A
vasta obra de CASTILHO está cheia de referências à Castanheira do Vouga
e daria um curioso volume, cheio de incontestável interesse,
principalmente para o povo desta freguesia, a colecção de todas essas
referências em que, traçadas pela pena gloriosa desse grande mestre da
nossa literatura do Romantismo, sobressaem, com o mais vivo e colorido
relevo, tipos, costumes, paisagens e tradições daquela pitoresca região.
É certo que essa tarefa,
está, na sua maior parte, feita; pois o filho do Poeta − JULIO DE
CASTILHO − nas suas Memórias descreve, carinhosa e
minuciosamente, a vida de seu pai, acompanhando-a em todas as
vicissitudes, reproduzindo as alusões feitas à Castanheira do Vouga,
quer nos livros que ele escreveu, quer em correspondência vária e
apontamentos seus.
Mas além de nas referidas
Memórias de Castilho se tratarem também outros assuntos diversos,
tanto estas como os livros de CASTILHO, alguns deles pelo menos, são de
difícil aquisição; o Presbitério da Montanha, que trata mais de
perto aqueles lugares, e que toda a gente da Castanheira devia ler e
possuir − onde há páginas adoráveis − que jamais se igualarão em língua
portuguesa −, não se encontra facilmente nas livrarias... Apesar disso,
e porque grande foi o prestígio do nome de CASTILHO e da família, ainda,
volvido mais de um século, esse nome se ouve evocar por aqueles sítios,
com respeitosa e comovida homenagem. E a rememorá-lo, postado junto da
velha residência paroquial, como sentinela alerta, lá se conserva o
«Cedro de Castilho», como o povo lhe chama, e que o Poeta por suas mãos
plantou − erguendo para o céu o tronco já velhinho, numa afirmação viva
de que esse nome ilustre não esquecerá jamais...
Entretanto os anos vão
passando uns após outros e tudo tem seu fim, mormente quando o desleixo
e a incúria dos homens
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deixam perder as poucas relíquias que nos vão ficando do passado e que
nos podem recordar coisas de vincado sentido nacional. Ao povo da
Castanheira incumbe o dever de não deixar morrer essa tradição
honrosíssima da passagem de CASTILHO na sua freguesia, porque, quanto ao
seu nome literário, esse tem o padrão eterno da sua obra a
imortalizá-lo.
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O
CEDRO DE CASTILHO
vendo-se ainda parte do
telhado da residência
(Foto de J.
Coutinho) |
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O que urge fazer antes de
mais, é empregar todos os meios
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para proteger e salvar da ruína a velha residência onde o Poeta, na
companhia de seu irmão, o Prior doutor Augusto Frederico de Castilho,
passou uma boa parte da sua mocidade, e onde escreveu muitas páginas da
sua obra imorredoira; impedir que aquela modesta casa, onde o Prior
CASTILHO escreveu, a par de alguns trabalhos literários de reconhecido
valor, os sermões cheios de ensinamentos que pregava aos seus
paroquianos, desapareça ingloriamente. Não faz sentido que, na época de
renovação espiritual que se atravessa, ainda assistamos a casos de
desinteresse e abandono por tradições como esta. Mas o mal vem de
longe... Já em 1898, o Dr. JOÃO DE SOUSA DE VILHENA, então juiz em
Águeda, em carta dirigida a JÚLIO DE CASTILHO e por sugestão de quem
fora à Castanheira, dizia:
«Fui eu mesmo à Castanheira
em piedosa romaria, e por minha mão cortei o raminho que enviei a V. e
outro que conservo como recordação do mavioso Poeta, que tive a honra e
o prazer de tratar em Coimbra em casa de Gonçalo Telo, por ocasião de
uma das visitas que o imortal cego costumava fazer àquela sua tão
querida cidade. O querido cedro deve a vida ao ilustre pai de V.; a mim
deve o salvá-lo da morte afrontosa que lhe estava causando uma vulgar e
vil trepadeira! Envolvia-o todo! tinha-o quase estrangulado! Pedi ao
Pároco que a mandasse cortar».
«Do prebyterio descrito por
V. de tal modo que nos encanta, e nos faz desejar viver a vida dos
ilustres varões que ali habitaram, que lhe direi eu? Não sei de nojo
como o conte. Ali não há já, exceptuando o famoso cedro, uma recordação
do bondoso e honesto Prior Castilho, da habitação por vezes, da
ilustrada família Castilho. Tudo ali são ruínas ignominiosas; ruínas
físicas e ruínas morais».
