Rodrigues Vieira, Pessoas e cousas velhas ou doutro tempo, Vol. IV, pp. 75-78.

PESSOAS E COUSAS VELHAS DOUTRO TEMPO

V

QUEM só dispõe de exíguas forças físicas e morais no trajecto mais ou menos longo da vida, se não quer arriscar-se a passar, de todo, por insano, tem de socorrer-se do auxílio alheio; tem de apegar-se ao bordão de peregrino, e limitar muito a jornada dar os seus passos sub conditione.

Pois é este o caso, penso eu, enquanto a mim...; chamado aqui pela voz da amizade e afectuosa consideração, afoitado a prosseguir pelo mesmo estímulo, nesta altura do século, sinto-me tanto mais reconhecido, quanto receoso do êxito; e tenho in mente a pedra do descanso onde hei-de repousar...

Sirvam estas breves palavras de tábua de agradecimento, a quem de direito, e de desculpa ao mais que se seguir, pouco ou muito.

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Em suma, nestas breves referências a pessoas e cousas velhas, ou doutro tempo, sem preocupações superiores de qualquer ordem, esbocei o carácter ou a fisionomia de dois ou três professores do liceu, que conheci e respeitei; e de quem guardo amistosas recordações: pois bem; vamos ainda a outras; se é lícito, se não é ser de todo ocioso e impertinente.

O Sá, o Dr. Sá:

O Sá, o Dr. João José Pereira de Sousa e Sá, professor de Geografia e História, e secretário do liceu. Era um homem baixo, entroncado, forte, moreno, de barba espessa, naturalmente curta, muito preta; nervoso a falar, a andar, a reger cadeira, em todo o serviço; mas, apesar desse nervosismo, quando passava uma certidão, ou fazia a sua assinatura, tinha uma caligrafia distinta, segura, artística, modelar; parecia um impresso. Dotado de excelente memória, feliz, pronta e farta. Em factos, e / 76 / em datas, era eminente, e vangloriava-se, a sorrir, dos seus méritos, a relatar a História Sagrada, a Grega, e a Romana, etc.

Ao mesmo tempo, tinha particularidades infantis, ou que assim se afiguravam, para repreender e para ensinar. Usava e aconselhava uma mnemónica particular, sui generis, de que, aliás, não fazia segredo. Por exemplo, se o estudante não fixava ou tinha dificuldade em fixar a data da revolução patriótica de Portugal de 1640, ele dizia, sacudido, nervoso, convicto: Ora essa, menino! não tem dificuldade nenhuma: ano de 1640? é lembrar-se de dezasseis tostões e um pataco, e pronto aí está, 1640...

E assim semelhantemente: 1500, o Brasil? Quinze tostões, e pronto!

Nesse tempo ainda cá não se usavam os escudos; e não eram vulgares as descobertas e inovações do sábio escritor Dr. TEÓFILO BRAGA; mas citava também, com muita ênfase e próspero êxito, a célebre e vulgarizada canção do Figueiral-Figueiredo:

No Figueiral figueiredo,
Ah! No Figueiral entrei
Três ninhas encontrara,
Três ninhas encontrei...


Ah! com que delicadeza, e mesmo, com que carinho ele pronunciava
ninhas!  Parece que ainda o estou a ouvir, na sua voz adocicada e suavíssima! Bem me lembro. Aonde isso vai!

Além da aula de Geografia e História, no liceu, ensinava também em sua casa, Aritmética, Retórica, e Literatura. Era quase uma Sorbonne; enciclopédico, salvo o devido respeito.

O ordenado oficial de professor era exíguo, era mesquinho; mas não se opunham restrições ao ensino particular, em nome da Liberdade... Embora a Liberdade, não sendo dirigida, tenha seus inconvenientes.

Desse excesso de mentalidade, talvez, resultou fadiga; a depressão mental que depois se houve de lamentar tristemente. Principiis obsta! sero medicina paratur...

