CONSIDERO as
Talhadas e o Arestal as mais aveirenses das nossas serras. Todas as suas
águas ou vão directamente ao Vouga ou lá chegam por intermédio do
Águeda, do Caima, do Teixeira e de outros mais pequenos afluentes. A
silhueta trapezoidal da montanha de entre Caima e Vouga e a crista
crenada e caprichosa da pequena serra do Alfusqueiro, são ornamentos
preciosos da paisagem da Marinha.
Sem essa linha
de elevações que do Cabo Mondego à Lousã e Bussaco, e do Caramulo aos
montes do Douro, forma o alto do plinto que cerca a QUASE planície da
Beira-Mar, o nosso horizonte seria monótono e triste. A planície, igual
a si mesma, fatiga a vista e cansa a atenção.
Pelo
contrário, a montanha eleva-nos o olhar e o pensamento.
A aparente
cumeada que cerca as terras que flanqueiam a Ria, dá relevo, altanaria e
grandiosidade ao panorama amplo e soberbo que é dos mais variados e
belos da terra portuguesa.
As Talhadas e
o Arestal são as serras mais próximas da Ria e do Baixo-Vouga, são as
mais vouguenses das montanhas que separam a Beira Alta da Beira-Mar. Só
é lástima não distarem do Oceano ou da laguna uns vinte quilómetros a
menos. O aspecto do seu conjunto seria de causar espanto, singularidade
notável, verdadeiro atractivo mundial.
Criei afeição
a essas serras desde menino. Deitava para lá a janela do meu quarto na
Boa-Vista da estrada de Ílhavo, quando deixei o berço; foram as suas
formas deleite dos meus olhos, em contraste com o Mar, os esteiras, as
praias e as salinas,
/ 6 / dos quatro
até aos vinte anos e ainda hoje com enternecimento e agrado me quedo a
contemplá-las, porque são elemento grato e inseparável da fisionomia da
terra beiramarinha.
O Arestal,
então, visto de Verdemilho, da estrada das Pirâmides ou do praião da
Torreira, avoluma-se e cresce no céu.
Por efeito,
talvez, da refracção e reflexão da luz nos multíplices espelhos das
águas das rias e dos rios, esse monte de linhas serenas e recorte QUASE
geométrico, toma fisionomias variadíssimas durante o ano, nas diversas
estações, às vezes no mesmo dia: aproxima-se, afasta-se, pormenoriza-se,
esbate-se; escurece, doira-se, azuleja, ruboriza-se, arroxeia!
Os seus
recessos e as suas particularidades foram para mim sempre uma sedução.
Procurei-lhe os mistérios; desvendei-lhe alguns.
A descoberta
da sua arte rupestre e a publicação de elementos importantes e pouco
conhecidos da sua geologia e da sua pré-história, têm sido das melhores
satisfações do meu espírito.
Ali se
encontram monumentos da arqueologia pré-histórica dos mais interessantes
do distrito de Aveiro: uma extensa necrópole dolménica, patente ainda
nas numerosas mamoas do seu alto e das suas chãs laterais; a nossa única
anta intacta; uma rede de castros; duas das mais curiosas estações de
arte rupestre de entre Vouga e Douro.
A sua
petrografia, a sua tectónica, as suas minas, quedas de água, formas de
erosão, panoramas, são uma verdadeira escola para estudiosos e turistas.
A serra é, em resumo, um museu de geografia e pré-história cujo
conhecimento convém divulgar.
Ocupo-me hoje
apenas das suas insculturas.
*
*
*
Toda a
montanha, na verdade, foi semeada de monumentos megalíticos e a cada
passo se nos depara ainda no toponomástico, na tradição popular e nos
vestígios materiais, a prova de que desde os tempos neolíticos, pelo
menos, os homens fizeram dela a sua morada e nela assentaram uma vasta
necrópole.
Como não podia
deixar de suceder, os habitantes actuais dos pitorescos lugarejos que se
abrigam nos seus recôncavos e se estendem pelas suas faldas, tudo isso
atribuem aos moiros.