«Aquela encantadora biblioteca, descrita tão graciosamente por V., está
hoje de portas escancaradas, sem janelas, com caliça
esverdeada nas paredes e serve de palheiro! Desisto de continuar...»(1)
São estas as palavras de
protesto, foi este o grito de alarme solto por uma pessoa estranha à
freguesia e à região, e que ninguém ouviu!.., Em 1826, quando a 23 de
Outubro o Prior CASTILHO ali deu entrada, a residência
era, no dizer do Poeta, «decrépita e caduca»(2);
mas o Prior alindou-a: mandou abrir janelas por onde entrou a luz;
mandou plantar roseiras e limoeiros que adornaram as paredes toscas, e
de tal forma a reparou, que se lhe pareceu «tugúrio quando entrou,
deixou-a quando saiu «palácio de delícias;» «de edificação nada lhe
acrescentou mais do que uma alegre e bem proporcionada livraria, coisa
inaudita, não só nova, naqueles sítios e na qual − diz o Poeta − viemos
a passar as mais suaves horas do dia e da noite, que o
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seu ministério lhe consentia vagas; (referia-se a seu irmão o Prior) mas
todo o edifício, dantes sombrio e não melancólico, porém triste e
soturno se estreou com rico sol, agasalhou-se, resplandeceu com
vidraças, alardeou alvura naquelas paragens desconhecida, e por cima
dela (como por cima de uma roupa cândida se lança um vestido bordado
para ir á festa) trajou roseiras e limoeiros entrelaçados, que misturam
as suas flores e frutos, e alegrando com os seus aromas todo o espaçoso
pátio igualmente revestido e relvado, atrai as aves de todos os céus
circunvizinhos e retém as pombas que não desertem de vivenda tão moldada
em todas as coisas para seu gosto.»
«Tal era a casa, cujo longo
portão do pátio, sempre aberto, alpendrado e coroado de heras,
espreitava ao longo da parede lateral e torre da igreja, através das
cerejeiras e plátanos do caminho e do adro, para descobrir
e chamar o mendigo ou extraviado que ao longe passasse pela encosta»(3).
Foi funda a impressão que
CASTILHO teve ao entrar a primeira vez na residência da Castanheira, e
sob ela, escreveu ele os formosos versos:
«Velo? Sonho? Deliro? Em solitário
monte
que se espanta de ver-me, e cuja austera fronte
nada avistou jamais no amplíssimo horizonte
de mundo a tumultuar, de cidades a rir...
neste ermo ignaro, frio, mudo,...
aqui... (deliro, ou sonho?) Aqui meu lar, meu tudo,
o meu presente e o meu porvir!!?»
(4)
Mas foi passando o tempo e tanto o Poeta como o Prior foram conhecendo
melhor o povo da freguesia em quem, nas horas agitadas, de sobressaltos
constantes na época das renhidas lutas que então se
travaram no país − só encontraram dedicação e amizade(5).
Aparte essas horas de incerteza, a vida na residência decorria calma e
serena; o Poeta passava-a entre os seus livros e só se interrompia para
conversar com um ou outro serrano que aparecia pela residência, a quem
gostava de perscrutar os sentimentos, apreender os modos e velhas
usanças da serra, e escutar os termos de castiça linguagem que por lá
havia ainda; ou para conversar um pouco com o celebrado Francisco Gomes,
antigo criado de Priores na Castanheira, a quem CASTILHO pintou assim:
«velho, quase macróbio, antigo
servo da Residência de S. Mamede onde já enterrara a três Priores. Era o
superintendente das lavouras da casa; pela sua larga experiencia o Borda
d'Água das vizinhanças, e, por nunca ter aprendido nada, nem a ler, nem
saído jamais dos seus montes, um dos mais chapados clássicos que nunca
topei! Coitado! Come-o, há já quatro anos, a terra do
adro da freguesia»(6).
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Vida simples era essa que os
dois irmãos ali levavam, cuja quietude só de longe em longe era
quebrada, ou nos dias festivos da freguesia em que o Poeta e o Prior se
associavam à alegria daquela gente, ou com o festejar de algum
acontecimento mais íntimo, como aconteceu num dia de aniversário
natalício de CASTILHO. Do bulício, da azáfama que então houve na
residência para comemorar essa data, dá ele conta numa carta em verso
que escreveu a um amigo, de onde destaco estas passagens, repassadas dum
tão pronunciado e característico sabor aldeão:
Em torno ao teu amigo está fervendo,
Deslandes meu, na hora em que te escreve
de uma festa caseira o reboliço.
