Soares da Graça, Castilho na Castanheira do Vouga. Casa onde viveu e cedro que plantou, Vol. V, pp. 33-44.

CASTILHO NA CASTANHEIRA DO VOUGA

A CASA ONDE VIVEU - O CEDRO QUE PLANTOU

A vasta obra de CASTILHO está cheia de referências à Castanheira do Vouga e daria um curioso volume, cheio de incontestável interesse, principalmente para o povo desta freguesia, a colecção de todas essas referências em que, traçadas pela pena gloriosa desse grande mestre da nossa literatura do Romantismo, sobressaem, com o mais vivo e colorido relevo, tipos, costumes, paisagens e tradições daquela pitoresca região.

É certo que essa tarefa, está, na sua maior parte, feita; pois o filho do Poeta − JULIO DE CASTILHO − nas suas Memórias descreve, carinhosa e minuciosamente, a vida de seu pai, acompanhando-a em todas as vicissitudes, reproduzindo as alusões feitas à Castanheira do Vouga, quer nos livros que ele escreveu, quer em correspondência vária e apontamentos seus.

Mas além de nas referidas Memórias de Castilho se tratarem também outros assuntos diversos, tanto estas como os livros de CASTILHO, alguns deles pelo menos, são de difícil aquisição; o Presbitério da Montanha, que trata mais de perto aqueles lugares, e que toda a gente da Castanheira devia ler e possuir − onde há páginas adoráveis − que jamais se igualarão em língua portuguesa −, não se encontra facilmente nas livrarias... Apesar disso, e porque grande foi o prestígio do nome de CASTILHO e da família, ainda, volvido mais de um século, esse nome se ouve evocar por aqueles sítios, com respeitosa e comovida homenagem. E a rememorá-lo, postado junto da velha residência paroquial, como sentinela alerta, lá se conserva o «Cedro de Castilho», como o povo lhe chama, e que o Poeta por suas mãos plantou − erguendo para o céu o tronco já velhinho, numa afirmação viva de que esse nome ilustre não esquecerá jamais...

Entretanto os anos vão passando uns após outros e tudo tem seu fim, mormente quando o desleixo e a incúria dos homens / 34 / deixam perder as poucas relíquias que nos vão ficando do passado e que nos podem recordar coisas de vincado sentido nacional. Ao povo da Castanheira incumbe o dever de não deixar morrer essa tradição honrosíssima da passagem de CASTILHO na sua freguesia, porque, quanto ao seu nome literário, esse tem o padrão eterno da sua obra a imortalizá-lo.

 

 
 

O CEDRO DE CASTILHO
vendo-se ainda parte do telhado da residência
(Foto de J. Coutinho)

 

O que urge fazer antes de mais, é empregar todos os meios / 35 / para proteger e salvar da ruína a velha residência onde o Poeta, na companhia de seu irmão, o Prior doutor Augusto Frederico de Castilho, passou uma boa parte da sua mocidade, e onde escreveu muitas páginas da sua obra imorredoira; impedir que aquela modesta casa, onde o Prior CASTILHO escreveu, a par de alguns trabalhos literários de reconhecido valor, os sermões cheios de ensinamentos que pregava aos seus paroquianos, desapareça ingloriamente. Não faz sentido que, na época de renovação espiritual que se atravessa, ainda assistamos a casos de desinteresse e abandono por tradições como esta. Mas o mal vem de longe... Já em 1898, o Dr. JOÃO DE SOUSA DE VILHENA, então juiz em Águeda, em carta dirigida a JÚLIO DE CASTILHO e por sugestão de quem fora à Castanheira, dizia:

«Fui eu mesmo à Castanheira em piedosa romaria, e por minha mão cortei o raminho que enviei a V. e outro que conservo como recordação do mavioso Poeta, que tive a honra e o prazer de tratar em Coimbra em casa de Gonçalo Telo, por ocasião de uma das visitas que o imortal cego costumava fazer àquela sua tão querida cidade. O querido cedro deve a vida ao ilustre pai de V.; a mim deve o salvá-lo da morte afrontosa que lhe estava causando uma vulgar e vil trepadeira! Envolvia-o todo! tinha-o quase estrangulado! Pedi ao Pároco que a mandasse cortar».