É o mesmo que
no resto de Portugal: dólmens, mamoas, cercados, castros, redutos,
citânias, castelos e cristelos, tudo para o povo é obra da moirama que
por ali teria deixado enterradas as suas riquezas e pelas lombas, vales
e penedias, conserva, ainda, sob encantamento, as suas raparigas, sempre
jovens
/ 7 / e formosas a
despeito do dobar dos séculos, condenadas a guardarem os seus tesoiros
no arcano das fragas solitárias.
Idêntica
monomania dos restos do domínio árabe, dos penedos mágicos e dos
tesoiros ocultos, fornece o fundo folclórico das lendas da região que,
neste ponto, apenas confirma a regra geral de um vasto ciclo de
crendices populares da velha Península.
|
CASTELO DA PENA
−
SEVER DO VOUGA
Reduto
castrejo não romanizado
(Descoberto e explorado em 1930 pelo Dr. Alberto Souto) |
Essas lendas,
porém, servem-nos de guia no rebusco dos locais de monumentos e estações
arqueológicas e foi ainda, em grande parte, guiado por elas que descobri
muitos dos vestígios pré-históricos desta zona montanhosa onde a serra
do Arestal é como que um grande promontório lançado pela meseta sobre as
terras baixas da orla marítima que, a 15 quilómetros de distância,
pertencem já à faixa meso-cenezóica que de Ovar para o sul acompanha a
costa portuguesa.
As duas
estações de arte rupestre que ali descobri, ambas na proximidade de
grupos dolménicos, confirmam o asserto de D. JUAN CABRÉ quando afirma
que é bastante frequente haver enterramentos pré-históricos nas
vizinhanças dos sítios com arte rupestre estilizada.
/ 8 /
Porém a serra
de Cambra e de Sever não foi nos tempos pré-históricos e
proto-históricos apenas um cemitério.
Sete castros,
quatro dos quais identifiquei e explorei, sete
castros, pelo menos, conservam ainda no seu aro a memória
irrefragável dos velhos habitantes.
Na campanha de 1929 impressionara-me o facto de somente se encontrarem
os túmulos, abrigo das cinzas e morada dos mortos, e nem o mais leve
vestígio da actividade habitual dos
vivos que dell1óraram pela montanha.
Os anos de 1930 e 31 mostraram-me, nos castros que visitei, a verdade
bem conhecida dos versos 195 e 196 do Ora Marítima de AVlENUS, de que
Cempsi atque
Saefes arduos colles habent
Ophiusae in agro...
que para o caso da região, até 1922
quase que totalmente desconhecida e inexplorada, das cercanias do Arestal, se pode assim
parafrasear:
Os povos lusitanos que povoaram a região montanhosa ocidental de entre Douro e Vouga, hoje pertencente aos concelhos de Vale de
Cambra e Sever do Vouga, desde os tempos neolíticos
até à segunda idade do ferro e até à conquista romana, habitavam em eminências fortificadas chamadas castros, como os outros
povos do noroeste peninsular, ou aí se refugiavam quando atacados. Esses povos inumavam alguns dos seus mortos em
dólmens e mamoas construídos nas chãs solitárias ou no sobranceiro dos
montes, e gravavam, nas pedras ao ar livre das encostas da serra, certos
sinais cujo significado se não percebeu ainda,
mas cuja importância salta aos olhos mais profanos e cuja relação com
aqueles monumentos da vida e da morte dos povos primitivos é
evidente e incontroversa(1).
*
* *
Os dois
monumentos de arte rupestre a que me refiro encontram-se ambos na vertente ocidental da serra, a mais de meia
encosta, voltados para o céu, mas inclinados, um para o lado do mar,
isto é, do ocaso; outro mais para o lado do sol nascente, se bem que
quase vertical.
Da primeira estação falei no Congresso Internacional de Antropologia e
Arqueologia Pré-histórica de 1930. Do segundo
/ 9 /
achado dei notícia, numa comunicação, à Sociedade Portuguesa de
Antropologia e Etnografia em 1932.
