Pedro Vitorino, O mosteiro de Arouca, Vol. III, pp. 11-28.

O MOSTEIRO DE AROUCA

III

O MUSEU

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Extintas as casas conventuais portuguesas, nenhuma logrou manter, nos próprios lugares, os seus tesouros e valores de arte. O estado duma parte, com a sua tendência centralizadora, os particulares de outra, com empolgantes garras, motivaram a desagregação ou a perda de valiosos núcleos artísticos. A indiferença das populações locais, diga-se, contribuiu para o calamitoso malefício.

Arouca constitui uma excepção. E se a podemos apontar é, principalmente, pelo espírito bairrista da sua gente. Teve força moral para impedir o êxodo daquilo que, com direito, julgava seu, e inteligência lúcida para velar pela inerente conservação.

Daí derivou o Museu.

A sua criação estava, assim, naturalmente indicada.

Quando há anos visitei o mosteiro de Arouca na grata companhia do então Director Geral dos Monumentos Nacionais, o ilustre artista Sr. Adães Bermudes, e do arquitecto Sr. Baltasar de Castro, fiquei profundamente impressionado por encontrar adormecidas em velhas arcas, valiosíssimas, peças do antigo tesouro do mosteiro, que a verificação oficial por momentos despertou, e trouxe à luz, permitindo satisfazer a minha curiosidade de amador. Um verdadeiro tesouro aí se encontrava, oculto, na profundeza dos cofres, morto para o público, é certo, mas ciosamente vigiado por uma excelente mulher, a Sr.ª Maria Rosa, antiga serventuária das religiosas, devotada à casa conventual que desde a infância conhecia; aos seus cuidados persistentes, à sua diligência infatigável, como se guardasse valores que lhe pertencessem, se deve em grande parte a boa conservação dessas riquezas quase ignoradas. Nos humildes, de alma límpida / 12 / e sã, encontram-se, imensas vezes, os mais fiéis guardadores; nada abala a confiança que neles se deposita. O tesouro de Arouca teve quem o soubesse velar. Apraz-me referir esta pequena nota simpática.

Reconhecida a vantagem de serem expostos ao público os objectos de sumptuosidade e as venerandas relíquias existentes em Arouca, tomou a iniciativa do Museu a Irmandade de Santa Mafalda, que nas entidades oficiais da Direcção dos Monumentos, Srs. engenheiro Gomes da Silva e arquitecto Baltasar de Castro, encontraram os melhores desejos de cooperação e de auxílio.

A breve trecho, numa série de pequenas salas e num vestíbulo do Majestoso edifício, ala norte, procedia-se à instalação do museu, que foi inaugurado solenemente, por ocasião de uma visita ministerial, em Dezembro de 1933; a sua designação é: Museu Regional de Arte Sacra.

O Museu, que tem os seus objectos classificados e fotografados (exemplo digno dos maiores louvores), muito deve à dedicação de vários conterrâneos, entre os quais é justiça destacar os Srs. Drs. Simões Júnior e Alberto Brito.

Parecerá extraordinário que Arouca ainda tenha objectos para expor.

Várias circunstâncias o determinaram.

Começarei por narrar um episódio passado com o DR. AUGUSTO FILIPE SIMÕES quando em 1881 foi a Arouca na colheita de objectos para a Exposição de Arte Ornamental. No seu relatório (Escriptos diversos, pág. 159), lê-se: «Infelizmente aquelle rico e antigo mosteiro tem sido de tal sorte explorado, que hoje não se encontra aIli uma só obra de arte com valor artístico, excepto a urna de ébano ornada de prata em que se guarda o corpo de Sancta Mafalda. É notavel esta obra, que parece do tempo de D. João V, pela elegancia da fórma, belleza e delicadeza dos ornatos e valor das materias empregadas na sua fabrica. Todavia faltam-lhe já alguns fragmentos dos ornatos mais delicados, estrago que irá continuando porque, tendo sobre a urna uma coberta de chita, a levantam quasi violentamente quando aIguem pretende ver o corpo da sancta ou a urna. Um vidro está partido, e a face correspondente aos pés da sancta está aberta, deixando assim facilmente a qualquer que subir acima do altar metter a mão dentro para furtar o que melhor appetecer dos ricos vestidos bordados a ouro.