«Do prebyterio descrito por V. de tal modo que nos encanta, e nos faz desejar viver a vida dos ilustres varões que ali habitaram, que lhe direi eu? Não sei de nojo como o conte. Ali não há já, exceptuando o famoso cedro, uma recordação do bondoso e honesto Prior Castilho, da habitação por vezes, da ilustrada família Castilho. Tudo ali são ruínas ignominiosas; ruínas físicas e ruínas morais».
«Aquela encantadora biblioteca, descrita tão graciosamente por V., está hoje de portas escancaradas, sem janelas, com caliça esverdeada nas paredes e serve de palheiro! Desisto de continuar...»
(1)

São estas as palavras de protesto, foi este o grito de alarme solto por uma pessoa estranha à freguesia e à região, e que ninguém ouviu!.., Em 1826, quando a 23 de Outubro o Prior CASTILHO ali deu entrada, a residência era, no dizer do Poeta, «decrépita e caduca»(2); mas o Prior alindou-a: mandou abrir janelas por onde entrou a luz; mandou plantar roseiras e limoeiros que adornaram as paredes toscas, e de tal forma a reparou, que se lhe pareceu «tugúrio quando entrou, deixou-a quando saiu «palácio de delícias;» «de edificação nada lhe acrescentou mais do que uma alegre e bem proporcionada livraria, coisa inaudita, não só nova, naqueles sítios e na qual − diz o Poeta − viemos a passar as mais suaves horas do dia e da noite, que o / 36 / seu ministério lhe consentia vagas; (referia-se a seu irmão o Prior) mas todo o edifício, dantes sombrio e não melancólico, porém triste e soturno se estreou com rico sol, agasalhou-se, resplandeceu com vidraças, alardeou alvura naquelas paragens desconhecida, e por cima dela (como por cima de uma roupa cândida se lança um vestido bordado para ir á festa) trajou roseiras e limoeiros entrelaçados, que misturam as suas flores e frutos, e alegrando com os seus aromas todo o espaçoso pátio igualmente revestido e relvado, atrai as aves de todos os céus circunvizinhos e retém as pombas que não desertem de vivenda tão moldada em todas as coisas para seu gosto.»

«Tal era a casa, cujo longo portão do pátio, sempre aberto, alpendrado e coroado de heras, espreitava ao longo da parede lateral e torre da igreja, através das cerejeiras e plátanos do caminho e do adro, para descobrir e chamar o mendigo ou extraviado que ao longe passasse pela encosta»(3).

Foi funda a impressão que CASTILHO teve ao entrar a primeira vez na residência da Castanheira, e sob ela, escreveu ele os formosos versos:

«Velo? Sonho? Deliro? Em solitário monte
que se espanta de ver-me, e cuja austera fronte
nada avistou jamais no amplíssimo horizonte
de mundo a tumultuar, de cidades a rir...
                 neste ermo ignaro, frio, mudo,...
aqui... (deliro, ou sonho?) Aqui meu lar, meu tudo,
o meu presente e o meu porvir!!?»
(4)


Mas foi passando o tempo e tanto o Poeta como o Prior foram conhecendo melhor o povo da freguesia em quem, nas horas agitadas, de sobressaltos constantes na época das renhidas lutas que então se travaram no país − só encontraram dedicação e amizade
(5). Aparte essas horas de incerteza, a vida na residência decorria calma e serena; o Poeta passava-a entre os seus livros e só se interrompia para conversar com um ou outro serrano que aparecia pela residência, a quem gostava de perscrutar os sentimentos, apreender os modos e velhas usanças da serra, e escutar os termos de castiça linguagem que por lá havia ainda; ou para conversar um pouco com o celebrado Francisco Gomes, antigo criado de Priores na Castanheira, a quem CASTILHO pintou assim: «velho, quase macróbio, antigo
servo da Residência de S. Mamede onde já enterrara a três Priores. Era o superintendente das lavouras da casa; pela sua larga experiencia o Borda d'Água das vizinhanças, e, por nunca ter aprendido nada, nem a ler, nem saído jamais dos seus montes, um dos mais chapados clássicos que nunca topei! Coitado! Come-o, há já quatro anos, a terra do adro da freguesia»
(6).
/ 37 /