Afastadas apenas uns 10 quilómetros, as duas estações algo
diferem, como veremos, nos seus sinais dominantes.
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SERRA DO ARESTAL
− SEVER DO VOUGA
lnsculturas dos Fornos dos Moiros
(Fotografia do Dr. Alberto Souto) |
Nos Fornos dos Moiros, concelho de Sever do Vouga, dominam a espiral, os círculos concêntricos e as covinhas; no Outeiro dos Riscos, freguesia de Cepelos, concelho de Vale de Cambra,
dominam as combinações circulares, não havendo nesta última nem espirais
nem grupos de covinhas.
*
* *
A grande pedra insculturada do Arestal acha-se num grupo de penedos
chamado pelo povo Fornos dos Moiros, à Fonte da Urgueira, a 700 metros
de
altitude.
Fornos dos Moiros é uma designação expressiva, mas nada original e muito
genérica em arqueologia pré-histórica peninsular, pois que outras
estações pré-históricas de Portugal e Espanha têm designações
semelhantes.
O que me parece pelo exame do grupo de penedos
graníticos
/ 10 / onde se encontra
este curioso exemplar de arte rupestre, é
que ali existiu uma caverna, o que me foi confirmado pela pessoa que me
guiou até ao local(2), caverna essa que teria sido formada por uma
saliência ainda reconhecível na rocha principal
e pela disposição das pedras do aglomerado caótico proveniente
da ejaculação granitóide entre duas faixas de micaxisto.
|
SERRA DO ARESTAL
− SEVER DO VOUGA
Pedra insculturada dos Fornos dos
Moiros |
A caverna foi destruída pelos pedreiros da vizinhança, tendo
apenas escapado, por milagre, a pedra insculturada que mede cinco metros de comprido por dois de largo, exposta ao poente e mais ou
menos horizontal, no centro da sua face lavrada, mas
de manifesta tendência ovular, pois como quase todos os granitos da serra está sujeita a uma esfoliação por camadas concêntricas. Se efectivamente se tratasse de um santuário, a situação
era magnífica para impressionar os espíritos: passa-lhe na frente
o sol até ao ocaso, e a vista do mar ao longe e das colinas e
dos campos marginais do Vouga que lhe ficam abaixo, era sem
dúvida sugestiva para invocar os deuses, fazer sacrifícios ou render
louvores e dirigir imprecações aos poderes terríveis ou
às forças criadoras!
/ 11 /
*
* *
Os petróglifos dos
Fornos dos Moiros da encosta arestalina, ocupam uma
superfície de 4,50 m por 1,50 m e acham-se divididos
em dois campos por um sulco longitudinal profundo que corre
de norte para sul.
Vêem-se ali:
covinhas;
círculos simples com covinha central;
círculos concêntricos duplos e triplos;
círculos simples com apêndice radial;
círculos múltiplos com apêndice radial;
círculos simples com apêndice tangente;
semicírculos e. arcos de círculo;
espirais dextrorsum e sinistrorsum, formando báculo;
um círculo com cruz interior;
a chave;
sulcos irregulares e traços mais ou menos geométricos;
vários sinais de classificação embaraçosa.
A nova pedra insculturada do Outeiro dos Riscos, na Espirra Ovelha, Cepelos, por baixo do lugar de Gatão, na serra
de Cambra, ao norte do planalto do Arestal e próximo da nova
estrada de Vale de Cambra a S. Pedro do Sul, à altitude talvez
de 600 metros, aproximadamente, é muito menos complicada, apresentando sinais mais simples, mas nem por isso de mais
fácil compreensão.
Uma particularidade apresenta, ao contrário dos outros exemplares conhecidos das margens do Vouga e do geral dos monumentos idênticos da arte rupestre galaico-portuguesa: é
quase
vertical, ou tem uma inclinação forte sobre o plano horizontal.