«Entre centenares de pinturas e de obras de arte que vi em Arouca não achei pois uma só digna de attenção. Pessoas entendidas devem ter entrado naquella casa a fim de fazerem uma escolha para que as freiras de certo não seriam capazes. Esconderam-nos paramentos e outras alfaias. Algumas porém consegui ver, e por essas fiquei julgando que o mais que haviam occultado não teria tambem o menor valor artistico. / 13 /

«O grande templo, construido no século XVIII, é todo cercado de largos corredores adornados com pinturas, retabulos e altares. Debalde se buscarão nelles tecidos, bordados, jarras, quadros ou alfaias que tenham algum valor. Debalde se buscará um movel antigo pelas casas do vasto convento. Se houve umas e outras cousas, como é provavel em tão rico e antigo mosteiro, totalmente desappareceram, substituidas por aquellas que hoje alli existem, e que nenhum interesse offerecem, archeologico ou artistico.»

Como complemento explicativo temos a seguinte nótula de ABEL ACÁCIO (O Mosteiro de Arouca, in O Ocidente, 1884, n.º 187) : «Ao defrontar com este valioso artefacto [a cátedra abacial] para mim desconhecido, estranhei que ele não houvesse figurado na Exposição retrospectiva de arte ornamental; e soube então que as freiras haviam posto particular cuidado em sonegá-lo, de medo que lho não restituíssem, terminada a Exposição.»(1)
Acauteladamente, as freiras ocultaram os objectos que tinham em maior conta!

Entre eles contavam-se os que tradicionalmente passavam como doados pela rainha Santa Mafalda. No seu testamento, incluído por D. ANTÓNIO DE SOUSA na Historia Genealogica da Casa Real Portugueza (Provas, tomo I) exara-se:

...Item dimitto eis totam meam capellam & crucem majorem, & ditágas & brachium de argento cum omnibus reliquiis quae ibidem inventae fuerint, & Crucifixum magnum de ebore, & majestates; & prohibeo sub benedictione, & maledictione dictaram reliquiarum quod nec Abbas aliquis, nec Abbatissa nec vir, nec mulier possit alienare, vel dividere, nec transferre, nec auferre a Monasterio de Arauca...

Ao Dr. Filipe Simões passou despercebido o facto.

Morta a última freira, a abadessa D. Maria José Gouveia Tovar e Meneses, em 3 de Julho de 1886, logo o governo lançou mão do que pertencia à comunidade, indo alguns objectos para Lisboa e outros para Aveiro. Uma brevíssima local do diário portuense Jornal da Manhã (2. lI. 1887) referia ter o Museu Nacional de Belas Artes escolhido diversas peças no convento de Arouca. Mas nem tudo saiu, por, tenazmente, se opor a isso o povo da vila, o que motivou a presença da força armada.

A defesa do património artístico do mosteiro não esfriou: o espírito de resistência das monjas teve nos habitantes de Arouca decididos continuadores!
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O tesouro, alfaias e paramentos, foram então entregues à Irmandade da Rainha Santa Mafalda, a cuja guarda ainda estão adstritos.

Alguns objectos eram inteiramente desconhecidos. Estava neste caso o tríptico de prata, que, segundo MARQUES GOMES, «até à extinção do convento em 1886, ninguém sabia em Arouca da sua existência nem mesmo a maioria do pessoal dele, tal era o cuidado com que as antigas religiosas as ocultavam '[peças de ourivesaria] aos olhos de todos» (A Arte, 1909, n.º 52).

