Alberto Souto, Arte Rupestre (Arqueologia pré-histórica do dist. de Aveiro), Vol. IV, pp. 5-19.

ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICA DO DISTRITO DE AVEIRO

ARTE RUPESTRE

AS INSCULTURAS DO ARESTAL E O PROBLEMA DAS COMBINAÇÕES CIRCULARES E ESPIRALOIDES DO NOROESTE PENINSULAR

CONSIDERO as Talhadas e o Arestal as mais aveirenses das nossas serras. Todas as suas águas ou vão directamente ao Vouga ou lá chegam por intermédio do Águeda, do Caima, do Teixeira e de outros mais pequenos afluentes. A silhueta trapezoidal da montanha de entre Caima e Vouga e a crista crenada e caprichosa da pequena serra do Alfusqueiro, são ornamentos preciosos da paisagem da Marinha.

Sem essa linha de elevações que do Cabo Mondego à Lousã e Bussaco, e do Caramulo aos montes do Douro, forma o alto do plinto que cerca a QUASE planície da Beira-Mar, o nosso horizonte seria monótono e triste. A planície, igual a si mesma, fatiga a vista e cansa a atenção.

Pelo contrário, a montanha eleva-nos o olhar e o pensamento.

A aparente cumeada que cerca as terras que flanqueiam a Ria, dá relevo, altanaria e grandiosidade ao panorama amplo e soberbo que é dos mais variados e belos da terra portuguesa.

As Talhadas e o Arestal são as serras mais próximas da Ria e do Baixo-Vouga, são as mais vouguenses das montanhas que separam a Beira Alta da Beira-Mar. Só é lástima não distarem do Oceano ou da laguna uns vinte quilómetros a menos. O aspecto do seu conjunto seria de causar espanto, singularidade notável, verdadeiro atractivo mundial.

Criei afeição a essas serras desde menino. Deitava para lá a janela do meu quarto na Boa-Vista da estrada de Ílhavo, quando deixei o berço; foram as suas formas deleite dos meus olhos, em contraste com o Mar, os esteiras, as praias e as salinas, / 6 / dos quatro até aos vinte anos e ainda hoje com enternecimento e agrado me quedo a contemplá-las, porque são elemento grato e inseparável da fisionomia da terra beiramarinha.

O Arestal, então, visto de Verdemilho, da estrada das Pirâmides ou do praião da Torreira, avoluma-se e cresce no céu.

Por efeito, talvez, da refracção e reflexão da luz nos multíplices espelhos das águas das rias e dos rios, esse monte de linhas serenas e recorte QUASE geométrico, toma fisionomias variadíssimas durante o ano, nas diversas estações, às vezes no mesmo dia: aproxima-se, afasta-se, pormenoriza-se, esbate-se; escurece, doira-se, azuleja, ruboriza-se, arroxeia!

Os seus recessos e as suas particularidades foram para mim sempre uma sedução. Procurei-lhe os mistérios; desvendei-lhe alguns.

A descoberta da sua arte rupestre e a publicação de elementos importantes e pouco conhecidos da sua geologia e da sua pré-história, têm sido das melhores satisfações do meu espírito.

Ali se encontram monumentos da arqueologia pré-histórica dos mais interessantes do distrito de Aveiro: uma extensa necrópole dolménica, patente ainda nas numerosas mamoas do seu alto e das suas chãs laterais; a nossa única anta intacta; uma rede de castros; duas das mais curiosas estações de arte rupestre de entre Vouga e Douro.

A sua petrografia, a sua tectónica, as suas minas, quedas de água, formas de erosão, panoramas, são uma verdadeira escola para estudiosos e turistas. A serra é, em resumo, um museu de geografia e pré-história cujo conhecimento convém divulgar.

Ocupo-me hoje apenas das suas insculturas.

*

*        *

Toda a montanha, na verdade, foi semeada de monumentos megalíticos e a cada passo se nos depara ainda no toponomástico, na tradição popular e nos vestígios materiais, a prova de que desde os tempos neolíticos, pelo menos, os homens fizeram dela a sua morada e nela assentaram uma vasta necrópole.