Vida simples era essa que os dois irmãos ali levavam, cuja quietude só de longe em longe era quebrada, ou nos dias festivos da freguesia em que o Poeta e o Prior se associavam à alegria daquela gente, ou com o festejar de algum acontecimento mais íntimo, como aconteceu num dia de aniversário natalício de CASTILHO. Do bulício, da azáfama que então houve na residência para comemorar essa data, dá ele conta numa carta em verso que escreveu a um amigo, de onde destaco estas passagens, repassadas dum tão pronunciado e característico sabor aldeão:

Em torno ao teu amigo está fervendo,
Deslandes meu, na hora em que te escreve
de uma festa caseira o reboliço.
Bem que alveje de neve o Caramulo
e um frígido suão de lá nos venha,
ninguém hoje de frio aqui se queixa.
Não descansa nem pé, nem mão, nem língua;
o sumptuoso lar arde em três fogos;
O forno se afogueia; a branca mesa
vai-se de loiça e vidros alegrando.


Uma estuda em compor as sobremesas
outra enrama de loiro alta ferrugem
das vigas da cozinha; esta sisuda,
de riscado avental e nus os braços
com importância e afã revira espetos;
aquela anda cismática e raivosa
de eu nascer em Janeiro, num mês agreste
que além de um alecrim, de umas violetas,
nascidas por engano, além de rosas
frágeis, sem cheiro, e lânguidas, não cria
com que se enflore a mesa dos meus anos.
(7)


E apagados os últimos ecos da festa alegre da família, o Presbitério retomava o ambiente remansoso em que decorriam os outros dias, e que tão bem se casava com o feitio concentrado, e meditativo do Poeta. O Presbitério da Castanheira havia de ser para ele, pela vida fora, uma corrente inesgotável de saudades; havia de lembrá-lo a cada passo, com um carinho, um enternecimento tão fundo, tão sentido, que chega a causar emoção a maneira como se lhe refere. Muitas vezes ele recorda «a humilde residência escondida por trás do templo, no centro de outeiros mal vestidos de urzes, remota de todo o povoado»; no retiro de umas serras, sem mais vizinhos que uma fonte e uns carvalhos desterrados entre urzes. Em pinceladas de vivas cores, pintou-a «toda por fora vestida de limões bem corados, e rosas bem fragrantes, por entre verdura bem espessa e bem amada de andorinhas.»
(8)

Todas aquelas coisas, já à distância de alguns anos, ele evocava saudosamente: «os contos e trovas escutados na cozinha, / 38 / em baixo, à lareira; as sepulturas da igreja, entre as quais uma entre todas lhe falava sempre; a torre,

«dos tão sonoros tão contentes sinos»;

os carvalhos a cuja sombra passeava; a horta; a fonte; as ruínas da igreja velha; a ponte de pau sobre o Alfusqueiro; a capelinha de S. Sebastião». Veja-se como o Poeta saúda o Presbitério, nestes delicados versos que lhe consagra:

Salvé, principio e fim dos meus passeios!
Salvé, ó tu, cujo tecto, alva casinha,
cobre há perto de um lustro os meus autores,
meus castelos no ar, meus fáceis versos!
Salvé, co'o teu rosal; co'as tuas limas,
festivo ornato das paredes brancas;
co'o teu portão patente opresso de heras;
e co'a tua nogueira; e co o teu cedro,
brasão futuro do obumbrado pátio!
Salvé outra vez, meu presbitério! Salvé!
..............................................................

Mais tarde, no tumultuar da vida da capital, ainda CASTILHO tinha desejos de voltar ao Presbitério, de acolher-se sob o seu tecto humilde, de ver o cedro que ali plantara, e lá de longe, dizia-lhe:

Ah! meu ermo, saudoso presbitério,
quando será que eu veja os espaldares
dos teus densos rosais! Teu tecto humilde,
o cedro hospitaleiro! as alvas pombas!
e as heras do portão! E as cerejeiras,
ornamento do adro ervoso e santo! ...


