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«o sol começava a
cair numa apoteose de fogo para as bandas do mar, mas ainda o ar era
cálido e abafado. Houve a tentação de procurar a frescura das árvores e
da água.
−
Vamos?
−
Pois vamos. −
Aonde? Buçaco ?
−
Pois sim.
O motor em
movimento, deliciados com a aragem provocada pela carreira do auto,
começamos a sentir-nos alegres a saborear a paisagem.
Por entre os
pinheiros, via-se ao longe a fogueira rubra do fim do dia.
− Lindo!
−
dizíamos em coro.
Do outro lado da
estrada, os montes sem vegetação, sobrepostos à serra arborizada, por
efeitos de luz crepuscular tinham o curioso aspecto duma coberta de
retalhos variados, desde o tom lilás-rosa ao roxo doloroso.
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D. CELESTE
COSTA |
Estrada deserta!
Só o carro, obediente, conduzindo as nossas sensibilidades bem vivas e
sôfregas. Curvas graciosas, rectas tranquilas, uma pequena aldeia
transposta num segundo, juntas de bois suados e melancólicos regressando
do trabalho.
Depois subimos,
subimos, e entramos no labirinto sonhado das árvores e das fontes.
O silêncio da
tarde preparou a minha alma para esta noite magnífica!
/ 247 /
Sinto-me repassar
de tranquilidade e paz benditas. Conversam. Eu afasto-me, fico a ouvir a
água e entendo-a como nunca em minha vida.
Os regatos e as
fontes falam mansamente e contam-me baladas deliciosas nos versos das
suas palavras, cantadas pela conversa sonora da corrente.
E a água diz-me
coisas... E vão surgindo sombras...
Passam hábitos de
monges doutras eras; passam almas arrastadas a penitências longas e
jejuns intermináveis; passam teorias de religiões severas; passam
cilícios martirizando as carnes; passam dedos erguidos numa súplica;
faces pálidas e cavadas pela tortura de íntimos sofrimentos...
Um frade moço, de
mãos finas, escava a terra e planta uma árvore, murmurando:
−
Árvore, crescerás! Subirás, elevando os teus ramos para o céu a pedir o
meu perdão! Regar-te-ei com lágrimas e, assim, a tua seiva será um pouco
do meu sangue.
Outro, velhinho e
cansado, abraça-se a um tronco e reza:
−
Avé Maria... E repete:
−
Maria!... −
recordação da sua mocidade distante, da qual ficou apenas essa imagem
viva...
Pelo meio dos
regatos, as pedras vão cortando o sonho brando da água, fazendo-a gritar
o direito de correr sempre sem destino, por sina, por fatalismo!
As rochas
altivas, por entre o emaranhado dos troncos e trepadeiras, parecem
afirmar que sentem força e valor, que são o sustentáculo da serra e que
lhe dão majestade.
Árvores solenes,
carinhosas, sugam a terra profundamente e, à superfície, dão-nos verdura
e aromas de resinas.
As folhas dos
grandes fetos curvam-se a beijar a húmus lenta. E as hortênsias são
tantas e tão lindas, que nos assalta a tentação de rolar indefinidamente
os dedos pela massa azul das suas formas graciosas.
Quedo-me a olhar;
ao fundo, o que os ramos altíssimos me apontam: a lua, em crescente
nítido, suspende no azul a ameaça dum golpe de alfanje. O lago
silenciosamente, brilha.
Noite magnífica
de sonho, de misterioso encantamento!
.. E a água
repete aos meus ouvidos a sua história antiga...
Pergunto-lhe
pelos beijos dos noivos que mergulham as mãos na frescura da Fonte Fria.
A água ri uma gargalhada mais alta e continua a reza das suas
recordações velhinhas...
Tenho sede. Nas
minhas mãos levo à boca a oração daquela água, que parece trazer
mistérios das entranhas da serra.
O ar, parado,
dá-nos a impressão de estarmos dentro duma catedral sem fim, de arcarias
caprichosas, cobertas por damascos antigos. Os ramos abraçam-se no alto;
mal se escuta a carícia das suas mãos de verdura. Heras humildes sobem,
sobem, na conquista das alturas.
Os pirilampos
matizam os musgos de fogos, lembrando pedras preciosas do pano de oiro
de rico pluvial ou tiara pontifícia.
/ 248 /
Quase é preciso
arrancarmo-nos ao domínio e magia da floresta! Ainda ao regressar, noite
alta, através do silêncio perfeito e solene que tudo parece envolver,
«Num êxtase, eu
escuto pelos montes
O coração das
pedras a bater...»
(Trecho do livro Lume Novo, de D. Celeste Costa, natural da
Arrancada, concelho de Águeda, cuja publicação no Arquivo foi
gentilmente autorizada pela autora.)
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