Como não podia deixar de suceder, os habitantes actuais dos pitorescos lugarejos que se abrigam nos seus recôncavos e se estendem pelas suas faldas, tudo isso atribuem aos moiros.

É o mesmo que no resto de Portugal: dólmens, mamoas, cercados, castros, redutos, citânias, castelos e cristelos, tudo para o povo é obra da moirama que por ali teria deixado enterradas as suas riquezas e pelas lombas, vales e penedias, conserva, ainda, sob encantamento, as suas raparigas, sempre jovens / 7 / e formosas a despeito do dobar dos séculos, condenadas a guardarem os seus tesoiros no arcano das fragas solitárias.

Idêntica monomania dos restos do domínio árabe, dos penedos mágicos e dos tesoiros ocultos, fornece o fundo folclórico das lendas da região que, neste ponto, apenas confirma a regra geral de um vasto ciclo de crendices populares da velha Península.

CASTELO DA PENA SEVER DO VOUGA

Reduto castrejo não romanizado
(Descoberto e explorado em 1930 pelo Dr. Alberto Souto)

Essas lendas, porém, servem-nos de guia no rebusco dos locais de monumentos e estações arqueológicas e foi ainda, em grande parte, guiado por elas que descobri muitos dos vestígios pré-históricos desta zona montanhosa onde a serra do Arestal é como que um grande promontório lançado pela meseta sobre as terras baixas da orla marítima que, a 15 quilómetros de distância, pertencem já à faixa meso-cenezóica que de Ovar para o sul acompanha a costa portuguesa.

As duas estações de arte rupestre que ali descobri, ambas na proximidade de grupos dolménicos, confirmam o asserto de D. JUAN CABRÉ quando afirma que é bastante frequente haver enterramentos pré-históricos nas vizinhanças dos sítios com arte rupestre estilizada. / 8 /

Porém a serra de Cambra e de Sever não foi nos tempos pré-históricos e proto-históricos apenas um cemitério.

Sete castros, quatro dos quais identifiquei e explorei, sete castros, pelo menos, conservam ainda no seu aro a memória irrefragável dos velhos habitantes.

Na campanha de 1929 impressionara-me o facto de somente se encontrarem os túmulos, abrigo das cinzas e morada dos mortos, e nem o mais leve vestígio da actividade habitual dos vivos que dell1óraram pela montanha.

Os anos de 1930 e 31 mostraram-me, nos castros que visitei, a verdade bem conhecida dos versos 195 e 196 do Ora Marítima de AVlENUS, de que

Cempsi atque Saefes arduos colles habent

Ophiusae in agro...

que para o caso da região, até 1922 quase que totalmente desconhecida e inexplorada, das cercanias do Arestal, se pode assim parafrasear:

Os povos lusitanos que povoaram a região montanhosa ocidental de entre Douro e Vouga, hoje pertencente aos concelhos de Vale de Cambra e Sever do Vouga, desde os tempos neolíticos até à segunda idade do ferro e até à conquista romana, habitavam em eminências fortificadas chamadas castros, como os outros povos do noroeste peninsular, ou aí se refugiavam quando atacados. Esses povos inumavam alguns dos seus mortos em dólmens e mamoas construídos nas chãs solitárias ou no sobranceiro dos montes, e gravavam, nas pedras ao ar livre das encostas da serra, certos sinais cujo significado se não percebeu ainda, mas cuja importância salta aos olhos mais profanos e cuja relação com aqueles monumentos da vida e da morte dos povos primitivos é evidente e incontroversa(1).

*

*          *

Os dois monumentos de arte rupestre a que me refiro encontram-se ambos na vertente ocidental da serra, a mais de meia encosta, voltados para o céu, mas inclinados, um para o lado do mar, isto é, do ocaso; outro mais para o lado do sol nascente, se bem que quase vertical.

Da primeira estação falei no Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-histórica de 1930. Do segundo / 9 / achado dei notícia, numa comunicação, à Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnografia em 1932.

Afastadas apenas uns 10 quilómetros, as duas estações algo diferem, como veremos, nos seus sinais dominantes.

