O facto do Quaternário
abranger o Holoceno ou Moderno de muitos autores e tocar na actualidade
geológica,
não diminui as dificuldades do seu estudo.
Podemos dizer também que, se considerarmos como unidade de tempo para a
duração das Eras anteriores o
milhão de anos, e para a da Era Quaternária, apenas, o modesto
milhar, − embora BURQUITT, por exemplo, lhe atribua milhões
de anos − nem por isso os enigmas e as obscuridades do Pleistoceno e do Holoceno se tornam mais fáceis de resolver que os
do Paleozoico e do Mesozoico.
O Quaternário é caracterizado essencialmente pelos fenómenos glaciários post-pliocénicos e pelo aparecimento do Homem,
de cuja existência bem provável no Terciário ainda se não obteve
prova concludente. Se é pouco para alguns rigoristas da classificação geológica e da taxonomia paleontológica que se impressionam com a estreita ligação com o Neogeno, a verdade é que o
critério quase geral e o uso, quiçá a comodidade, adoptaram e
generalizaram a designação e individualização da Era Quaternária, para alguns simplesmente
Período e não Era, designação
'que abrange os tempos post-pliocénicos ou post-neogénicos.
OBERMAIER, geólogo e pré-historiador eminente, opina que
não há motivo para se atribuir ao Plioceno superior o primeiro período
glaciar e que o aparecimento brusco dos novos géneros Elephas, Equus e
Bos e os grandes períodos glaciares, justificam
o estabelecimento de uma linha divisória paleontológica que coincide de maneira satisfatória com a linha de divisão geológica.
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LAPPARENT, entende que a mudança momentânea de clima, que
imprimiu uma grande actividade às precipitações atmosféricas e provocou
em grandiosa escala os fenómenos de erosão e aluvionamento, torna lógica a individualização do Pleistoceno e a sua
separação da actualidade geológica.
J. LEUBA acrescenta às características da Era, a aceleração
das translações continentais, pois é um partidário explícito da
aliciante teoria de WEGENER, ligando menos importância ao
argumento paleontológico porque, afirma, sob este ponto de
vista pouco há a notar, tanto mais que as espécies do princípio do
Quaternário são as mesmas dos tempos presentes e do fim
do Terciário, talvez porque o seu aparecimento na Europa se deve
simplesmente a migrações.
A indicação destas questões e a citação exemplificativa destes autores não visa a expor generalidades inadequadas num
artigo desta natureza, nem a demonstrar erudição pretensiosa,
mas, apenas, a conduzir o espírito do leitor ao limiar dos grandes
problemas do Quaternário que se podem resumir neste
enorme problema: − que relação há entre os depósitos quaternários e os
fenómenos da glaciação, da hidrografia e do diastrofismo, e
entre aqueles efeitos e estas e outras causas climáticas e tectónicas
do post-plioceno e a evolução antropológica e social do Homem?
Por outras palavras e sob uma forma afirmativa:
− é muito
grande a dificuldade de estabelecer uma cronologia dos depósitos
marinhos sincronizada com a dos depósitos terrestres e dos fenómenos
de escarvamento dos vales e formação dos terraços aluvionares e com a cronologia dos períodos glaciares, das faunas
terrestres e dos factos essenciais da paleontologia pré-histórica.
Existe uma concordância indubitável entre os andares marinhos e os terraços fluviais, e DEPÉRET foi certamente o primeiro
que viu a relação íntima entre os andares marinhos e as moreias
frontais dos glaciares quaternários, mas o sincronismo dos facies
é difícil de estabelecer pela grande diversidade das formações
continentais.
HERNANDEZ PACHECO, que estudou os terraços aluvionares dos
grandes rios da Península − Douro, Tejo, Ebro, Guadalquivir
e Guadiana − concluiu que os quatro terraços desses rios,
exceptuando condições particulares do último, correspondem aos
quatro períodos de inversão dos gelos, períodos esses que se
sentiram em Portugal. Entre os fenómenos glaciares e aluvionares, diz o ilustre professor, há a mesma relação que a da
causa para o efeito. Mas, pergunta, e oportunamente, o português Sr. Dr.
