casa dum deles, em cuja saleta estava em exposição, em cima dum banco. Sobre pequena mesa, à cabeceira do caixão, erguia-se um velho crucifixo, no meio de dois castiçais de vidro com velas a arder, e junto do supedâneo da cruz via-se uma toalha branca, dentro de pequena salva de metal.

A quadra estava quase cheia de gente, mulheres e crianças especialmente, com os olhos pregados no cadáver. Em pé, junto do féretro, os olhos marejados, estava a mãe, a pobre mãe, cujo rosto se vincava de fundas rugas, traços indeléveis de indizíveis sofrimentos passados. / 100 /

Semelhava uma estátua de dor: não ouvia as banais palavras e expressões de conforto, inúteis e importunas, que as mulheres lhe dirigiam. Indiferente a tudo − a palavras e a pessoas −, a pobre mulher só tinha uma preocupação, um só pensamento − o filho, o mísero ente, gerado em suas entranhas, que a morte ali tinha, imobilizado e inerte, à espera de que a piedade de pessoas estranhas o conduzisse para o modesto cemitério daquela aldeia estranha, aonde ela por certo jamais voltaria!

À medida que a hora do saimento se ia aproximando, mais e mais gente chegava, envergando fatos domingueiros. Já tinha vindo o homem da cruz, o rapaz da caldeirinha e a mulher com o tabuleiro da cera. O sacristão, depois de entregar a um garoto a campainha, que outros garotos atropeladamente disputavam, pôs-se a distribuir velas pelos homens, recomendando-lhes que as não acendessem.

Depois, chegou o abade, já de sobrepeliz, acompanhado de pessoas gradas da terra. Soou a hora no relógio da torre, e logo o sacerdote entrou na sala onde estava exposto o defunto, aos lados do qual se tinham disposto o cruciferário e o encarregado da caldeirinha.

Então, abrindo o livro, o padre começou a «encomendar» o morto. Essa operação foi rápida. Depois o abade, empunhando o hissope que lhe era oferecido, fez uma leve aspersão, voltou as costas aos circunstantes e saiu.

Seguiu-se o mais − choros, gritos, a dor daquela mãe amargurada, o desespero do miserando pai, que pouco antes surgira de dentro da casa, desgrenhado, horrivelmente pálido, caminhando de olhos esgazeados, como autómato, para o caixão e caíra sobre o cadáver, louco, fora de si, num último e instintivo abraço...

Rapidamente, se organizou o «acompanhamento» e se pôs em marcha. À frente, pelo meio do caminho, ia o garotito da campainha, criança talvez dos seus onze anos. Vestia o fato do domingo, de cotim escuro, e levava calçadas umas botas de atanado, muito folgadas, que dir-se-iam pertencer ao pai ou a algum irmão. Tangia a campainha em movimentos variados e, de vez em quando, já cansado, mudava-a para a outra mão.

Pelos lados do caminho, em duas filas bastante longas, seguiam indistintamente as outras pessoas, mas na parte anterior do cortejo fúnebre predominavam as crianças e os rapazes.

Os homens e os adolescentes levavam numa das mãos uma vela de cera, das pequenas, à laia de castiçal. A meia distância das duas, filas de gente, e em frente do caixão; marchava o cruciferário, vestindo uma opa cor de trigo com cabeção verde, o qual segurava um crucifixo de metal amarelo, cheio de azebre, apoiando-o sobre o braço esquerdo, como se fosse uma criança. Logo após, ia o abade, de livro aberto, e ao lado dele o da caldeirinha. / 101 /

O caixão, aberto, era transportado à mão por quatro rapazes de catorze a quinze anos, aos quais se seguiam outros quatro, mais pequenos, com a tampa, cujas asas consistIam em simples pedaços de fita de nastro, pregados pelas extremidades aos quatro cantos.