SERRA DO ARESTAL SEVER DO VOUGA
lnsculturas dos Fornos dos Moiros
                                                               
(Fotografia do Dr. Alberto Souto)

Nos Fornos dos Moiros, concelho de Sever do Vouga, dominam a espiral, os círculos concêntricos e as covinhas; no Outeiro dos Riscos, freguesia de Cepelos, concelho de Vale de Cambra, dominam as combinações circulares, não havendo nesta última nem espirais nem grupos de covinhas.

*

*          *

A grande pedra insculturada do Arestal acha-se num grupo de penedos chamado pelo povo Fornos dos Moiros, à Fonte da Urgueira, a 700 metros de altitude.

Fornos dos Moiros é uma designação expressiva, mas nada original e muito genérica em arqueologia pré-histórica peninsular, pois que outras estações pré-históricas de Portugal e Espanha têm designações semelhantes.

O que me parece pelo exame do grupo de penedos graníticos / 10 / onde se encontra este curioso exemplar de arte rupestre, é que ali existiu uma caverna, o que me foi confirmado pela pessoa que me guiou até ao local(2), caverna essa que teria sido formada por uma saliência ainda reconhecível na rocha principal e pela disposição das pedras do aglomerado caótico proveniente da ejaculação granitóide entre duas faixas de micaxisto.

SERRA DO ARESTAL SEVER DO VOUGA
Pedra insculturada dos Fornos dos Moiros


A caverna foi destruída pelos pedreiros da vizinhança, tendo apenas escapado, por milagre, a pedra insculturada que mede cinco metros de comprido por dois de largo, exposta ao poente e mais ou menos horizontal, no centro da sua face lavrada, mas de manifesta tendência ovular, pois como quase todos os granitos da serra está sujeita a uma esfoliação por camadas concêntricas. Se efectivamente se tratasse de um santuário, a situação era magnífica para impressionar os espíritos: passa-lhe na frente o sol até ao ocaso, e a vista do mar ao longe e das colinas e dos campos marginais do Vouga que lhe ficam abaixo, era sem
dúvida sugestiva para invocar os deuses, fazer sacrifícios ou render louvores e dirigir imprecações aos poderes terríveis ou às forças criadoras!
/ 11 /

*

*          *

Os petróglifos dos Fornos dos Moiros da encosta arestalina, ocupam uma superfície de 4,50 m por 1,50 m e acham-se divididos em dois campos por um sulco longitudinal profundo que corre de norte para sul.

Vêem-se ali:

covinhas;
círculos simples com covinha central;
círculos concêntricos duplos e triplos;
círculos simples com apêndice radial;
círculos múltiplos com apêndice radial;
círculos simples com apêndice tangente;
semicírculos e. arcos de círculo;
espirais dextrorsum e sinistrorsum, formando báculo;
um círculo com cruz interior;
a chave;
sulcos irregulares e traços mais ou menos geométricos;
vários sinais de classificação embaraçosa.


A nova pedra insculturada do Outeiro dos Riscos, na Espirra Ovelha, Cepelos, por baixo do lugar de Gatão, na serra de Cambra, ao norte do planalto do Arestal e próximo da nova estrada de Vale de Cambra a S. Pedro do Sul, à altitude talvez de 600 metros, aproximadamente, é muito menos complicada, apresentando sinais mais simples, mas nem por isso de mais fácil compreensão.

Uma particularidade apresenta, ao contrário dos outros exemplares conhecidos das margens do Vouga e do geral dos monumentos idênticos da arte rupestre galaico-portuguesa: é quase vertical, ou tem uma inclinação forte sobre o plano horizontal.

Divide-se em três panos separados por fracturas naturais do bloco, sendo a parte central a mais importante, com três grupos de círculos concêntricos.

A primeira figura tem três círculos concêntricos e covinha central.

O maior diâmetro é de 0,46 m e os sulcos circulares separam-se uns dos outros por 1,10 m, 0,7 e 0,5. metros.