E sabe, porventura, o leitor, onde era a casa de residência do professor Sá? Sim, porque ele e a família tinham casa própria, o que ainda hoje não é vulgar! Onde era? Pois bem: era na rua da Cruz!

Rua da Cruz! Isso! Hoje não restam nem vestígios da rua, nem da casa, nem dos donos e moradores! Tudo desapareceu!

A rua da Cruz era apenas uma viela curta e tortuosa; em certa altura da casa galante, moderna ou modernizada da / 77 / família do médico e amigo, Sr.. Dr. Armando da Cunha Azevedo.

Da rua da Cruz, dava para a rua Direita uma casa nobre da família Monteiro Rebocho, que os amigos Rufino e Francisco Monteiro, chamavam a «casa do tio Monteiro».

Desapareceu tudo; tudo desapareceu com os melhoramentos citadinos, assim como desapareceu, com a travessa, ou Largo do Governo Civil, o antigo e vasto quintal da família Sachetti, em frente do palacete.

A casa e quintal da família Sá recuava do alinhamento da rua da Cruz, e tinha também um quintalório; e nesse quintal cresceu, criou-se, viveu, sabem o quê? A palmeira que se ostenta agora na rotunda da rua nova, da rua avenida, que foi traçada no antigo caneiro, e que desapareceu com a alta muralha da cerca dos Carmelitas...

Na mudança transplantou-se esse magnífico exemplar de botânica, distinguindo-se nessa obra, além doutras, o saudoso presidente Gustavo Ferreira Pinto Basto, obtendo o melhor êxito dos seus critérios e esforços.

Essa palmeira ainda hoje se ostenta com majestade na rotunda, em frente da esquadra policial, embora mal vista dos motoristas que dão ali a volta, para melhor retorno.

Não terminarei, porém, estas linhas mal ordenadas, sem referir um episódio da vida, no liceu, do professor Sá, Dr. João José Pereira de Sousa e Sá, episódio que não ofende a sua memória, nem a doutros da casa.

Nesse tempo não se chegara à perfeição pedagógica de haver uma escola do magistério primário, que sendo um largo alcance no progresso da instrução e do ensino, foi também um grande alfobre de profissionais dos dois sexos.

Os candidatos ao magistério primário sujeitavam-se a um exame, por provas públicas (sic), orais e escritas, perante um júri de professores do liceu, presidido pelo Reitor ou comissário dos estudos. Faleceu há pouco o leccionista muito popular e competente desse tempo, que era o Sr.. Domingos dos Santos Gamelas, de saudosa memória. Esse, habilitou, nas horas vagas de desenhador das Obras Públicas, dezenas, centenas, de candidatos ao magistério primário.

Nesses júris entrava uma professora oficial, diplomada, de ensino primário, para apreciar e dar voto de competência, sobre as provas de Lavores. Essas provas eram uma obra de talho, um posponto ou sobrecosido; uma camisa, etc., de linha branca; um taco, ou umas malhas de meia; uma rendinha; etc..

Ora sucedeu que uma das candidatas apresentou ao júri um trabalho em pano, e delicado, para o continuar na mesa e que foi admirado pelos membros do júri, que, todavia não sabiam fazer meia, nem rendinha. No momento de apreciação, o professor / 78 / Sá, que estava na secretaria, foi chamado pelo reitor, amavelmente:

Venha ver, venha admirar este trabalhinho à mão: é um mimo, uma perfeição...

O professor Sá aproximou-se da mesa; deram-lhe a rendinha estendida, com jeito e delicadeza; e ele, consciente ou inconscientemente, pegou na rendinha, entre o polegar e o índice das duas mãos, estendendo-a. O Sá estendeu-a, esticou-a, e rompeu ou rasgou, − dizendo sentenciosamente:

Ora adeus: não tem consistência nenhuma!

Sob esta judiciosa sentença se fez a votação dos valores. A candidata, todavia, obteve a classificação de Bom sem consistência; episódios infantis e pedagógicos.

RODRIGUES VIEIRA

 

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