Bem que alveje de neve o Caramulo
e um frígido suão de lá nos venha,
ninguém hoje de frio aqui se queixa.
Não descansa nem pé, nem mão, nem língua;
o sumptuoso lar arde em três fogos;
O forno se afogueia; a branca mesa
vai-se de loiça e vidros alegrando.
Uma estuda em compor as sobremesas
outra enrama de loiro alta ferrugem
das vigas da cozinha; esta sisuda,
de riscado avental e nus os braços
com importância e afã revira espetos;
aquela anda cismática e raivosa
de eu nascer em Janeiro, num mês agreste
que além de um alecrim, de umas violetas,
nascidas por engano, além de rosas
frágeis, sem cheiro, e lânguidas, não cria
com que se enflore a mesa dos meus anos.(7)
E apagados os últimos ecos da festa alegre da família, o Presbitério
retomava o ambiente remansoso em que decorriam os outros dias, e que tão
bem se casava com o feitio concentrado, e meditativo do Poeta. O
Presbitério da Castanheira havia de ser para ele, pela vida fora, uma
corrente inesgotável de saudades; havia de lembrá-lo a cada passo, com
um carinho, um enternecimento tão fundo, tão sentido, que chega a causar
emoção a maneira como se lhe refere. Muitas vezes ele recorda «a humilde
residência escondida por trás do templo, no centro de outeiros mal
vestidos de urzes, remota de todo o povoado»; no retiro de umas serras,
sem mais vizinhos que uma fonte e uns carvalhos desterrados entre urzes.
Em pinceladas de vivas cores, pintou-a «toda por fora vestida de limões
bem corados, e rosas bem fragrantes, por entre verdura
bem espessa e bem amada de andorinhas.»(8)
Todas aquelas coisas, já à
distância de alguns anos, ele evocava saudosamente: «os contos e trovas
escutados na cozinha,
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em baixo, à lareira; as sepulturas da igreja, entre as quais uma entre
todas lhe falava sempre; a torre,
«dos tão sonoros tão contentes sinos»;
os carvalhos a cuja sombra
passeava; a horta; a fonte; as ruínas da igreja velha; a ponte de pau
sobre o Alfusqueiro; a capelinha de S. Sebastião». Veja-se como o Poeta
saúda o Presbitério, nestes delicados versos que lhe consagra:
Salvé, principio e fim dos meus
passeios!
Salvé, ó tu, cujo tecto, alva casinha,
cobre há perto de um lustro os meus autores,
meus castelos no ar, meus fáceis versos!
Salvé, co'o teu rosal; co'as tuas limas,
festivo ornato das paredes brancas;
co'o teu portão patente opresso de heras;
e co'a tua nogueira; e co o teu cedro,
brasão futuro do obumbrado pátio!
Salvé outra vez, meu presbitério! Salvé!
..............................................................
Mais tarde, no tumultuar da
vida da capital, ainda CASTILHO tinha desejos de voltar ao Presbitério,
de acolher-se sob o seu tecto humilde, de ver o cedro que ali plantara,
e lá de longe, dizia-lhe:
Ah! meu ermo, saudoso presbitério,
quando será que eu veja os espaldares
dos teus densos rosais! Teu tecto humilde,
o cedro hospitaleiro! as alvas pombas!
e as heras do portão! E as cerejeiras,
ornamento do adro ervoso e santo! ...
Os mais pequenos pormenores de todas as coisas que foram familiares ao
Poeta fazia-os ele reviver na sua memória com uma precisão que causa
espanto: recordava-se de tudo; tinha saudades de tudo! Do tempo que lá
viveu, das festas a que assistiu; dos amigos que o acompanharam em horas
tristes e incertas; dos bons montanheses com quem se comprazia de
conversar por lá, enfim de todas as pequenas e grandes coisas que lhe
ocuparam o espírito e decorreram durante a sua estada na serra.