Um pouco abaixo outra figura contém cinco círculos com covinha central e 0,66 m de grande diâmetro. É um dos maiores exemplares que conheço.

Em baixo, quatro círculos concêntricos cortados por um raio que sai da covinha central e termina no círculo exterior, tendo a figura 0,65 m de diâmetro. / 12 /

CEPELOS VALE DE CAMBRA
Insculturas do Outeiro dos Riscos
                                                               
(Fotografia do Sr. Dr. Armindo de Matos)

Entre estas três figuras e ao lado delas no pano central vêem-se mais:

uma figura composta de covinha e círculo simples com 0,16 m de diâmetro;
um círculo de 0,23 de diâmetro com dois diâmetros perpendiculares, formando cruz;
um círculo de 0,33 m de diâmetro com duas covinhas e uma cavidade, que no seu conjunto dá ideia de uma figuração antropomórfica e que por isso denominei de «cara»;
dois círculos concêntricos com covinhas sendo de 0,41 m o seu maior diâmetro;
um círculo de 0,37 m de diâmetro com um diâmetro horizontal e cinco raios;
uma covinha e círculo com 0,14 m de diâmetro;
uma figura composta de covinha central com dois círculos concêntricos. Na coroa circular compreendida entre os dois círculos concêntricos, vê-se uma corda geométrica e três semi-raios formando sectores.
/ 13 /

No pano do lado do norte há uma inscultura: dois círculos concêntricos com cruz central e fossette, de 0,36 m de maior diâmetro.

No pano do sul, há duas insculturas de círculos concêntricos, sendo a superior composta por três círculos dos quais o maior tem 0,32 m. de diâmetro e covinha central; e o inferior por quatro círculos e covinha e com o maior diâmetro de 0,32 m.

No fundo deste pano há uma covinha e ao lado esquerdo do observador voltado para o poente, uma figura de quatro rectas, sendo duas unidas em forma de V e duas, as das extremidades, sem ligação.

Este monumento do Outeiro dos Riscos difere do seu vizinho dos Fornos dos Moiros, como disse, por não apresentar a espiral nem qualquer sulco unindo os sinais e pela regularidade geométrica das suas figuras.

Mas aproxima-se dele pela presença dos círculos concêntricos que são aliás frequentes, como é sabido, na arte rupestre do noroeste da península ibérica, isto é, na Galiza e norte de Portugal.

Segundo o saudoso Dr. RUI DE SERPA PINTO há, em verdade, círculos concêntricos em S. Martinho, Monte da Saia, Santa Marta, Sabroso e Briteiros, e na Galiza, como nos afirma o sr. CUEVILLAS, encontram-se em 14 localidades e ainda em Argos e Santa Tecla.

Dentro da bacia do Vouga, a que pertencem as duas estações por mim comunicadas, encontrou-os o Sr. Dr. ARISTlDES DE AMORIM GIRÃO, no lugar de Serrazes, norte do Vouga, estação rupestre da Pedra da Escrita, num prolongamento montanhoso das serranias do maciço da Gralheira que separa o Vouga do Douro e que a poente termina nas mencionadas serras de Cambra e de Sever.

Nas várias outras estações rupestres do sul do Vouga, mas da sua bacia hidrográfica, descritas pelo mesmo professor, não existem já os círculos concêntricos nem sinais parecidos com os do Arestal e Outeiro dos Riscos.

Parece, pois, que podemos considerar o rio Vouga como o limite sul dos círculos concêntricos, pois, com excepção da espiral da Serra da Estrela, descoberta pela Expedição Científica, não há notícia, que eu conheça, desses sinais ao sul daquele rio e se para lá dele existem, são de notável raridade, contrastando com a sua frequência nas estações do norte do Vouga.

O mesmo podemos afirmar da espiral.

MARTINS SARMENTO disse que a «célebre espiral e outros ornatos congéneres, que SALOMÃO REINACH confronta com as gravuras dos dólmens e UNGER com as gravuras dos rochedos das Ilhas Britânicas, são vulgares nos penedos e lajes dos nossos castros, dentro e fora das muralhas, e também se encontram / 14 / junto de mamoas perto dos castros» e aponta o exemplo de Sabroso onde a exploração das mamoas, relacionada sem dúvida alguma com essa estação, produziu algumas pontas de sílex e machados de pedra.