Os mais pequenos pormenores de todas as coisas que foram familiares ao Poeta fazia-os ele reviver na sua memória com uma precisão que causa espanto: recordava-se de tudo; tinha saudades de tudo! Do tempo que lá viveu, das festas a que assistiu; dos amigos que o acompanharam em horas tristes e incertas; dos bons montanheses com quem se comprazia de conversar por lá, enfim de todas as pequenas e grandes coisas que lhe ocuparam o espírito e decorreram durante a sua estada na serra.

Quando no ano de 1840 adoeceu o Prior CASTILHO, e os médicos o aconselharam a ir passar uma temporada na Madeira, o que ele fez, acompanhou-o o Poeta, seu inseparável companheiro, que passando ali o Natal desse ano, e depois de ter assistido à missa do galo, na capela da casa onde ambos estavam, dizia em carta dirigida à família:

«Muito nos lembramos hoje das nossas noites de Natal na Castanheira do Vouga! Aquilo sim, que não era possível ouvir-se sem verdadeira comoção! Cantavam-se quadras / 39 / que tinham verdadeiro sentido e afecto; cantavam-se com uma música montanhesa, prolongada, melancólica e muito suave. As mulheres vinham sempre muito bem ensaiadas; havia entre elas muito bom concerto, e vozes excelentes; isto de mais a mais no meio de um deserto, com a fogueira e gaita de foles no adro, a Igreja bem iluminada, o Menino Jesus levado em triunfo a ser beijado por todos os fieis, e todos, homens e mulheres e criancinhas, oferecendo-lhe à porfia bolos, frutos, obras de pinhões e figos muito artificiosos; frangos, pombinhos brancos etc. Que saudade!... »(9)

Onde pode ler-se quadro de mais colorido descritivo na narração duma noite de Natal, festejada por serranos, numa igreja de povoado montesinho?!... E bem merece ser conhecido, este bocadinho de prosa de oiro, que traduz com tão encantadora beleza e tão pujante realidade uma das mais lindas tradições religiosas de Portugal; bem merece ser divulgado, principalmente agora, que em muitas igrejas da nossa região deixaram de ouvir-se aqueles lindos cânticos tradicionais cantados pelo povo e que um errado critério tem feito substituir por coros mal organizados, adoptando-se muitas vezes músicas incaracterísticas, algumas de origem estrangeira, e de um mau gosto, que a tudo podem saber, menos à melodia portuguesíssima dos velhos cantares dos nossos avós...

Mas o artigo vai-se alongando e eu não me propus ao começá-lo transcrever as passagens da obra de CASTILHO em que há alusões à Castanheira do Vouga. Refiro apenas algumas, onde, de uma maneira mais palpitante se mostra toda a grande saudade que o Poeta ficou tendo daqueles lugares e de todas as coisas que lhe falavam do tempo que passou naquele ermo, estudando e versejando. Quis dizer ao povo desta freguesia se é que alguém de lá me lerá − tudo o que aí fica e fala da sua terra, o que ele decerto ignorará e só de forma vaga terá ouvido contar...

Não concluirei no entanto sem assinalar duas visitas que CASTILHO fez à Castanheira, passados alguns anos após a sua retirada dali. Uma delas teve lugar no ano de 1854; estava CASTILHO no Porto e a 4 de Outubro saiu dessa cidade, jantando nesse dia em S. João da Madeira; e seguindo daqui a cavalo para Albergaria-a-Velha, onde chegou às 9 horas da noite, com ânimo de continuar a jornada até à Castanheira; os almocreves porém recusaram-se a seguir para diante, mas o Poeta é que não desistiu do seu intento, e deixando em Albergaria um criado com as malas, pelas 11 horas da noite, lá se partiu sozinho, também a cavalo, com rumo à Castanheira, onde, na madrugada de 5, batia à porta da residência!... A emoção que CASTILHO deve ter sentido nesse momento, fácil será ao leitor avaliá-la, depois do que fica escrito. Do carinhoso acolhimento / 40 / que ali teve por parte do então Prior da Castanheira − Padre António José Rodrigues de Campos − dá ele conta em carta datada da residência, e ali escrita no referido dia 5, pelas 9 horas da noite, entre o chá e a ceia, estando a chover; nessa carta que era dirigida a uma pessoa de família, dizia CASTILHO:

«Não se pode ser mais obsequiado do que eu tenho sido pelo nosso Prior. À vista to contarei, assim como a impressão que tudo isto me causou.»


CASTILHO passou ali aquele dia 5 e ainda 6 e a manhã de 7, dia em que partiu para Mogofores. Mais tarde, no ano de 1863, ainda voltou à Castanheira; encontrava-se então também em Mogofores onde fora de visita a pessoas de família, e no dia 5 de Maio do dito ano de 1863 partiu dali com seu filho Manuel, montados em burros, em direcção à Castanheira do Vouga.

Foram direitos a Aguada de Cima, de onde os acompanhou uma antiga criada que os servira na residência durante a sua estada lá, e que todo o caminho o Poeta interrogou sobre os tempos passados na Castanheira, e que ia recordando saudosamente. Ali chegaram quase ao sol posto. O filho de CASTILHO, que o acompanhava, e a quem ele quis mostrar aqueles lugares que tão perto tinha do coração, entregou também as suas impressões à escrita, e em carta que dirigiu a sua mãe dizia:

«Demos uma volta pela quinta da residência, que fica por trás da igreja, que é muito grande, talvez mais do que a da Lapa, e separada desta apenas por um terrenosinho que circunda a igreja, e pelo pátio comprido que está na frente da casa. Vi o cedro, que está magnifico, e já custa a abraçar; a casa é velha e pobremente arranjada, mas muito bonita. Está cheia de recordações saudosas para o Papá».

«Depois de dar uma volta para visitar todas estas coisas tomamos chá, e depois, antes da ceia, fomos um bocado para a cozinha, aquela casinha tipo das aldeias, de que o Papá tem feito tantas descrições, onde nos sentámos à roda da fogueira, recordando-se o Papá da sua vida ali há trinta anos, sentado no mesmo lugar que dantes ocupava. Contudo acho isto muito triste...»

*

*        *

Tudo isto me ressaltou ao espírito numa das minhas últimas idas à Castanheira, ao verificar, mais uma vez, o estado de abandono a que tudo aquilo chegou, principalmente a desmantelada residência. Perdeu-se há anos uma boa oportunidade de / 41 /  lhe acudir, a quando da visita que ali fez, a 26 de Outubro de 1908, o Conselheiro Augusto Vidal de Castilho Barreto e Noronha, filho do Poeta, ali atraído pelo desejo de visitar os lugares onde seu pai e tio tinham passado uma boa parte da sua mocidade; o Conselheiro Castilho, segundo me narrou pessoa que o acompanhou à Castanheira, mostrou-se deveras interessado por todas aquelas coisas que envolviam tantas recordações, tendo estado na igreja onde ainda existia, adornando a imagem de Nossa Senhora do Ó, um manto de seda bordado por D. Maria Romana de Castilho, irmã do Poeta, que ali fazia grandes temporadas, obra que o ilustre visitante muito apreciou; também lhe foi oferecida nessa ocasião uma secretária, onde CASTILHO escrevia quando ali esteve, e que ainda se conservava na residência paroquial, oferta a que deu o maior apreço, e que muito o penhorou.

UM ASPECTO DA CASA DA RESIDÊNCIA
junto da porta o seu actual possuidor
(Foto de J. Coutinho)

Se nessa ocasião houvesse a lembrança de se tomarem quaisquer providências tendentes a manter a conservação da residência, e melhor protecção àqueles lugares, tão cheios de tradições veneráveis, estou certo que qualquer pedido nesse sentido teria bom acolhimento.