JOAQUIM FONTES: − como relacionar estes dados que
a geologia nos ensina com as várias fases industriais do Homem
fóssil em Espanha e Portugal?
Para a glaciação nórdica estabeleceu J. GEIKIE quatro períodos de progressão: o Scaniano, o Saxoniano, o Polaudiano e o
Mecklembourguiano, correspondentes aos quatro períodos de glaciação
/ 51 / alpina, já hoje clássicos, de PENCK e BRÜCKNER, que são
o Gunz, o Mindel, o Riss e o Würm. DEPÉRET, GIGNOUX e o
General LAMOTHE identificaram, por seu turno, no Quaternáriomediterrânico, quatro andares baseados numa fauna marinha
especial e na altitude particular constante das antigas linhas
da costa.
Estas altitudes são, do andar mais antigo para o mais moderno, respectivamente de 95-100m,
55-60m, 30-35m, 18-20m
acima do nível actual do Mediterrâneo. Estes andares marinhos são caracterizados
por uma sucessão de faunas, alternadamente
quentes e frias, e chamaram-se o Siciliano, o Milazziano, o Tirreniano e o Monasteriano.
Mas o que resta, como diz LEUBA, é estabelecer as relações
destes fenómenos com a sucessão das faunas terrestres e, principalmente, com a aparição do Homem e, ainda, acrescentarei
eu, com a evolução da sua indústria, porque, em meu modesto
entender, a história da indústria humana é a história do Homo
Faber, do Homo Economicus, e, afinal, do verdadeiro e autêntico
Homo Sapiens.
*
* *
Se houvesse assentimento geral a um quadro de localização das indústrias
pré-históricas em relação com as glaciações, perguntaríamos qual o lugar dos restos paleolíticos do Vale do
Cértima. Se fosse possível e acertada a resposta, teríamos
esclarecido notavelmente as grandes questões do Quaternário
em Portugal.
Mas o problema, que não teve ainda solução satisfatória quanto à
geologia mundial do Quaternário, não pode ter solução
quanto ao nosso País, falho de Paleolítico ao norte do Tejo e
tão escasso em estações de profundidade que só se encontra
estratigrafia em Arronches e na Mealhada, de muito pouco servindo aos trabalhos de sincronização, os achados de superfície
como os dos arredores de Lisboa e do Minho e os depósitos
das grutas como os da Furninha, perto de Peniche.
Entre as mais notáveis tentativas de cronografar as indústrias humanas do Paleolítico, conta-se a do professor BREUlL, que
tive a honra de conhecer pessoalmente em Paris em 1931, tentativa que veio referida na
Brotéria pelo Sr. P.e EUGÉNIO JALHAY, outro
ilustre pré-historiador, verdadeira autoridade em Portugal, cujo
nome cito juntando ao prazer da admiração pelo seu saber o
da gratidão pelas benévolas referências que tem feito a alguns
dos meus humildes trabalhos.
Segundo o resumo do Sr. P.e
JALHAY, o professor BREUIL
reconheceu nas margens do Somme três períodos nitidamente
interglaciários, que serão, a contar dos terraços superiores para
os inferiores, Gunz-Mindel, Mindel-Riss, Riss-Würm.
A seguir ao primeiro destes períodos interglaciários, aparecem
/ 52 / vestígios nítidos de três períodos glaciários, alternando com os
glaciários. Seriam Mindel, Riss e Würm, cabendo a
Gunz a formação do primeiro leito do rio, no terraço de
40 metros.