E refere que UNGER em 1870 considerou a espiral e os entrelaços um elemento nacional da ornamentação irlandesa, elemento esse que esteve muito em uso na época pagã entre os Celtas e os Germanos, formando a decoração quase exclusiva da mobília sepulcral da idade do bronze.

«É preciso admitir, diz UNGER, citado ainda pelo ilustre arqueólogo português, que a espiral é um ornamento próprio da raça indo-céltica e especialmente dos Celtas e Germanos, dos Pelasgos e dos Persas, e que este ornamento se conservou, principalmente, entre os povos cuja civilização se manteve num estado primitivo, restringindo-se o seu emprego a par e passo que os povos que a empregavam desenvolviam uma cultura mais elevada.»

O sr. Sr. JOSÉ FORTES estudou A espiral pré-histórica e outros sinais gravados em pedra, no n.º 10 da «Révue Préhistorique», de Paris, em 1907, encontrando-se uma notícia desse estudo no número 374 da «Portugalia», e conclui que a espiral, as curvas concêntricas e outros sinais gravados em pedras, se encontram tanto na velha Lusitânia, como na Irlanda; que na idade do bronze houve relações pré-históricas entre estas regiões; que estes sinais se introduziram na Irlanda pela via do litoral ibérico para o noroeste.

Os srs. FLORENTINO CUEVILLAS E BOUZA BREY, dizem-nos, porém, que as insculturas em espiral são pouco frequentes em Portugal e Espanha, mas que aparecem em Trega, Eiró, Briteiros, Sabroso e Freixo, que se encontram na Bretanha e na Irlanda, abundando no Mediterrâneo Oriental e nas cerâmicas neo e eneolíticas da Boémia, oeste da Alemanha, Transilvânia e Ilha de Malta, tendo sido um dos elementos decorativos mais empregados na idade do bronze.

Como se vê da meticulosa nota bibliográfica do trabalho do malogrado Dr. RUI DE SERPA PINTO, as combinações circulares são mais frequentes do que as espirais em Portugal e na Galiza, aparecendo também na Bretanha, Irlanda, Escócia, Inglaterra e Escandinávia.

O que, pelas comunicações que fiz ao Congresso Internacional de 1931, à Associação Portuguesa de Antropologia e Etnografia e por este artigo se constata, é que o nosso país possui mais duas estações de arte rupestre com gravuras em que entram os círculos concêntricos, acompanhados numa pelos círculos simples e círculos com raios e diâmetros, e que possui mais uma estação com a espiral, destrorsa e sinistrorsa, aliada aos círculos e a outros sinais, como a «chave», que, segundo informes do sr. Dr. SANTOS JÚNIOR, aparece também no dólmen / 15 / de Zêdes e nas pinturas da Pala da Moura, em Vilarinho da Castanheira, de Carrazeda de Ansiães.

*

*          *

Apesar de ter lido já que em La Guardia as crianças brincando, ainda hoje, com utensílios de pedra, conseguem produzir verdadeiras insculturas nos rochedos da praia, acho muito difícil que os petroglifos dos Fornos dos Moiros do Arestal e do Outeiro dos Riscos da serra de Cambra tenham sido feitos com simples instrumentos líticos.

O granito em que se encontram é duríssimo e o escopro de aço bem temperado de que me servi para limpar as insculturas só fortemente batido conseguia abrir sinais na superfície das rochas vizinhas.

Relacionando-se, como é lícito, estas gravuras rupestres com as necrópoles dolménicas das proximidades, tudo leva a crer que pertençam à idade do bronze, como ensina o professor OBERMAlER.

De facto, à clássica presunção duma grande antiguidade dos dólmens, contrapõe-se hoje a tendência assinalada pelo professor sr. Dr. MENDES CORREIA, para datar os mais antigos da fase avançada ou final do neolítico, enquanto que a cultura dolménica se prolongaria por todo o eneolítico até ao fim do primeiro período do bronze.