Vem a propósito fazer referência ao brilhante discurso que, dando as boas vindas ao Conselheiro Barreto, pronunciou o / 42 / então prior da Castanheira do Vouga, já falecido, P.e Manuel Lourenço Júnior, sacerdote culto e ilustrado, natural de Águeda, merecendo arquivar-se algumas passagens, que transcrevo:

«Foi aqui, nas longas noites invernais, os lobos a uivar e a raspar ao portal da residência, em meio desta solidão, que o pai de V.ª Ex.ª, o grande poeta António Feliciano de Castilho escreveu a «Noite do Castelo», traduziu as «Metamorfoses» de Ovídio e redigiu parte dos versos que depois compilou nas «Escavações Poéticas».

«Foi aqui que o prior Augusto de Castilho traduziu em verso português o poema «Farsália» de Lucano repartindo as horas entre o recreio dos seus livros e o cumprimento das suas obrigações, desbravando o tacanho cérebro de rústicos serranos e socorrendo a indigência que por aí gemia nesses alcantilados montes.

«... e aí está viva e ardente no coração de todos os meus paroquianos a memória saudosíssima do prior Castilho e do idolatrado poeta António Feliciano de Castilho. Porque esta freguesia ufana-se, envaidecida, de ter por cantor o sublime estilista, o primeiro no conceito de Camilo, e eminente poeta; que, com Garrett e Herculano, forma a trindade divina da nossa literatura do século que passou.»

*

*        *

Os CASTILHOS deixaram a Castanheira do Vouga, já passa dum século: o seu nome porém ainda por lá é lembrado com respeito e parece que o espírito do Poeta por ali paira ainda, pressentindo-se naqueles lugares, tão marcada ficou na tradição a sua passagem por todos aqueles sítios...

Mas essa tradição, como todas afinal, vai-se diluindo a pouco e pouco, e é uma obrigação que se impõe reavivá-la, lembrando-a às gerações que se vão sucedendo, e, que a vão escutando pelos tempos fora, já em sumida voz... É preciso dar a ler às crianças das escolas essa obra formosíssima que é O Presbitério da Montanha e que CASTlLHO dedicou à terra onde elas nasceram, para que, logo no alvorecer da vida, sintam mais puro, mais forte, o amor que lhes deve merecer o seu torrão natal, que como poucas terras de Portugal teve a sorte de ser descrito em páginas de inigualável beleza.

Urge pois vigiar e guardar com estremado carinho, essas / 43 / relíquias do passado que são a igreja, a residência e o cedro. A este, chamou CASTILHO o «brasão do Presbitério»: as três coisas reunidas pela tradição que as envolve, formam o nobre, o glorioso brasão da Castanheira!... (10)

SOARES DA GRAÇA

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DOCUMENTOS

CARTA DE COLACÇÃO DO PRIOR CASTILHO NA CASTANHEIRA

JÚLIO DE CASTILHO, nas suas Memórias diz que não lhe foi possível obter na Secretaria dos Negócios Eclesiásticos, nem a data da ordenação do Prior CASTILHO, nem a do seu despacho para o Priorado da Castanheira. Mas quanto à primeira um apontamento de família diz que ele recebeu a ordem de Diácono em 19 de Junho de 1825 e a de Presbítero em fins de Maio de 1826. O despacho que o colocou na freguesia da Castanheira é de 13 de Agosto de 1826 e merece ficar aqui arquivado o documento em que foi feita a sua nomeação para pároco da Castanheira, que copiei na Câmara Eclesiástica de Coimbra / 44 / onde o vi. Era escrito em bom pergaminho, tendo gravado um selo em branco com as armas de Portugal.