O mencionado tríptico e uma cruz argêntea foram levados por esse arqueólogo à Exposição de Arte Sacra Ornamental, que a comissão do centenário de Santo António, em Lisboa, promoveu no ano de 1895.

Caso estranho: um díptico de prata e um pequeno cofre com aplicações do mesmo metal, puderam ser ocultos fora do mosteiro, tendo regressado, por entrega voluntária feita por uma parente da religiosa ocultante à Irmandade, vai em sete anos.

Grande era o receio de que se perdessem para o convento!

O estabelecimento do Museu Regional de Arte Sacra permitiu que fosse cumprida a determinação da Rainha Santa Mafalda, e garantida, com proveito público, a vontade dos habitantes de Arouca em manter, no mosteiro que enobrece a sua terra, as relíquias de um tesouro opulento e venerando.

O Museu de Arouca é, sobretudo, do domínio das artes decorativas ourivesaria, mobiliário, tecidos, bordados, etc. As belas artes pintura e escultura, encontram-se menos favoravelmente representadas.

Entre as primeiras sobressaem a ourivesaria e a tapeçaria, com peças de alto valor.


DÍPTICO DE ALTAR

Precioso pela invulgaridade, e único entre nós. «As peças archaicas da ourivesaria medieval, observou o erudito professor JOAQUIM DE VASCONCELOS, são geralmente muito raras nas nossas coIlecções publicas» (Arte Religiosa, 1904, I).

Acerca dos dípticos (designação que em grego significa «dobrado em dois») explana um arqueólogo francês: «Les diptyques ont servi pendant une longue période d'années dans la célébration des saints mystères. On en plaçait sur les autels, suivant quelques interprétations, uniquement comme objects de luxe et de décoration; suivant d'autres parce qu'on établit un rapport symbolique entre les honneurs du consulat et ceux de l'episcopat, qui avait emprunté jusqu'au costume de cette dignité civile. On inscrivait dans l'intérieur des tablettes les noms des saints invoqués au moment de la consécration, des formules d'oraison, et la liste des évêques dont on récitait les noms en demandant à Dieu le salut des fidèles trépassés» (Le Magasin Pittoresque, 1837).

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Segundo D. JOSÉ AMADOR DE LOS RIOS, os dípticos eram «destinados desde su construcción á hacer oficio de relicarios ó á servir de oratorios portátiles, usos que hacía muy frecuentes en España durante Ia Edad Media la necesidad constante de la guerra con los mahometanos, así respecto de reyes y magnates, como de caballeros y prelados». (La Cámara Santa de la Catedral de Oviedo, in Monumentos Arquitectónicos de Espana, 1877).

Fig. 1 − Díptico de prata. Exterior

De madeira, chapeada de prata. Recorte superior trilobado, com o arco central ogivante. No revestimento externo, duas personagens em relevo que representam a Anunciação; o anjo Gabriel apresenta a mão direita radiada, figuração hieroglífica, invulgar, do Espírito Santo (fig. 1).

As figuras, alongadas, com os vestuários de pregas agudas e paralelas, de calma e severa gravidade, têm caracterização bizantina.

Interiormente, circunscritas por emolduramentos com ornamentação geométrica, aberta a buril, e em planos reentrantes, vêem-se duas placas (fig. 2).
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A placa do lado esquerdo do observador divide-se em trinta e dois compartimentos, com fiadas longitudinais de figuras e florões, alternando. As figuras, que lembram delicado trabalho de glíptica, de duas espécies, interpoladas, representam homens em meio corpo, um, pintando, e o outro fazendo menção de apontar: o escriba e o leitor dos nomes e frases inscritas nas faixas que limitam os compartimentos. No alto, duas figuras de corpo inteiro, em oração. Nos cruzamentos das divisões e em baixo, pregos ornamentais de roseta.