Que nos dizem a este respeito os dólmens e as mamoas da serra do Arestal e suas vizinhanças e até que ponto podem os achados arqueológicos desse compartimento montanhoso esclarecer o problema?

Vejamos: em primeiro lugar nunca se encontrou qualquer vestígio do paleolítico nesta região. Em segundo, têm aparecido machados de pedra polida, sete até hoje por mim recolhidos, um machado chato de bronze, e, recentemente, um outro machado de bronze de alvado e duas anilhas, e restos cerâmicos nos castros, que provam a idade dos metais, mesmo a idade do ferro. Ora os machados de pedra encontrados nas mamoas ou nas suas proximidades e mesmo perdidos na serra um apareceu, por acabar, escondido entre penedos e hoje recolhidos no museu arqueológico municipal de Aveiro que estou organizando, esses machados de pedra polida não poderiam, em caso algum, gravar na pedra do Arestal ou na pedra de Cambra as insculturas que lá se vêem.

A idade dos metais, pelo menos, parece-me, pois, confirmada pelos monumentos a que me estou referindo e ainda pelo aparecimento dos dois machados de bronze nas proximidades do castro do Cabeço do Aro, a 3 quilómetros apenas dos Fornos dos Moiros, dum colar de ouro perto de Rocas, da idade do / 16 / bronze, e dum vaso com ornatos mamilares em Sever, que não será anterior ao calcolítico e que eu recolhi no novo museu de Aveiro, onde constitui uma das suas mais valiosas e raras espécies.

Tentar, por minha conta, a interpretação destas gravuras no estado actual dos nossos conhecimentos sobre a arte rupestre, seria, por certo, fazer romance e esta revista não é, positivamente, um refúgio de romancistas.

SIRET, com a sua grande autoridade, não logrou demonstrar duma maneira convincente, na sessão do Porto, do Congresso de 1930, que a espiral tenha sido a imagem da vida, bela frase e sedutora presunção para a qual até hoje, que eu saiba, se não encontraram argumentos ou provas que a validem.

Alguns autores têm querido ver em petroglifos idênticos, sobretudo nos círculos e nas covinhas, representações astronómicas.

Estudando as pictografias das grutas cordovesas (Argentina), CLEMENTE RICCI atribuiu aos círculos, num estudo muito recente, um significado astronómico religioso, que será de admitir talvez no caso restrito, que versou, das pictografias argentinas.

Parece-me difícil, porém, descobrir no Arestal qualquer correlação das gravuras rupestres com o mapa das constelações visíveis no nosso hemisfério, nem tão pouco me parece plausível para os dois casos que estou comunicando a hipótese de se tratar de quaisquer representações esquemáticas da figura humana, nem mesmo de qualquer grau de evolução de representações coreográficas como o sr. CABRÉ propôs, plausivelmente, em outras hipóteses.

Quis o falecido arqueólogo espanhol, sr. CALVO y SANCHES, ver nuns sulcos das insculturas de St.ª Tecla o mapa do rio Minho.

Procurei qualquer semelhança entre os sulcos da pedra do Arestal e a representação gráfica dos rios da região e tive uma decepção completa, decepção que, confesso, senti também em St.ª Tecla, examinando o pretenso mapa insculpido na rocha da citânia.

A verdade é que nos escapa, por enquanto, o significado destas insculturas. Porém o que julgo mais de admitir é a hipótese de se tratar duma simbólica religiosa e de pedras sagradas, lugares de devoção ou de alta magia, ou então, com menos probabilidade, de monumentos destinados a memorar alguns fastos da vida dos povos pré-históricos das imediações da serra.

Ainda hoje, como todos sabem, os povos das encostas e dos vales das nossas montanhas conservam nos píncaros dos seus montes ou nas suas esplanadas, as capelitas votivas ou os santuários das suas grandes devoções. Lá estão perto o S. Tiago do Arestal, a Senhora da Saúde de Cambra, a Senhora da Laje nos confins de Arouca, a Senhora do Socorro em / 17 / [Vol. IV - N.º 13 - 1938] Albergaria-a- Velha e a Senhora da Penha, no Espinheiro, de Sever.