Daqui resulta para BREUlL a colocação das indústrias de
lascas toscas inferiores ao Red Crag de Ipswich, no Pre-Gunz
e Gunz; a indústria de bifaces prechelense e chelense e a base
da indústria clactonense, de largos planos de percussão, no
Gunz-Mindel; o Acheulense, parte do Clactonense e do Levaloisense, no Mindel-Riss; parte do Levaloisense e Mustierense
de Weimar e Grimaldi, no Riss-Würm, pertencendo o fim do Mustierense e o
Aurinhacense, o Solutrense e o Madalenense antigo, ao Würm I e Würm lI.
«Por brilhante que seja a classificação do erudito professor
do Colégio de França, diz o Sr. P.e JALHAY, está ela ainda longe
de ser aceite unanimemente por todos os pré-historiadores!»
E tanto assim que apareceram em Inglaterra, depois, outras
classificações, as de BLAKE WHELAN e de BURKITT, e no país vizinho
a do professor OBERMAlER que diverge também de BREUlL, colocando o Aurinhacense superior e o Solutrense no máximo da
glaciação de Würm e o Aurinhacense inferior, o Mustielense e
o Acheulense no interglaciário Riss-Würm, sendo o Magdalenense epiglaciário.
Uma tentativa curiosa para sintetizar os problemas cronológicos da geologia, da paleontologia e da arqueologia pré-histórica,
é a do professor FRIEDRICH E. ZENNER, referida há tempo em Le Mois, pois tenta aplicar os resultados do estudo da radiação solar à
cronologia pleistocénica da Europa Central, utilizando
«a curva de radiação» de MILANKOVITCH.
E esta tentativa é particularmente curiosa porque os cálculos, pela teoria do resfriamento estival de MILANKOVITCH, coincidem com os de PENCK e BRÜCKNER, que atribuem ao conjunto
do período glaciar quaternário a duração de 600,000 anos.
Julgo muito falíveis todos estes cômputos tendentes ao estabelecimento de uma cronologia absoluta, mas é sem dúvida
interessante a aparelhagem do método que permitiria datar,
até, o desaparecimento das antigas espécies e a aparição de
novas, bem como as migrações, relacionando quase que matematicamente, os factos paleontológicos com os fenómenos climáticos.
Segundo esta teoria, o Homo Heidelbergensis ou
Homem de
Mauer, que é o homem fóssil mais antigo, não pode ser posterior à fase interglaciária situada entre Gunz II e Mindel
I.
Pode-se-lhe atribuir a cultura pré-chelense que se situaria na
escala absoluta pela ano 500.000. O Homem de Neanderthal
viveria na Alemanha na última fase do interglaciar Riss-Würm
e ainda teria assistido à glaciação do Würm, o que lhe indica
uma antiguidade de 140 a 105.000 anos.
/ 53 /
*
* *
Sem nos perdermos no deslumbramento de teorias como
as de ZENNER e MILANKOVITCH, e sem insistirmos na comparação
das cronologias relativas e classificações de BREUIL, COMMONT e
OBERMAIER, BLAKE WELAN e BURQUITT, direi, simplesmente, com o Sr.
Professor Dr. MENDES CORRÊA, que não é fácil fixar as
relações cronológicas das várias estações paleolíticas portuguesas
e dos seus achados.
Quanto ao distrito de Aveiro, onde há, sem dúvida alguma,
depósitos quaternários, a escassez de fósseis post-pliocénicos e de
instrumentos paleolíticos torna particularmente difícil o problema.
Já as formações reputadas terciárias se apresentam
totalmente desprovidas de documentos paleontológicos. Por isso a
tendência por mim várias vezes manifestada de incluir no Pleistoceno ou dele aproximar os planaltos arenosos e cascalhentos
de Estarreja a Mira e de Aveiro a Albergaria, Águeda e
Buçaco, não tem podido firmar-se, persistindo, portanto, e continuando
eu mesmo a adoptar a classificação de CHOFFAT que os considerou
pliocénicos.
Nestes terrenos a falta de fósseis tem sido, até hoje, absoluta.
Do Quaternário, porém, alguns fósseis há
− os de Macinhata
e da Mealhada − e se não são abundantes, chegam, com os instrumentos
líticos do Vale do Cértima, para comprovar a idade
pleistocénica das jazidas.