Fig. 2 − Díptico de prata. Interior

As legendas feitas a buril, com incrustações de esmalte negro (nielles), evocam, quase na totalidade, santos ou relíquias deles, a saber:

/ 17 /  [VoI. III - N.º 9 - 1936]

Caracteres latinos, com algumas letras unciais.

A placa do lado direito mostra Cristo crucificado entre a Virgem e S. João Evangelista. Gravura a buril. Concepção iconológica e artística da idade média. Cristo, de nimbo crucígero, com os braços de horizontalidade perfeita (tradição grega) e a cabeça ligeiramente inclinada para a direita, os pés separados, 'fixos com dois pregos a um supedâneo. A Virgem, do seu lado direito, com os pés calçados; S. João, à esquerda do Salvador, de pés nus; ambos apoiam a face na mão, em sinal de dor. Sob a cruz, o «vaso místico». Como testemunhas do martírio de Cristo, vêem-se o sol e a lua aos lados da haste Superior da cruz, de extremidade curvada; a mão divina, surgindo das nuvens, é a representação primitiva do Padre Eterno.

A inscrição do madeiro reza:

HIC: NASARENO. REX: lVDEORVM: ELOl:

A última palavra respeita à frase que Jesus pronunciou ao morrer: Eloi, Eloi, lama sabacthani? Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste? (Evangelho de S. Marcos, XV, 34).

O díptico, todo de prata dourada, acha-se externamente deteriorado, tendo sofrido restaurações pouco cuidadas.

Este belíssimo exemplar apresenta os caracteres gerais das obras de Limoges, que até ao século XII evidenciam o gosto e a maneira bizantinas.

Pode ser trabalho peninsular, pois há obras de inspiração limosina feitas em Espanha no século XIII. O díptico do bispo D. Gonçalo, da Câmara Santa de Oviedo, obra de ourivesaria espanhola da segunda metade do século XII, tem uma Crucificação de tipo análogo ao exemplar de Arouca (Vid.: El Arte en España, n.º 33. Ed. Thomas).

Século XII ou princípios do século XIII. Altura, 0,24; largura, aberto, 0,27.

 

RELICÁRIO do lignum crucis, sob a forma de cruz.

«Según el canon 1287, las reliquias tienen que guardarse en recipientes cerrados y sellados, pudiéndo-se tener varias y distintas reliquias en un solo relicario, con excepción de las de la Cruz de J. C. que se deben venerar en relicario separado y en forma de Cruz», (RAFAEL SÁNCHEZ, Colección de documentos sobre la orfebreria olival en la Corona de Aragón, in Universidad, Zaragoza, 1932, n.º 4).

Cruz de prata, com o vulto dourado, de haste superior alongada, aproximando-se do tipo grego, contendo uma relíquia do Santo Lenho e um espinho da coroa de Cristo (fig. 3). Ornamentação inteiramente constituída de rosetas, unidas, com 'fundos vasados, de sabor bizantino. Pedras azuis, engastadas, nos braços./ 18 /

Fig. 3 − Cruz relicário de prata.

/ 19 /

Em toda a orla, decoração vegetal rudimentar, os característicos «ganchos» primitivos, góticos, do começo do século XIII. A base é um enxerto do renascimento. Séculos XIII e XVI. Altura, sem a base, 0,38


TRÍPTICO

Relicário de madeira chapeada de prata. Nas portadas, com fechadura de aldraba, sob arcos trilobados, as imagens de Santo Huberto, S. Pedro, S. Paulo e S. Martinho, em relevo, dourados, entre densa ornamentação repuxada e lavrada de folhagens estilizadas, rosetas e cachos, cujos temas se repetem (fig. 4). As costas do relicário são igualmente lavradas, com motivos flóricos de fino acabamento, dispostos em três secções longitudinais divididas por fiadas de rosetas e pregos estrelados (fig. 5). Interiormente os três corpos comportam trinta e nove nichos, todos povoados de relíquias (fig. 6). Faixas estruturais realçadas a ponteado.