Quando no ano de 1840
adoeceu o Prior CASTILHO, e os médicos o aconselharam a ir passar uma
temporada na Madeira, o que ele fez, acompanhou-o o Poeta, seu
inseparável companheiro, que passando ali o Natal desse ano, e depois de
ter assistido à missa do galo, na capela da casa onde ambos estavam,
dizia em carta dirigida à família:
«Muito nos lembramos hoje das nossas
noites de Natal na Castanheira do Vouga! Aquilo sim, que não era
possível ouvir-se sem verdadeira comoção! Cantavam-se quadras
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que tinham verdadeiro sentido e afecto; cantavam-se com uma música
montanhesa, prolongada, melancólica e muito suave. As mulheres vinham
sempre muito bem ensaiadas; havia entre elas muito bom concerto, e vozes
excelentes; isto de mais a mais no meio de um deserto, com a fogueira e
gaita de foles no adro, a Igreja bem iluminada, o Menino Jesus levado em
triunfo a ser beijado por todos os fieis, e todos, homens e mulheres e
criancinhas, oferecendo-lhe à porfia bolos, frutos, obras de
pinhões e figos muito artificiosos; frangos, pombinhos
brancos etc. Que saudade!... »(9)
Onde pode ler-se quadro de
mais colorido descritivo na narração duma noite de Natal, festejada por
serranos, numa igreja de povoado montesinho?!... E bem merece ser
conhecido, este bocadinho de prosa de oiro, que traduz com tão
encantadora beleza e tão pujante realidade uma das mais lindas tradições
religiosas de Portugal; bem merece ser divulgado, principalmente agora,
que em muitas igrejas da nossa região deixaram de ouvir-se aqueles
lindos cânticos tradicionais cantados pelo povo e que um errado critério
tem feito substituir por coros mal organizados, adoptando-se muitas
vezes músicas incaracterísticas, algumas de origem estrangeira, e de um
mau gosto, que a tudo podem saber, menos à melodia portuguesíssima dos
velhos cantares dos nossos avós...
Mas o artigo vai-se
alongando e eu não me propus ao começá-lo transcrever as passagens da
obra de CASTILHO em que há alusões à Castanheira do Vouga. Refiro apenas
algumas, onde, de uma maneira mais palpitante se mostra toda a grande
saudade que o Poeta ficou tendo daqueles lugares e de todas as coisas
que lhe falavam do tempo que passou naquele ermo, estudando e
versejando. Quis dizer ao povo desta freguesia se é que alguém de lá me
lerá − tudo o que aí fica e fala da sua terra, o que ele decerto
ignorará e só de forma vaga terá ouvido contar...
Não concluirei no entanto
sem assinalar duas visitas que CASTILHO fez à Castanheira, passados
alguns anos após a sua retirada dali. Uma delas teve lugar no ano de
1854; estava CASTILHO no Porto e a 4 de Outubro saiu dessa cidade,
jantando nesse dia em S. João da Madeira; e seguindo daqui a cavalo para
Albergaria-a-Velha, onde chegou às 9 horas da noite, com ânimo de
continuar a jornada até à Castanheira; os almocreves porém recusaram-se
a seguir para diante, mas o Poeta é que não desistiu do seu intento, e
deixando em Albergaria um criado com as malas, pelas 11 horas da noite,
lá se partiu sozinho, também a cavalo, com rumo à Castanheira, onde, na
madrugada de 5, batia à porta da residência!... A emoção que CASTILHO
deve ter sentido nesse momento, fácil será ao leitor avaliá-la, depois
do que fica escrito. Do carinhoso acolhimento
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que ali teve por parte do então Prior da Castanheira − Padre António
José Rodrigues de Campos − dá ele conta em carta datada da residência, e
ali escrita no referido dia 5, pelas 9 horas da noite, entre o chá e a
ceia, estando a chover; nessa carta que era dirigida a uma pessoa de
família, dizia CASTILHO:
«Não se pode ser mais obsequiado do
que eu tenho sido pelo nosso Prior. À vista to contarei, assim como a
impressão que tudo isto me causou.»
CASTILHO passou ali aquele dia 5 e ainda 6 e a manhã de 7, dia em que
partiu para Mogofores. Mais tarde, no ano de 1863, ainda voltou à
Castanheira; encontrava-se então também em Mogofores onde fora de visita
a pessoas de família, e no dia 5 de Maio do dito ano de 1863 partiu dali
com seu filho Manuel, montados em burros, em direcção à Castanheira do
Vouga.