Divide-se em três panos separados por fracturas naturais
do bloco, sendo a parte central a mais importante, com três
grupos de círculos concêntricos.
A primeira figura tem três círculos concêntricos e covinha
central.
O maior diâmetro é de
0,46 m e os sulcos circulares separam-se uns dos outros por 1,10 m, 0,7 e
0,5. metros.
Um pouco abaixo outra figura contém
cinco círculos com
covinha central e 0,66 m de grande diâmetro. É um dos maiores
exemplares que conheço.
Em baixo, quatro círculos concêntricos cortados por um raio
que sai da covinha central e termina no círculo exterior, tendo a
figura 0,65 m de diâmetro.
/ 12 /
|
CEPELOS
− VALE DE CAMBRA
Insculturas do Outeiro dos Riscos
(Fotografia do Sr. Dr. Armindo de Matos) |
Entre estas três figuras e ao lado delas no pano central
vêem-se mais:
uma figura composta de covinha e círculo simples com
0,16 m
de diâmetro;
um círculo de 0,23 de diâmetro com dois diâmetros perpendiculares, formando cruz;
um círculo de 0,33 m de diâmetro com duas covinhas e uma cavidade, que no seu conjunto dá ideia de uma figuração
antropomórfica e que por isso denominei de «cara»;
dois círculos concêntricos com covinhas sendo de 0,41 m o
seu maior diâmetro;
um círculo de 0,37 m de diâmetro com um diâmetro horizontal e cinco raios;
uma covinha e círculo com 0,14 m de diâmetro;
uma figura composta de covinha central com dois círculos
concêntricos. Na coroa circular compreendida entre os dois círculos
concêntricos, vê-se uma corda geométrica e três semi-raios formando
sectores.
/ 13 /
No pano do lado do norte há uma inscultura: dois círculos
concêntricos com cruz central e fossette, de 0,36 m de maior diâmetro.
No pano do sul, há duas insculturas de
círculos concêntricos, sendo a
superior composta por três círculos dos quais o maior
tem 0,32 m. de diâmetro e covinha central; e o inferior por quatro
círculos e covinha e com o maior diâmetro de 0,32 m.
No fundo deste pano há uma covinha e ao lado esquerdo
do observador voltado para o poente, uma figura de quatro
rectas, sendo duas unidas em forma de V e duas, as das extremidades, sem ligação.
Este monumento do
Outeiro dos Riscos difere do seu vizinho dos Fornos
dos Moiros, como disse, por não apresentar a espiral
nem qualquer sulco unindo os sinais e pela regularidade geométrica das suas figuras.
Mas aproxima-se
dele pela presença dos círculos concêntricos que são aliás frequentes, como é sabido, na arte rupestre
do noroeste da península ibérica, isto é, na Galiza e norte de
Portugal.
Segundo o saudoso
Dr. RUI DE SERPA PINTO há, em verdade,
círculos concêntricos em S. Martinho, Monte da Saia, Santa Marta, Sabroso e Briteiros, e na Galiza, como nos afirma o sr.
CUEVILLAS, encontram-se em 14 localidades e ainda em Argos e
Santa Tecla.
Dentro da bacia do Vouga, a que pertencem as duas estações por mim comunicadas, encontrou-os o
Sr. Dr. ARISTlDES DE
AMORIM GIRÃO, no lugar de Serrazes, norte do Vouga, estação
rupestre da Pedra da Escrita, num prolongamento montanhoso
das serranias do maciço da Gralheira que separa o Vouga do
Douro e que a poente termina nas mencionadas serras de Cambra e de
Sever.
Nas várias outras estações rupestres do sul do Vouga, mas da sua bacia
hidrográfica, descritas pelo mesmo professor, não
existem já os círculos concêntricos nem sinais parecidos com
os do Arestal e Outeiro dos Riscos.