Fig. 4 − Tríptico-relicário de prata. Face anterior.

Arco culminante central, ligado a arcos laterais nos dois terços da altura das portas, em cuja faixa corre uma fiada de esbeltas rosetas, variadas, que repetindo-se na base constituem notável parte do adorno. Sobrepuja o tríptico uma fiada de lises de belo recorte.

As relíquias acham-se distribuídas ordenadamente, vendo-se os nomes dos santos à direita (do objecto), das santas à esquerda, / 20 / e da família sagrada, apóstolos, patriarcas e de outros santos, no centro, entre eles o nosso Santo António.

As legendas do tríptico são em português, com tipo de letra de cerca de 1500. Trata-se, sem dúvida, de obra nacional.

Como disse esta peça foi levada à Exposição de Arte Sacra Ornamental, de Lisboa, em 1895. Num dos artigos que então publicou, referiu-se-lhe, sem indicar a procedência, o professor JOAQUIM DE VASCONCELOS (O Comércio do Porto, I. VIII. 1895):

«...relicario grande de prata, portatil, especie de tripticho, proprio para ser levado em procissão sôbre uma haste, quer aberto quer fechado. No interior 39 compartimentos com relíquias e lettreiros portuguezes.

Fig. 5 − Tríptico-relicário de prata. Face posterior.

As inscripções são em lettras nielladas. Fechado, apresenta grandes figuras de Santos, em lavor repuxado. Temos lido umas singulares phantasias sobre esse relicario, que dizem bysantino (!). É lavor do fim do seculo XV, quando muito, por todos os caracteres que apresenta na ornamentação vegetal e nas figuras».

A opinião do notável arqueólogo professor J. DE VASCONCELOS, merece ser fixada.

/ 21 /

Fim do século XV. As suas dimensões são: altura, 0,56; largura, aberto, 0,55; largura, fechado, 0,27.

Fig. 6 − Tríptico-relicário. Interior.

COFRE DE RELÍQUIAS

Em forma de baú. Imitação de tartaruga, com aplicações de prata, trabalhada a buril.

Ornamentos de folhagens e aves, de estilo românico-gótico (século XIII) (fig. 7).

A propósito de um cofre similar do Museu Nacional das Janelas Verdes, o professor JOAQUIM DE VASCONCELOS (Arte Religiosa, fascículos 17 e 18), anota: «Intrigou-me deveras esta obra que a alguns parece ser de tartaruga, guarneci da de prata lavrada.»

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Fig. 7 − Cofre de relíquias.

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E acrescenta: «Muitas das peças que apareceram na Exposição de Arte Ornamental (1882), sobretudo cofres e pentes (os célebres pentes altos, de senhora, rendilhados, dos séculos XVII e XVIII) eram keratine e não tartaruga (aliás raríssima e de dificílima manipulação), nem gelatina, como até absurdamente se escreveu no catalogo a cada passo, com referencia especial aos cofres de relíquias, como este».

O cofre-baú, de Lisboa, mostra nas guarnições de prata, elementos decorativos do século XVII (gravura a buril) e outros do estilo românico do século XIII («chapa batida sobre matrizes»). O de Arouca apresenta-os de uma época só: século XIII. A caixa, de massa, não pode ter atribuição tão remota. Assim, ou foram aproveitadas as guarnições antigas ou se imitaram os lavores medievais, o que é menos crível.

No tesouro da Sé de Coimbra (Notícia Histórica, por A. AUGUSTO GONÇALVES e EUGÉNlO DE CASTRO, 1911) existem dois cofres de tartaruga (n.os 32 e 33), paralelos aos de Lisboa e de Arouca, indicados como do século XVII. A forma e as dimensões de todos eles são semelhantes. Comprimento, 0,24; altura, 0,12.