Alto significado deviam ter estas pedras insculturadas para assim se acharem perdidas e isoladas na serra entre tantas outras igualmente propícias ao exercício dessa arte rupestre cujas sucessivas descobertas vêm preocupando e intrigando os cultores da pré-história!

Parece-me bem que se estas insculturas fossem mero produto da fantasia e do capricho de qualquer habitante da montanha, outros, no correr do tempo o seguiriam, exercendo, por imitação, nas rochas vizinhas, a sua paciente, trabalhosa e inútil arte.

A raridade das estações rupestres é um argumento a favor do carácter religioso ou monumental das suas insculturas que exigiam já habilidade de desenho e técnica de execução, braço firme, ferramenta apropriada.

*

*          *

Santuário ao ar livre, como CALVO y SANCHES considerou o grupo de insculturas de Santa Tecla, monumento de façanhas guerreiras ou de grandes acontecimentos pré-históricos, pedra de práticas mágicas e supersticiosas, tentativas de escrita por signos estilizados e convencionais na época, mesmo simples produto do trabalho voluntário de artistas pré-históricos, em qualquer hipótese, quero eu crer que estes petroglifos são manifestações de uma cultura que acompanhou a chamada cultura megalítica, se dela mesma não fez parte durante algum tempo, cultura essa que para OBERMAIER é a da época mais recente da idade do bronze.

Essa cultura ter-se-ia difundido por migrações ou por contactos directos e parentescos 'étnicos ou pelas relações económicas, como pretende BOSCH GIMPERA, ou, por cópias e infiltrações, como pensa OBERMAIER, ou de proche en proche como supõe DÉCHELETTE, mas indubitavelmente segue, em certa altura, a civilização dos dólmens.


De facto verifica-se, como o sr. Dr. MENDES CORREIA nota, que a civilização dolménica é uma civilização litoral e que mesmo na Península Ibérica os dólmens são mais frequentes na periferia do que no centro, devendo a sua difusão ter-se efectuado por via marítima.

Ora o âmbito geográfico da arte rupestre da espiral e dos círculos concêntricos no ocidente europeu, parece ser também apenas o litoral. No interior da Península não se encontram ou raríssimas vezes se encontram semelhantes insculturas. D. JUAN CABRÉ, por mim consultado em 1930, afirmou-me que tinha descoberto numerosos exemplares de gravuras rupestres no interior / 18 / da Espanha, mas nunca a espiral, que constitui, salvo documentos em contrário que eu ignoro, uma particularidade manifesta do noroeste peninsular.

Examinando-se o mapa da arte rupestre do nosso país, publicado pelo Dr. RUI DE SERPA PINTO, constata-se que as estações ao sul do Mondego são raras: umas seis apenas dispersas num território de área dupla da parte de Portugal ao norte do Mondego onde se contam já nada menos de quarenta.

Pois para o sul do Vouga não passam os círculos concêntricos e da espiral ao sul desse rio só conheço um exemplar: o publicado por MARTINS SARMENTO a quando da Expedição Científica à Serra da Estrela(3).

Será um mero acaso?

Ninguém o dirá.

GIMPERA considerou a divisória de águas entre o Douro e o Mondego, isto é, o vale do Vouga, como a linha de separação dos dois grupos de castros que ele chamou o do norte e do sul.

É possível que na arte rupestre se dê também a separação que aponto e mais relacionada com as causas que determinaram a diferenciação dos castros.

Creio ter havido um ciclo de cultura megalítica em que estes petroglifos traduziram um simbolismo especial adoptado pelos povos do noroeste e pelos da Bretanha e Irlanda, que no-la transmitiram, cultura essa que acompanhou a cultura dolménica talvez já no seu final, mas que caminhou em sentido contrário, isto é, do norte para o sul.