Parece, pois, que podemos considerar o rio Vouga como o
limite sul dos círculos concêntricos, pois, com excepção da espiral da Serra da Estrela, descoberta pela
Expedição Científica,
não há notícia, que eu conheça, desses sinais ao sul daquele rio e se
para lá dele existem, são de notável raridade, contrastando com a sua
frequência nas estações do norte do Vouga.
O mesmo podemos afirmar da espiral.
MARTINS SARMENTO disse que a «célebre espiral e outros
ornatos congéneres, que SALOMÃO REINACH confronta com as
gravuras dos dólmens e UNGER com as gravuras dos rochedos
das Ilhas Britânicas, são vulgares nos penedos e lajes dos nossos
castros, dentro e fora das muralhas, e também se encontram
/ 14 /
junto de mamoas perto dos castros» e aponta o exemplo de
Sabroso onde a exploração das mamoas, relacionada sem dúvida alguma com essa estação, produziu algumas pontas de sílex
e machados de pedra.
E refere que UNGER em 1870 considerou a espiral e os entrelaços um elemento nacional da ornamentação irlandesa, elemento esse que esteve muito em uso na época pagã entre os
Celtas e os Germanos, formando a decoração quase exclusiva
da mobília sepulcral da idade do bronze.
«É preciso admitir, diz UNGER, citado ainda pelo ilustre arqueólogo
português, que a espiral é um ornamento próprio da raça indo-céltica e
especialmente dos Celtas e Germanos, dos
Pelasgos e dos Persas, e que este ornamento se conservou, principalmente, entre os povos cuja civilização se manteve num
estado primitivo, restringindo-se o seu emprego a par e passo que os
povos que a empregavam desenvolviam uma cultura mais elevada.»
O sr. Sr. JOSÉ FORTES estudou
A espiral pré-histórica e outros sinais
gravados em pedra, no n.º 10 da «Révue Préhistorique»,
de Paris, em 1907, encontrando-se uma notícia desse estudo no número 374 da «Portugalia», e conclui que a espiral, as curvas
concêntricas e outros sinais gravados em pedras, se encontram tanto na
velha Lusitânia, como na Irlanda; que na idade do
bronze houve relações pré-históricas entre estas regiões; que
estes sinais se introduziram na Irlanda pela via do litoral ibérico para
o noroeste.
Os srs. FLORENTINO CUEVILLAS E BOUZA BREY, dizem-nos, porém, que as insculturas em espiral são pouco frequentes em
Portugal e Espanha, mas que aparecem em Trega, Eiró, Briteiros, Sabroso e Freixo, que se encontram na Bretanha e na Irlanda,
abundando no Mediterrâneo Oriental e nas cerâmicas neo e eneolíticas da
Boémia, oeste da Alemanha, Transilvânia e Ilha
de Malta, tendo sido um dos elementos decorativos mais empregados na idade do bronze.
Como se vê da meticulosa nota bibliográfica do trabalho do malogrado
Dr.
RUI DE SERPA PINTO, as combinações circulares
são mais frequentes do que as espirais em Portugal e na Galiza,
aparecendo também na Bretanha, Irlanda, Escócia, Inglaterra e
Escandinávia.
O que, pelas comunicações que fiz ao Congresso Internacional de 1931, à Associação Portuguesa de Antropologia e Etnografia e
por este artigo se constata, é que o nosso país
possui mais duas estações de arte rupestre com gravuras em
que entram os círculos concêntricos, acompanhados numa pelos
círculos simples e círculos com raios e diâmetros, e que possui
mais uma estação com a espiral, destrorsa e sinistrorsa, aliada
aos círculos e a outros sinais, como a «chave», que, segundo
informes do sr. Dr. SANTOS JÚNIOR, aparece também no dólmen
/ 15 /
de Zêdes e nas pinturas da Pala da Moura, em Vilarinho da
Castanheira, de Carrazeda de Ansiães.
*
* *
Apesar de ter lido já que em La Guardia as crianças brincando, ainda hoje, com utensílios de pedra, conseguem produzir
verdadeiras insculturas nos rochedos da praia, acho muito difícil
que os petroglifos dos Fornos dos Moiros do Arestal e do Outeiro dos Riscos da serra de Cambra tenham sido feitos com simples instrumentos líticos.