Mas se a falta de fósseis e materiais arqueológicos não é
total, a verdade é que os elementos até hoje descobertos não
são bastantes e suficientemente seguros para se estabelecer na
região a cronologia do Quaternário e para se resolver o problema
duplamente interessante de identificar os depósitos post-neogénicos ou post-terciários e desses, quais os terrenos pisados
pelo Homem Paleolítico.
A dificuldade persiste, ainda, na distinção das formações
quaternárias propriamente ditas, dos depósitos recentes ou da
actualidade geológica.
Averiguadamente quaternárias, entre nós, só duas estações
arqueológicas até hoje se descobriram: a estação clássica da
Mealhada e a da Furjaca, a dois quilómetros ao sul da Pampilhosa do Botão.
A primeira foi indicada a CARLOS RIBEIRO em 1876 pelo
Dr. COSTA SIMÕES. A segunda foi assinalada pelo professor da
Pampilhosa e meu amigo Sr. Firmino Brito Costa ao Sr. Dr.
MENDES CORRÊA, que ali esteve em 1930, identificada pelo saudoso e
talentoso RUI DE SERPA PINTO que dela não chegou a publicar
qualquer estudo, e explorada depois por mim, que aí recolhi,
por vezes, algum material.
Encontra-se o material obtido na exploração da Mealhada,
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em Lisboa, na Colecção dos Serviços Geológicos; encontra-se o material
da Furjaca no Museu Municipal de Aveiro, material esse não classificado
ainda, mas constituído por dois pequenos instrumentos e por ossos vários
fragmentados e cimentados pelos depósitos calcários numa verdadeira
brecha óssea.
Geologicamente, por falta de estratigrafia na Pampilhosa e por falta de
estudo da correspondência das camadas conhecidas da Mealhada com outros
depósitos do Quaternário, o problema
continua obscuro; arqueologicamente, o espólio recolhido e as condições
da sua jazida não são suficientes para se constatarem os caracteres
antropológicos e as características da cultura e da indústria lítica dos
nossos remotos antepassados, habitantes dessa região.
Como já vimos e anota o Sr. Dr. JOAQUIM FONTES, «é muito
difícil relacionar os fenómenos geológicos com os dados arqueológicos» e «os estudos sobre os terrenos da Península e especialmente
sobre os do nosso país, são muito poucos e ainda pouco concludentes para
se ver o quadro em que se passou toda essa longa evolução humana para cá
dos Pirenéus!»
Impõe-se, pois, um estudo sistemático da região, no contacto da meseta
com a orla mezo-cenozoica, e a oeste da linha de contacto, sob o ponto
de vista geológico, palentológico e pré-histórico, procurando
caracterizar os terraços aluvionares dos rios e ribeiras, determinando
as suas altitudes e correspondências e procurando estabelecer um quadro
completo da relacionação dos fenómenos geológicos do Quaternário no
ocidente português com as camadas fossilíferas da Mealhada e com as
brechas ósseas da Pampilhosa que serviriam de óptimos pontos de
referência.
É bem provável, bem possível pelo menos, que
esse estudo, efectuado no
Vale do Cértima, venha fazer uma luz preciosa sobre os grandes problemas
do Paleolítico e do Quaternário de Portugal.
*
* *
A Mealhada adquiriu importância na geologia e na arqueologia
pré-histórica portuguesas com as descobertas que ali se
fizeram em 1876, 1879 e 1880.
Foi o Dr. COSTA SIMÕES, como disse, quem assinalou essa estação
paleolítica ao grande geólogo CARLOS RIBEIRO que na comunicação feita ao
Congresso Internacional de Geologia de
Paris em 1878 sobre Formações terciárias de Portugal, referiu o achado de duas lâminas de dentes ,e alguns ossos de um
grande mamífero que GAUDRY com muitas reservas considerou ser o Elephas antiquus.