Foram direitos a Aguada de
Cima, de onde os acompanhou uma antiga criada que os servira na
residência durante a sua estada lá, e que todo o caminho o Poeta
interrogou sobre os tempos passados na Castanheira, e que ia recordando
saudosamente. Ali chegaram quase ao sol posto. O filho de CASTILHO, que
o acompanhava, e a quem ele quis mostrar aqueles lugares que tão perto
tinha do coração, entregou também as suas impressões à escrita, e em
carta que dirigiu a sua mãe dizia:
«Demos uma volta pela quinta da
residência, que fica por trás da igreja, que é muito grande, talvez mais
do que a da Lapa, e separada desta apenas por um terrenosinho que
circunda a igreja, e pelo pátio comprido que está na frente da casa. Vi
o cedro, que está magnifico, e já custa a abraçar; a casa é velha e
pobremente arranjada, mas muito bonita. Está cheia de recordações
saudosas para o Papá».
«Depois de dar uma volta para visitar
todas estas coisas tomamos chá, e depois, antes da ceia, fomos um bocado
para a cozinha, aquela casinha tipo das aldeias, de que o Papá tem feito
tantas descrições, onde nos sentámos à roda da fogueira, recordando-se o
Papá da sua vida ali há trinta anos, sentado no mesmo lugar que dantes
ocupava. Contudo acho isto muito triste...»
*
*
*
Tudo isto me ressaltou ao
espírito numa das minhas últimas idas à Castanheira, ao verificar, mais
uma vez, o estado de abandono a que tudo aquilo chegou, principalmente a
desmantelada residência. Perdeu-se há anos uma boa oportunidade de
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lhe acudir, a quando
da visita que ali fez, a 26 de Outubro de 1908, o Conselheiro Augusto
Vidal de Castilho Barreto e Noronha, filho do Poeta, ali atraído pelo
desejo de visitar os lugares onde seu pai e tio tinham passado uma boa
parte da sua mocidade; o Conselheiro Castilho, segundo me narrou pessoa
que o acompanhou à Castanheira, mostrou-se deveras interessado por todas
aquelas coisas que envolviam tantas recordações, tendo estado na igreja
onde ainda existia, adornando a imagem de Nossa Senhora do Ó, um manto
de seda bordado por D. Maria Romana de Castilho, irmã do Poeta, que ali
fazia grandes temporadas, obra que o ilustre visitante muito apreciou;
também lhe foi oferecida nessa ocasião uma secretária, onde CASTILHO
escrevia quando ali esteve, e que ainda se conservava na residência
paroquial, oferta a que deu o maior apreço, e que muito o penhorou.
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UM ASPECTO DA CASA DA RESIDÊNCIA
junto da porta o seu actual possuidor
(Foto de J.
Coutinho) |
Se nessa ocasião houvesse a
lembrança de se tomarem quaisquer providências tendentes a manter a
conservação da residência, e melhor protecção àqueles lugares, tão
cheios de tradições veneráveis, estou certo que qualquer pedido nesse
sentido teria bom acolhimento.
Vem a propósito fazer
referência ao brilhante discurso que, dando as boas vindas ao
Conselheiro Barreto, pronunciou o
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então prior da Castanheira do Vouga, já falecido, P.e Manuel Lourenço
Júnior, sacerdote culto e ilustrado, natural de Águeda, merecendo
arquivar-se algumas passagens, que transcrevo:
«Foi aqui, nas longas noites
invernais, os lobos a uivar e a raspar ao portal da residência, em meio
desta solidão, que o pai de V.ª Ex.ª, o grande poeta António Feliciano
de Castilho escreveu a «Noite do Castelo», traduziu as «Metamorfoses»
de Ovídio e redigiu parte dos versos que depois compilou nas «Escavações
Poéticas».
«Foi aqui que o prior Augusto de
Castilho traduziu em verso português o poema «Farsália» de Lucano
repartindo as horas entre o recreio dos seus livros e o cumprimento das
suas obrigações, desbravando o tacanho cérebro de rústicos serranos e
socorrendo a indigência que por aí gemia nesses alcantilados montes.
«... e aí está viva e ardente no
coração de todos os meus paroquianos a memória saudosíssima do prior
Castilho e do idolatrado poeta António Feliciano de Castilho. Porque
esta freguesia ufana-se, envaidecida, de ter por cantor o sublime
estilista, o primeiro no conceito de Camilo, e eminente poeta; que, com
Garrett e Herculano, forma a trindade divina da nossa literatura do
século que passou.»
*
*
*
Os CASTILHOS deixaram a
Castanheira do Vouga, já passa dum século: o seu nome porém ainda por lá
é lembrado com respeito e parece que o espírito do Poeta por ali paira
ainda, pressentindo-se naqueles lugares, tão marcada ficou na tradição a
sua passagem por todos aqueles sítios...