O granito em que se encontram é duríssimo e o escopro
de aço bem temperado de que me servi para limpar as insculturas só fortemente batido conseguia abrir sinais na superfície das
rochas vizinhas.
Relacionando-se, como é lícito, estas gravuras rupestres com
as necrópoles dolménicas das proximidades, tudo leva a crer
que pertençam à idade do bronze, como ensina o professor
OBERMAlER.
De facto, à clássica presunção duma grande antiguidade dos
dólmens, contrapõe-se hoje a tendência assinalada pelo professor
sr. Dr. MENDES CORREIA, para datar os mais antigos da fase avançada ou final do neolítico, enquanto que a cultura dolménica se
prolongaria por todo o eneolítico até ao fim do primeiro período
do bronze.
Que nos dizem
a este respeito os dólmens e as mamoas da
serra do Arestal e suas vizinhanças e até que ponto podem os
achados arqueológicos desse compartimento montanhoso esclarecer o problema?
Vejamos: em primeiro lugar nunca se encontrou qualquer vestígio do
paleolítico nesta região. Em segundo, têm aparecido
machados de pedra polida, sete até hoje por mim recolhidos,
um machado chato de bronze, e, recentemente, um outro machado de bronze
de alvado e duas anilhas, e restos cerâmicos nos
castros, que provam a idade dos metais, mesmo a idade do
ferro. Ora os machados de pedra encontrados nas mamoas ou
nas suas proximidades e mesmo perdidos na serra
−
um apareceu, por acabar, escondido entre penedos
−
e hoje recolhidos no
museu arqueológico municipal de Aveiro que estou organizando,
esses machados de pedra polida não poderiam, em caso algum,
gravar na pedra do Arestal ou na pedra de Cambra as insculturas que lá
se vêem.
A idade dos metais, pelo menos, parece-me, pois, confirmada
pelos monumentos a que me estou referindo e ainda pelo aparecimento dos dois machados de bronze nas proximidades do
castro do Cabeço do Aro, a 3 quilómetros apenas dos Fornos
dos Moiros, dum colar de ouro perto de Rocas, da idade do
/ 16 /
bronze, e dum vaso com ornatos mamilares em Sever, que não será anterior
ao calcolítico e que eu recolhi no novo museu de Aveiro, onde constitui uma das suas mais valiosas e raras espécies.
Tentar, por minha conta, a interpretação destas gravuras no estado
actual dos nossos conhecimentos sobre a arte rupestre, seria, por certo,
fazer romance e esta revista não é, positivamente, um refúgio de
romancistas.
SIRET, com a sua grande autoridade, não logrou demonstrar duma maneira convincente, na sessão do Porto, do Congresso de 1930,
que a espiral tenha sido a imagem da vida, bela frase e sedutora
presunção para a qual até hoje, que eu saiba, se não encontraram
argumentos ou provas que a validem.
Alguns autores têm querido ver em petroglifos idênticos, sobretudo nos
círculos e nas covinhas, representações astronómicas.
Estudando as pictografias das grutas cordovesas (Argentina), CLEMENTE
RICCI atribuiu aos círculos, num estudo muito recente, um significado
astronómico religioso, que será de admitir talvez no caso restrito, que
versou, das pictografias argentinas.
Parece-me difícil, porém, descobrir no Arestal qualquer
correlação das gravuras rupestres com o mapa das constelações visíveis
no nosso hemisfério, nem tão pouco me parece plausível para os dois
casos que estou comunicando a hipótese de se tratar de quaisquer
representações esquemáticas da figura humana, nem mesmo de qualquer grau
de evolução de representações coreográficas como o sr. CABRÉ propôs,
plausivelmente, em outras hipóteses.
Quis o falecido arqueólogo espanhol, sr. CALVO y SANCHES, ver nuns sulcos das insculturas de St.ª Tecla o mapa do rio Minho.