CARLOS RIBEIRO não nomeou a Mealhada, mas PAUL CHOFFAT pelo exame das
colecções dos Serviços Geológicos concluiu que esses restos fósseis
pertenciam à Mealhada.
O grande geólogo no célebre congresso de Lisboa de 1880
/ 55 / já fez referências claras às aluviões quaternárias da Mealhada,
relacionando os restos de diferentes espécies dos géneros Equus,
Elephas, Cervus eda alga que OSWALD HEER denominou Trapa
Natans.
Em 1895 NERY DELGADO estudando a glaciação do vale do
Mondego concluiu que o Elephas antiquus e o Cervus elaphus da
Mealhada deviam corresponder ao princípio do Quaternário.
Trata-se de uma fauna de clima quente. CHOFFAT, na mesma
ocasião, a propósito dos Tufos de Condeixa, estudou mais desenvolvidamente os fósseis e as aluviões dos cortes e escavações
que se fizeram na região. HARLÉ, em 1910, ainda deu uma nota
dos fósseis da Mealhada, nas Comunicações, onde, em 1916, o sr.
Dr. JOAQUIM FONTES publicou uma circunstanciada notícia de todos
estes trabalhos e da bibliografia da notável estação.
Por certo que muitos dos próprios habitantes da Mealhada,
medianamente ilustrados, ignoram hoje estes factos e hão-de
ficar surpreendidos com o seu relato, pois ignoram, até, os locais onde
foram achados esses fósseis.
Segundo refere o sr. Dr. FONTES, as explorações efectuaram-se em épocas diferentes, de 1879 a 1880, tendo-se cavado
seis poços, alguns dos quais nas propriedades dos srs. José
Duarte, Dr. Adriano, Augusto Ferreira, D. Ludovina e Dr. Costa
Simões.
NERY DELGADO, que CHOFFAT por acaso ali encontrou quando estudava o
Jurássico, em 1879, fornece-nos a nota estratigráfica. No poço da propriedade de José Duarte encontrou-se:
Sobre marnas liássicas com Belemnites e Terebrátulas na
camada de argila carregada: leito de calhaus rolados incluídos no grés −
0,30; grés grosseiros coerentes com calhaus dispersos − 1,00; camada de
argila gris-foncé, plástica, fina, contendo
raros calhaus rolados − 1,60; argila gris-foncé como a precedente com grãos de areia, muitos restos de quadrúpedes,
Unio,
grãos de plantas e na parte superior fragmentos de troncos
(linhite) e na base pequenos bivalves e univalves − 0,60.
As correntes quaternárias deviam ter revolvido primeiramente as marnas liássicas; os calhaus e a areia vieram depois.
No poço da propriedade do Dr. Adriano encontrou-se o
seguinte perfil:
Terra vegetal − 0,30; depósito de areia vermelha e calhaus
rolados com sílices talhados − 1,80; argila amarela, sem fósseis,
com fracos estratos de areias intercaladas − 1,70; argilas amarelas sem
fósseis − 0,30; areia solta − 0,30; areia e argila com
ossos − 0,20 ; argila com plantas − 0,30; argila com Unio indetermináveis e certos moluscos contemporâneos e fósseis do Lias
subjacente.
O Trapa Natans é da camada de argila
foncé deste poço.
A fauna da Mealhada foi estudada por GAUDRY, DEPÉRET e
/ 56 / HARLÉ, mas o mau estado dos ossos tornou impossível determinar as espécies. No entanto pode afirmar-se haver ali restos
de Equus e Cervus encontrados na camada de argila foncé e
talvez do Elephas antiquus.
A fauna malacológica foi classificada por ALBERTO GIRARD como sendo
formada por Limnea palustris, Valrata piscinalis, de Müll,
Limnea
limosa, de Lineu, Planorbis albus de Müll, Cyclas, e
Unio indetermináveis.
A Limnea palustris não era conhecida em Portugal apesar de o ser em Espanha. A
Limnea palustris ainda hoje vive na
região.