Mas essa tradição, como
todas afinal, vai-se diluindo a pouco e pouco, e é uma obrigação que se
impõe reavivá-la, lembrando-a às gerações que se vão sucedendo, e, que a
vão escutando pelos tempos fora, já em sumida voz... É preciso dar a ler
às crianças das escolas essa obra formosíssima que é O Presbitério da
Montanha e que CASTlLHO dedicou à terra onde elas nasceram, para
que, logo no alvorecer da vida, sintam mais puro, mais forte, o amor que
lhes deve merecer o seu torrão natal, que como poucas terras de Portugal
teve a sorte de ser descrito em páginas de inigualável beleza.
Urge pois vigiar e guardar
com estremado carinho, essas
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relíquias do passado que são a igreja, a residência e o cedro. A este,
chamou CASTILHO o «brasão do Presbitério»: as três coisas reunidas pela
tradição que as envolve, formam o nobre, o glorioso
brasão da Castanheira!...
(10)
SOARES DA GRAÇA
____________________
DOCUMENTOS
CARTA DE COLACÇÃO DO PRIOR
CASTILHO NA CASTANHEIRA
JÚLIO DE CASTILHO, nas suas
Memórias diz que não lhe foi possível obter na Secretaria dos
Negócios Eclesiásticos, nem a data da ordenação do Prior CASTILHO, nem a
do seu despacho para o Priorado da Castanheira. Mas quanto à primeira um
apontamento de família diz que ele recebeu a ordem de Diácono em 19 de
Junho de 1825 e a de Presbítero em fins de Maio de 1826. O despacho que
o colocou na freguesia da Castanheira é de 13 de Agosto de 1826 e merece
ficar aqui arquivado o documento em que foi feita a sua nomeação para
pároco da Castanheira, que copiei na Câmara Eclesiástica de Coimbra
/ 44 /
onde o vi. Era escrito em bom pergaminho, tendo gravado um selo em
branco com as armas de Portugal.
«Dom Miguel Infante de
Portugal. Faço saber a vos Reverendo In-Christo Padre Bispo d'Aveiro,
que por se achar vaga n'esse Bispado a Igreja Prioral de Sam Mamede da
Villa da Castanheira do Vouga, per falecimento do Padre Paulo Fernandes
Castello-Branco, que é in solidum d'apresentação da Minha Casa e Estado
do Infantado; E attendendo ao que Me representou e comprovou com
documentos Augusto Frederico de Castilho, Doutor em a Faculdade de
Canones, e com ordens de Deacono: Hey por bem fazer-lhe mercê de o
prover, e Apresentar no dito Priorado vago; E vos Encomendo que nelle o
colleis por esta Minha Aprezentação, e lhe mandeis passar vossa Carta de
Collação na forma costumada na qual se fará expressa e declarada menção
desta Aprezentação para guarda, e conservação do direito da dita Minha
Caza, e será obrigado a aprezentar-se, e collar-se no termo de dous
mezes contados do dia successivo ao em que esta passar pela Chancellaria,
e dentro delles enviará certidão de tudo à Secretaria da Junta da mesma
Minha Caza em que se fará menção desta, para que conste que por virtude
della, foi instituido e collado na sobredita Igreja, pena de perdimento,
e vacatura, para Eu de novo a prover em quem For servido. Por firmeza do
que lhe Mandei dar esta assignada, e Sellada com o sello grande das
Minhas Armas a qual se cumprirá como nella se contem, sendo registada e
averbada em todos os Luggares respectivos. Não pagou novos Direitos
pelos não dever. Dada em Lisboa aos nove
dias do mes de Agosto. Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo
de mil outo centos e vinte e seis.
A Infanta Regente»
Carta pela qual Vossa Alteza
prove e aprezenta ao Padre Augusto Frederico de Castilho em a Igreja
Prioral de S. Mamede da Castanheira do Vouga, que se acha como assima se
declara. Para V. Alteza Ver.
Por Decreto da Sereníssima
Senhora Imfanta Dona Izabel Maria de 7 de julho de 1826, e Despacho da
Junta da Serenissima Caza do Infantado de 3 de Agosto de 1826
Cumpra sse e registe se.
Rezidencia de Aveíro 18 de Setembro de 1826 M Bispo de Aveíro
P. G. Doze mil reis de sello
Lx.ª
11 de Ag.º de 1826
NOME DO AUTOR |