Fechavam o préstito um sujeito com a toalha, a mulher que conduzia à cabeça o tabuleiro da cera, vazio, e outras mulheres, talvez seis ou sete, todas de luto, e chinelas, e longas «capoteiras» pretas a caírem sobre saias muito rodadas, da mesma cor.

Em diversos pontos do trajecto, grupos de curiosos apareciam − homens em mangas de camisa, sujos do trabalho; mulheres, de canastras à cabeça, outras com crianças ao colo, a larada dos filhos agarrada às saias, sujos, ranhosos, de dedos metidos na boca. E todos se aproximavam, estendendo os pescoços, para verem o cadáver, em cujo rosto, magro, lívido, se lia toda uma odisseia de fome e miséria. E não era raro surpreenderem-se no rosto daquelas mulheres − daquelas mães! − lágrimas de pura comoção por essoutra mãe, muito mais desgraçada do que a mais desgraçada de todas elas.

− Coitadinho!

− Coitadinha da criança!

− Parece mesmo que vai a dormir, o pobre!

E o «acompanhamento» seguia, seguia sempre, devagar, enquanto o senhor abade ia pronunciando uma ou outra frase latina.

Mas já os sinos se ouviam, repetindo a sua toada plangente, que se repercutia pelos montes da aldeia, − sinal de que o cortejo se aproximava da igreja. Depois... o préstito entra no templo, o caixão é colocado sobre um simples e desguarnecido banco que se encontrava a meio da igreja, o abade lê mais umas frases, e recompõe-se o «acompanhamento», que em breve transpõe o portão do cemitério, a dois passos dali.

Foi o final. Primeiramente, os «pegadores» puseram o caixão sobre a terra revolta, à beira do coval. Em seguida, o abade, após breve leitura, aspergiu a cova, funda e negra, aspergiu o cadáver, deu rápidas ordens ao sacristão e retirou-se logo, em companhia dalguns lavradores.

Os restantes completaram a obra. Cobriu-se primeiro o cadáver com a toalha. Dois homens colocaram a tampa no seu lugar, e eles e o coveiro e mais outro homem baixaram com presteza o corpo à sepultura, servindo-se para isso de quatro paus, em cujas extremidades havia um pequeno gancho de ferro, que se aplicava a cada uma das asas do caixão.

Imediatamente, quase todas as pessoas se aproximaram do coval e atiraram com as mãos ou com o pé alguns torrões para dentro dele. O coveiro, que já se munira da enxada e cuspia nas mãos a fim de dar o início à operação do enterramento, / 102 / entrou a puxar terra para a cova, de envolta com ossos, bocados de madeira apodrecida, restos de vestes de outros mortos...

Dentro em pouco, ei-lo que salta para o coval e, de pé sobre o caixão, já totalmente coberto de terra, pisa que pisa com os grossos sapatões; ataca o caixão por todos os lados, com o cabo da enxada; puxa nova terra, pisa sempre, numa ânsia, e a tarefa termina na presença dos raros curiosos que junto do local se mantinham.

O Sol ia desaparecendo sobre o mar, muito vermelho, semelhante a enorme queijo dentro de fantástica bandeja da mesma cor. Levantava-se dos telhados e das raras chaminés o fumo dos lares. Ao longe, dominando os mil ruídos precursores da noite, ouviam-se, como em orfeão, a três vozes, os cantos tradicionais das raparigas:

A Senhora da Saúde
prometeu e há de dar,
prometeu e há de dar
carvalhos p'ra 'star à sombra
rapazes p'ra namorar,
rapazes p'ra namorar.


E o canto misturava-se com o barulho das espadelas nos cortiços, nesse rústico trabalho que consiste em separar do caule do linho, previamente esmagado e triturado nos engenhos, as fibras que, reduzidas a fio, hão de produzir o tecido que dará os lençóis onde se nasce e se morre, a camisa do trabalho e das cerimónias e a toalha com que se cobre a mesa e se amortalham os mortos.

JOSÉ PEREIRA TAVARES

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