«BOSCH GIMPERA, diz o ilustre presidente da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnografia, nas suas sistematizações das culturas peninsulares, preenche a lacuna entre o epipaleolítico e o neolítico avançado com o asturiense e a arte rupestre. Ficaria assim a arte rupestre a testemunhar a continuidade cultural entre as duas fases aludidas. Gravuras e pinturas em rochedos e em abrigos sob rochas, constituiriam os documentos de tão longa transição, estando assim por descobrir outros vestígios da existência humana correspondentes sem dúvida a tão extenso período»./ 19 /

Mas, no entender do mesmo autorizado pré-historiador, estas dificuldades resultam sobretudo da evolução dos nossos conceitos sobre o neolítico puro, pois que este foi consideravelmente encurtado.

É que, continua o mesmo professor, o mesolítico diminuiu-o, como também a cultura dos dólmens que se supunha ser puramente neolítica e é coeva das primeiras idades dos metais.

Esta sábia e sensata explicação pode harmonizar admiravelmente a dificuldade ressaltante do facto de se não encontrarem os círculos nem as espirais ao sul do Vouga quando é certo que tais signos deviam acompanhar, com a arte rupestre, a cultura dos dólmens na sua expansão para o sul e interior de Portugal e de Espanha.

O ciclo rupestre dos círculos e das espirais podia ter chegado ao noroeste peninsular pelas influências marítimas da Bretanha e da Irlanda e vizinhança da Galiza, no declínio da cultura dos dólmens, em plena idade do bronze.

E assim, com o termo dessa cultura e desuso das inumações sob as antas e as mamoas, teria morrido o simbolismo desses misteriosos signos, que só esporadicamente passaram o Vouga para o sul ou por caírem em desuso, ou por encontrarem na esquerda deste rio obstáculos étnicos ou culturais, assentes já ou vindos em invasões, que obstaram à sua expansão meridional.

As combinações circulares e espiralóides da arte rupestre, se é certo o que suponho, que não se expandiram normalmente para o sul do Vouga e terminaram o seu natural âmbito geográfico nas margens norte deste rio, podem constituir, assim, um novo e interessante argumento para provar as estreitas relações das populações do noroeste peninsular com as populações da Bretanha e da Irlanda, nos tempos do bronze, ou mesmo do bronze final, como pretende OBERMAIER.

Assim outras descobertas viessem esclarecer o problema e melhores obreiros, verdadeiras autoridades, tomassem a peito a teoria que não tem originalidade porque resulta, apenas, da conjugação de afirmações e interpretações alheias e de um exame de factos que as duas estações rupestres das serras de Cambra e de Sever vieram, afinal, a revelar-nos.

ALBERTO SOUTO

__________________________________________

(1) (1) O Sr. Dr. ARISTIDES DE AMORIM GIRÃO assinalou na sua Bacia do Vouga o primeiro reconhecimento de alguns momentos pré-históricos do Arestal. O estudo do ilustre professor foi publicado em 1922.     

(2) O meu amigo Sr. Diamantino Pereira da Cruz, inteligente funcionário da Fábrica de Pólvora de Cheias e prestante filho do pitoresco lugar de Espinheiro, Sever do Voug

(3) −  Outra estação de arte rupestre, com espirais, deveria ter existido na Serra do Arestal. Outra, pelo menos. Essa outra estação encontra-se documentada no Museu Municipal de Arqueologia e Etnografia de Aveiro, que trago em organização. Uma pedra com uma espiral foi-me revelada também pelo meu amigo sr. Diamantino Pereira da Cruz a quem devo a descoberta das insculturas dos Fornos dos Moiros. Essa pedra, em tempos arrancada à serra pelas pedreiros construtores, achava-se metida numa parede da casa daquele meu amigo, no Espinheiro, onde eu a examinei.
 

Teve o sr. Diamantino Pereira da Cruz a gentileza de mandar tirar da própria parede o valioso exemplar para mo oferecer. Devo a esse meu amigo e ao sr. Dr. Daniel de Almeida, distinto médico em Sever do Vouga, uma inesquecível cooperação nos meus estudos sobre o seu concelho. Aqui lhes consigno um reconhecido agradecimento.

 

Página anterior

Índice

Página seguinte