Procurei qualquer semelhança entre os sulcos da pedra do Arestal e a
representação gráfica dos rios da região e tive uma decepção completa,
decepção que, confesso, senti também em St.ª Tecla, examinando o
pretenso mapa insculpido na rocha da citânia.
A verdade é que nos escapa, por enquanto, o significado destas
insculturas. Porém o que julgo mais de admitir é a hipótese de se tratar
duma simbólica religiosa e de pedras sagradas, lugares de devoção ou de
alta magia, ou então, com menos probabilidade, de monumentos destinados
a memorar alguns fastos da vida dos povos pré-históricos das imediações
da serra.
Ainda hoje, como todos sabem, os povos das encostas e dos vales das
nossas montanhas conservam nos píncaros dos seus montes ou nas suas
esplanadas, as capelitas votivas ou os santuários das suas grandes
devoções. Lá estão perto o S. Tiago do Arestal, a Senhora da Saúde de
Cambra, a Senhora da Laje nos confins de Arouca, a Senhora do Socorro em
/ 17 /
[Vol. IV - N.º 13 - 1938] Albergaria-a- Velha e a Senhora da Penha, no Espinheiro, de
Sever.
Alto significado deviam ter estas pedras insculturadas para
assim se acharem perdidas e isoladas na serra entre tantas outras igualmente propícias ao exercício dessa arte rupestre cujas
sucessivas descobertas vêm preocupando e intrigando os cultores da pré-história!
Parece-me bem que se estas insculturas fossem mero produto
da fantasia e do capricho de qualquer habitante da montanha, outros, no correr do tempo o seguiriam, exercendo, por
imitação, nas rochas vizinhas, a sua paciente, trabalhosa e inútil arte.
A raridade das estações rupestres é um argumento a favor do carácter
religioso ou monumental das suas insculturas que
exigiam já habilidade de desenho e técnica de execução, braço
firme, ferramenta apropriada.
*
* *
Santuário ao
ar livre, como CALVO y SANCHES considerou o
grupo de insculturas de Santa Tecla, monumento de façanhas
guerreiras ou de grandes acontecimentos pré-históricos, pedra
de práticas mágicas e supersticiosas, tentativas de escrita por
signos estilizados e convencionais na época, mesmo simples
produto do trabalho voluntário de artistas pré-históricos, em
qualquer hipótese, quero eu crer que estes petroglifos são manifestações de uma cultura que acompanhou a chamada cultura
megalítica, se dela mesma não fez parte durante algum tempo,
cultura essa que para OBERMAIER é a da época mais recente da
idade do bronze.
Essa cultura ter-se-ia difundido por migrações ou por contactos directos e parentescos 'étnicos ou pelas relações económicas, como pretende BOSCH GIMPERA, ou, por cópias e infiltrações,
como pensa OBERMAIER, ou de proche en proche como supõe
DÉCHELETTE, mas indubitavelmente segue, em certa altura, a civilização dos dólmens.
De facto verifica-se, como o sr. Dr. MENDES CORREIA nota, que a
civilização dolménica é uma civilização litoral e que mesmo na Península
Ibérica os dólmens são mais frequentes na periferia
do que no centro, devendo a sua difusão ter-se efectuado por
via marítima.
Ora o âmbito geográfico da arte rupestre da espiral e dos
círculos concêntricos no ocidente europeu, parece ser também apenas o
litoral. No interior da Península não se encontram ou raríssimas vezes
se encontram semelhantes insculturas. D. JUAN
CABRÉ, por mim consultado em 1930, afirmou-me que tinha descoberto numerosos exemplares de gravuras rupestres no interior
/ 18 / da Espanha,
mas nunca a espiral, que constitui, salvo documentos em contrário que eu
ignoro, uma particularidade manifesta do noroeste peninsular.
Examinando-se o mapa da arte rupestre do nosso país, publicado pelo
Dr.