«Dom Miguel Infante de Portugal. Faço saber a vos Reverendo In-Christo Padre Bispo d'Aveiro, que por se achar vaga n'esse Bispado a Igreja Prioral de Sam Mamede da Villa da Castanheira do Vouga, per falecimento do Padre Paulo Fernandes Castello-Branco, que é in solidum d'apresentação da Minha Casa e Estado do Infantado; E attendendo ao que Me representou e comprovou com documentos Augusto Frederico de Castilho, Doutor em a Faculdade de Canones, e com ordens de Deacono: Hey por bem fazer-lhe mercê de o prover, e Apresentar no dito Priorado vago; E vos Encomendo que nelle o colleis por esta Minha Aprezentação, e lhe mandeis passar vossa Carta de Collação na forma costumada na qual se fará expressa e declarada menção desta Aprezentação para guarda, e conservação do direito da dita Minha Caza, e será obrigado a aprezentar-se, e collar-se no termo de dous mezes contados do dia successivo ao em que esta passar pela Chancellaria, e dentro delles enviará certidão de tudo à Secretaria da Junta da mesma Minha Caza em que se fará menção desta, para que conste que por virtude della, foi instituido e collado na sobredita Igreja, pena de perdimento, e vacatura, para Eu de novo a prover em quem For servido. Por firmeza do que lhe Mandei dar esta assignada, e Sellada com o sello grande das Minhas Armas a qual se cumprirá como nella se contem, sendo registada e averbada em todos os Luggares respectivos. Não pagou novos Direitos pelos não dever. Dada em Lisboa aos nove
dias do mes de Agosto. Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil outo centos e vinte e seis.

A Infanta Regente»

Carta pela qual Vossa Alteza prove e aprezenta ao Padre Augusto Frederico de Castilho em a Igreja Prioral de S. Mamede da Castanheira do Vouga, que se acha como assima se declara. Para V. Alteza Ver.

Por Decreto da Sereníssima Senhora Imfanta Dona Izabel Maria de 7 de julho de 1826, e Despacho da Junta da Serenissima Caza do Infantado de 3 de Agosto de 1826

Cumpra sse e registe se. Rezidencia de Aveíro 18 de Setembro de 1826 M Bispo de Aveíro

P. G. Doze mil reis de sello Lx.ª
11 de Ag.º de 1826

NOME DO AUTOR

_________________________________________

(1)Memórias de Castilho, de JÚLIO DE CASTILHO.

(2)Presbitério da Montanha, de ANTÓNIO F. DE CASTILHO.  

(3) Memórias de Castilho, de JÚLIO DE CASTILHO. 

(4) Presbitério da Montanha, de ANTÓNIO F. DE CASTILHO.

(5)Memórias citadas. pe entre as pessoas dedicadas com que os CASTILHOS sempre contaram, merecem especial referência J. F. Dias Gomes, de Águeda, e Manuel Brêda, do Sardão; aquele, ignoro quem fosse, e este foi avô do distinto clínico nosso conterrâneo Dr. António Brêda. Era um homem cuja valentia ficou na tradição, contando-se ainda hoje a seu respeito episódios que a atestam, e, como também consta, um amigo seguro e certo. JÚLIO DE CASTILHO, escreve a respeito dos dois que se citam: «Ignoro quem fossem: mas o que se vê é que eram uns honrados homens merecedores dessa prova elevada de confiança; corresponderam a ela galhardamente, aplanando um sem número de dificuldadesinhas práticas»... etc. alusão ao conhecimento que eles tinham de factos passados com os CASTILHOS durante as lutas liberais, e que sabidos podiam comprometer gravemente os refugiados da Castanheira, que eram perseguidos pelas suas ideias políticas.  

(6)Memórias de Castilho, de JÚLIO DE CASTILHO.

(7)Memórias de Castilho, de JÚLIO DE CASTILHO.

(8)Memórias de Castilho, de JÚLIO DE CASTILHO. 

(9) Memórias de Castilho, de JÚLIO DE CASTILHO.   

(10)Sobre a estada dos Castilhos na Castanheira, li uns interessantes artigos na revista Estudos, de Coimbra, escritos por LlBÉRIO MOURÃo (n.ºs 139-140-141) e um outro artigo da autoria do distinto advogado de Anadia Dr. JOSÉ RODRIGUES, publicado no jornal Ideia Livre daquela vila e que foi transcrito na Independência de Águeda; quer neste, quer naqueles, se lamenta o estado de abandono em que se encontra o celebrado Presbitério.

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