A flora foi classificada por GUSTAVO HEER.
Importante, porém, foi o achado de instrumentos paleolíticos, comprovativos da existência ali do homem nesses recuados tempos
do Quaternário.
Na colecção dos Serviços Geológicos encontra-se um
coup
de poing grosseiro, de quartzite, pesado, do tipo chelense, achado a
3m,30, medindo 0,145 por 0,08 de largo e 0,04 de espessura; um raspador
de silex amarelo, achado o 2m,40 na propriedade de Augusto Ferreira. É
mais perfeito e mede 0,095 por 0,015. Apareceram ainda uma lâmina de sílex e um raspador de sílex negro.
O sr. Dr. JOAQUIM FONTES faz ressaltar a importância da estação por ser
a única que se apresenta com estratos aluvionares bem definidos,
enquanto que nas cavernas não sucede assim e
em todas as outras os instrumentos líticos se encontram à superfície.
Seria por isso do mais alto interesse, diz o ilustre investigador,
fazer-se luz na cronologia do Paleolítico português por meio de novas escavações nesta região.
O artigo do sr. Dr. FONTES anda nas
Comunicações acompanhado por gravuras com os perfis esquemáticos feitos pelo colector
ANTÓNIO MENDES, que admitiu a hipótese, e nisso se baseou, do
Quaternário da Mealhada se repetir com a mesma disposição de materiais
desde Casal Comba a Anadia.
Eu vou mais longe. Presumo, pelo estudo que tenho feito do vale do
Cértima, que a disposição das camadas aluvionares da Mealhada se deve
manter ao longo de toda a depressão que se estende da Pampilhosa ao
Vouga, onde o Cértima desagua.
Nas Origens da Ria de Aveiro fiz notar a coincidência da direcção do
curso inferior do Vouga com o curso do seu pequeno afluente que reúne
hoje as insignificantes águas do
antigo vale onde uma torrente caudalosa nos tempos quaternários acumulou importantes materiais detríticos que devem estar depostos
com regularidade em toda a extensão do vale.
O Cértima captou o Vouga e desviou-o do seu curso normal e consequente,
que deveria ter uma direcção nordeste-sudoeste, como é a do seu curso médio, para uma linha
sudeste-noroeste, que coincide com uma linha desdobramento
/ 57 / hercínico paralela à linha de separação da meseta da orla
mesozóica.
Este fenómeno deve ter-se dado no Quaternário, depois do
levantamento da serra do Caramulo e do desmantelamento da
grande abóbada geológica de que o Buçaco é um vestígio e
que deveria ocupar a depressão que hoje se nota entre Caramulo,
Buçaco e Estrela.
O desequilíbrio das terras provocado por essas grandes perturbações
tectónicas do fim do Terciário e do princípio do
Quaternário, acompanhado por desgelos post-invernais e grandes
precipitações aquosas, deram à região o seu actual modelado.
Estas graves perturbações tectónicas, climáticas e geográficas parece não terem afectado os planaltos pliocénicos, jurássicos e liássicos de oeste que conservaram a sua horizontalidade
e apenas foram morfologicamente alterados pelo ravinamento
das águas que os cortaram em vários sentidos, formando uma
rede hidrográfica de que as actuais ribeiras, valas e levadas, e
os nateiros das praias de arroz, são últimas testemunhas.
Formações quaternárias encontram-se, pois, sem dúvida
alguma, no Vale do Cértima, que recolheu as águas torrenciais,
ou pelo menos, volumosas, de toda a depressão existente entre
o Buçaco, os montes das margens do Mondego e o horst de
Cantanhede e com essas águas subverteu os restos do Homem
Paleolítico das proximidades, juntamente com os restos da fauna
sua contemporânea.
O aparecimento de ossos quaternários e de vestígios humanos a sul da Pampilhosa, veio aumentar a probabilidade que
tínhamos de se encontrarem no Vale do Cértima novos documentos
paleontológicos e pré-históricos.