RUI DE SERPA PINTO, constata-se que as estações ao sul do Mondego são
raras: umas seis apenas dispersas num território de área dupla da parte
de Portugal ao norte do Mondego onde se contam já nada menos de
quarenta.
Pois para o sul do Vouga não passam os círculos concêntricos e da
espiral ao sul desse rio só conheço um exemplar: o publicado por MARTINS
SARMENTO a quando da Expedição Científica à Serra da Estrela(3).
Será um mero acaso?
Ninguém o dirá.
GIMPERA considerou a divisória de águas entre o Douro e o Mondego,
isto é, o vale do Vouga, como a linha de separação dos dois grupos de
castros que ele chamou o do norte e do sul.
É possível que na arte rupestre se dê também a separação que aponto e
mais relacionada com as causas que determinaram a diferenciação dos
castros.
Creio ter havido um ciclo de cultura megalítica em que estes petroglifos
traduziram um simbolismo especial adoptado pelos povos do noroeste e
pelos da Bretanha e Irlanda, que no-la transmitiram, cultura essa que
acompanhou a cultura dolménica talvez já no seu final, mas que caminhou
em sentido contrário, isto é, do norte para o sul.
«BOSCH GIMPERA, diz o ilustre presidente da Sociedade Portuguesa de
Antropologia e Etnografia, nas suas sistematizações
das culturas peninsulares, preenche a lacuna entre o epipaleolítico e o
neolítico avançado com o asturiense e a arte rupestre. Ficaria assim a
arte rupestre a testemunhar a continuidade
cultural entre as duas fases aludidas. Gravuras e pinturas em
rochedos e em abrigos sob rochas, constituiriam os documentos de tão
longa transição, estando assim por descobrir outros vestígios da
existência humana correspondentes sem dúvida a tão extenso período»./ 19 /
Mas, no entender do mesmo autorizado pré-historiador, estas
dificuldades resultam sobretudo da evolução dos nossos conceitos sobre o
neolítico puro, pois que este foi consideravelmente
encurtado.
É que, continua o mesmo professor, o mesolítico diminuiu-o,
como também a cultura dos dólmens que se supunha ser puramente
neolítica e é coeva das primeiras idades dos metais.
Esta sábia e sensata explicação pode harmonizar admiravelmente a
dificuldade ressaltante do facto de se não encontrarem os círculos nem
as espirais ao sul do Vouga quando é certo que tais signos deviam
acompanhar, com a arte rupestre, a cultura dos dólmens na sua expansão
para o sul e interior de Portugal e de Espanha.
O ciclo rupestre dos círculos e das espirais podia ter chegado ao
noroeste peninsular pelas influências marítimas da Bretanha e da Irlanda
e vizinhança da Galiza, no declínio da cultura dos dólmens, em plena
idade do bronze.
E assim, com o termo dessa cultura e desuso das inumações sob as antas e
as mamoas, teria morrido o simbolismo
desses misteriosos signos, que só esporadicamente passaram o Vouga para
o sul ou por caírem em desuso, ou por encontrarem na esquerda deste rio
obstáculos étnicos ou culturais, assentes
já ou vindos em invasões, que obstaram à sua expansão meridional.
As combinações circulares e espiralóides da arte rupestre, se é certo o
que suponho,
− que não se expandiram normalmente para o sul do Vouga e
terminaram o seu natural âmbito geográfico nas margens norte deste
rio,
− podem constituir, assim, um
novo e interessante argumento para provar as estreitas relações
das populações do noroeste peninsular com as populações da
Bretanha e da Irlanda, nos tempos do bronze, ou mesmo do bronze final,
como pretende OBERMAIER.
Assim outras descobertas viessem esclarecer o problema e melhores
obreiros, verdadeiras autoridades, tomassem a peito a teoria que não tem
originalidade porque resulta, apenas, da conjugação de afirmações e
interpretações alheias e de um exame de factos que as duas estações
rupestres das serras de Cambra e de Sever vieram, afinal, a revelar-nos.
ALBERTO SOUTO
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