Dada pela tradição como coeva da Rainha Santa, há ainda no tesouro de Arouca uma cruz de azeviche, com o Cristo de marfim, que, dizem, «servia para as noviças levarem na mão quando iam professar». As cruzes de azeviche eram geralmente usadas em actos fúnebres, destino que a de Arouca parece denunciar pela caveira esculpida na base. O suporte apresenta duas superfícies, horizontais aos lados da haste, destinadas a imagens, a Virgem e S. João. Nos inventários antigos mencionam-se cruzes de azeviche assim acolitadas; o dos Reis Católicos de 1504, refere: «Dos cruces de altar de azabache negro la una dellas tiene a Nuestra Señora e San Juan y el crucifijo dorado» (JOSÉ FERRANDIS), Marfiles y azabaches españoles, Barcelona 1928, p. 250).

Esta cruz deve datar do século XVII.

Outras peças se encontram no Museu, como relicários, cruzes, custódias, etc., mas, por serem de secundária categoria artística ou obras modernas, se bem que algumas valiosas, dispenso-me de as mencionar.

Várias peças de ourivesaria são consideradas pela tradição como tendo pertencido à rainha Santa Mafalda. O testamento, que alude a alguns desses objectos de arte e de piedade, não
permite a respeito delas identificação segura.

Contemporâneas da rainha, tais peças não podem ser de factura posterior ao meado do século XIII. Os objectos falam por si, e é o seu depoimento, unicamente, que devemos escutar.

Confiado na tradição, e pouco curando de estilos artísticos, foi que em 1893, o portuense P.e FRANCISCO JOSÉ PATRÍCIO, escreveu:

«São dignas de memorar-se, como preciosidades artísticas de primeira ordem, a cruz de prata dourada, estilo gótico, onde / 24 / está uma relíquia insigne do Santo Lenho e um espinho da coroa de Cristo, e um relicário em forma de capella tricipete, portátil, todo cheio de lavores e cinzelados, também de prata dourada, e, como a cruz do Santo Lenho, é obra do século XIII» (Portugal, Dic. 1909, v. Arouca).

Em verdade, dentro da época apenas pode incluir-se a cruz.

Há porém, nas disposições testamentárias, referência a um díptico dítagos ou díptagos, tábuas de duas dobras onde se inscreviam os nomes dos Santos (VITERBO, Elucidário), facto que importa acentuar.

Em 1753, quando se organizou o processo para a canonização de D. Mafalda, dois peritos ourives examinaram «a custódia chamada Santuário da Rainha» e viram que «era toda de prata lavrada e dourada com as respectivas portinholas, chavesinha e fechadura também de prata, toda guarnecida com uma renda de prata dourada, e era sustentada nos lados por figuras do mesmo metal que representavam Leões. A dita custodia tinha três palmos e meio de altura, três palmos de largura, e no interior quase um palmo. O vão desta Custódia estava divldido em 44 nichos, em que estavam dispostas por ordem outras tantas Relíquias de Santos, isto é, da Santíssima Virgem, dos Doze Apóstolos, de S. José, de S. Joaquim, de Santa Ana, do Santo Evangelista, dos Patriarcas S. Bento e S. Bernardo e de outros. Santos e Santas, com as respectivas inscrições, em cada um dos mesmos nichos gravadas em prata a buril. Nas portinholas com que se fecha a dita custódia havia quatro baixos relevos de prata representando respectivamente os Apóstolos S. Pedro e S. Paulo e os Patriarcas S. Bento e S. Bernardo».

Esta descrição não condiz inteiramente, como se verifica, com o exemplar existente, onde se não vêem quaisquer leões, o número de nichos é menor, e dos apóstolos só contém nove nomes.

O falecido arqueólogo aveirense MARQUES GOMES, que transcreve esse documento (Arte, n.º 52, 1909), sem notar quaisquer diferenças, julga que o tríptico, que a tradição dá como tendo pertencido. a Santa Mafalda, «dois séculos depois foi inteiramente transformado», pois considera a sua factura, com razão, como dos princípios do século XVI.