Por isso tenho prestado, e continuo prestando, a
esse vale, especiais
atenções, não desistindo das minhas observações e
pesquisas na Pampilhosa, Mealhada, Anadia, Águeda e Oliveira
do Bairro, mas especialmente nas depressões à vista do Crasto
da Anadia e na ramificação do Vale do Cértima pela Moita e
Monsarros até ao Buçaco.
Já o disse na comunicação que em 1935 fiz à Sociedade Portuguesa de
Antropologia e. Etnologia, na Universidade do
Porto: a certeza da existência de uma extensa e regular estratigrafia do Quaternário no Vale do Cértima, numa região que
sabemos, comprovadamente, ter sido habitada pelo Homem
Paleolítico, obriga a Ciência Nacional a não ficar inactiva perante
o problema.
O meu esforço individual pode resultar infrutífero por falta
de meios financeiros e de coadjuvação técnica em perfurações,
sondagens e escavações que se não fazem com exames superficiais e de boa vontade, mas com aparelhagem, pessoal, tempo
e dinheiro.
Não desanimo, no entanto, e continuarei trabalhando, pela
/ 58 / minha parte, por corresponder aos votos e desejos formulados,
a bem das Ciências Portuguesas, pelos ilustres pré-historiadores
Srs. Dr. JOAQUIM FONTES e P.e EUGÉNIO JALHAY, com a vontade de
arrancar à terra do Vale do Cértima alguns segredos mais sobre
a história do Homem Fóssil na nossa região e no nosso País.
Mas terei sorte nesta tentativa? As minhas esperanças são
bem pequenas por serem frágeis os elementos e precários os
meios de que disponho.
O meu sincero desejo é que alguém
− seja quem for,
consiga fazer luz no interessante e difícil problema que eu aqui
registo, arquivo e recomendo aos futuros estudiosos, e a que
espero voltar nestas colunas, brevemente, embora, como sempre,
pobre de saber e modesto no entendimento.
Quero crer que a Mealhada, a Pampilhosa, o Vale do Cértima e da Anadia com a sua estratigrafia quaternária poderiam
fornecer apreciáveis esclarecimentos aos problemas da pré-história se fossem submetidos a um estudo amplo e metódico.
Esse estudo necessitaria de numerosas sondagens e escavações, o que seria, por assim dizer, a parte mais rude, mais material e
mais dispendiosa da campanha.
Daí − se as explorações fornecessem os documentos paleontológicos e líticos e os elementos estratigráficos esperados e
prováveis − partiríamos para a estratigrafia de todo o Quaternário das
bacias do Vouga e do Mondego e não só observaríamos as camadas de profundidade, homólogas e concordantes, como os terraços
fluviais; dos terraços subiríamos à análise dos efeitos e
repercussões próximas dos glaciares da Estrela, hoje bem identificados
graças aos trabalhos de LAUTENSACH; esclareceríamos,
talvez, algumas das questões do diastrofismo do segmento da
costa atlântica entre o Douro e a Estremadura; descobriríamos,
possivelmente, algumas das relações existentes entre as imersões e
emersões dos nossos vales e os fenómenos de glaciação do
alto e as transgressões e regressões do mar; daríamos, quem sabe, um
avanço na história da Terra e do Homem em Portugal
nos remotos e obscuros tempos do Pleistoceno e do Holoceno.
Fagueira, mas falaz ilusão minha ou bem cabida esperança de podermos
servir, um dia, sobre a terra do nosso distrito, a
Ciência Nacional?
Se o programa é impraticável para tudo o que não seja
uma campanha de missão científica oficial, se os resultados não
corresponderem às esperanças, que ele seja tomado, ao menos,
como aspiração bem intencionada, clarão de aquele ideal que em todos nós
desperta as ambições generosas e fecundas que
nos levam à investigação no domínio das ciências e que são as
ambições de servirmos o Bem e de encontrarmos o Belo ou a Verdade!
ALBERTO SOUTO |