Todavia passou-lhe despercebida a dissemelhança entre o tríptico que observou e o relato, deixado pelos peritos ourives.

O documento citado alude também a «um braço de prata» com relíquias, indicado no testamento da Rainha, que não se encontra no tesouro.

A descrição feita em 1753 apenas se adapta ao tríptico actual, quanto a duas figuras das portadas (S. Pedro e S. Paulo), e às medidas, aproximadas, de altura e largura. As outras imagens são de Santo Huberto, bispo de Liège, com o característico veado, santo invocado sobretudo contra a raiva, e de S. Martinho, / 25 / bispo de Tours, com um coração na mão, aludindo à grandeza de alma que o caracterizava. Há, como se vê, diferenças importantes.

Fig. 8 − Tapete do norte da Pérsia. Fragmento.

Deve admitir-se, pois, a existência de outro, que seria aquele que pertenceu à Santa Mafalda. O tesouro de Arouca era rico, e possuiria, de certo, vários espécimes do género, como, por exemplo, o díptico restituído há anos (talvez aquele que o testamento indica) o qual totalmente se desconhecia. Esse é, sem dúvida, contemporâneo da Rainha Santa Mafalda.

O grupo «tapeçarias" compreende um esplendoroso tapete oriental, em magnífico estado de conservação, e vários outros tapetes, alguns de Arraiolos do século XVIII. Só particularizarei o primeiro. / 26 /

 

TAPETE DO NORTE DA PÉRSIA

Entre densa composição flórica, estilizada, vêem-se aves, leões e tigres tratados de maneira realista. Cercadura de linhas geométricas, com vasos de flores, e grupos de veados e corças. De seda e lã, predominando as cores vermelha, azul e amarela (fig. 8) Século XVI. Dimensões: 5,88 x 2,20.

Na secção de belas artes encontram-se diversas pinturas dos séculos XVI e XVII, baixos relevos em madeira, policrómicos e, estofados, e imagens, várias delas de calcário.

Acerca das pinturas do Museu reproduzo aqui a opinião do meu ilustre amigo e devotado historiador da arte portuguesa, SR. LUÍS REIS SANTOS, que me deu o gosto da sua companhia numa das minhas visitas a Arouca: «Tábua que representa o Lava-Pés (fig.9): de um continuador de Vasco Fernandes; embora fraco na composição e no desenho, o artista reflecte caracteres muito próprios de várias obras daquele pintor, em redor do qual floresceram outros cuja obra ainda não foi identificada com segurança. É curioso observar nesta tábua os abruptos penhascos que se vêem através da janela geminada e o retalho de paisagem, típico aspecto que só conhecemos nas obras do grande Vasco. Certa maneira de tratar os panejamentos, quer no desenho quer na cor, também nos recordam a arte inconfundível do mestre de S. Pedro.

«Três outras tábuas, que porventura faziam parte de um retábulo, episódios da Paixão do Senhor, representam as seguintes cenas: O beijo de Judas, Jesus escarnecido, A caminho do Calvário; todos eles, mas principalmente o primeiro, mostram grandes afinidades e até caracteres individuais do autor do Lava-Pés.

«Perante estes quadros estamos assistindo a uma fase de transição; que conduz ao declinar da nossa brilhante pintura do século XVI, a qual teve o seu período áureo nos três primeiros decénios do século.

«Desta época em diante, quando os pintores das parcerias de Lisboa e de Ferreirim entram numa fase amaneirada, vão-se perdendo as características resultantes de uma tradição de grandes mestres italianos e sobretudo flamengos.

«Estão-se estudando neste momento os documentos que nos restam dessa evidente decadência, que nos deu obras francamente inferiores nos últimos decénios de quinhentos, inspiradas numa arte italiana de mau gosto que conduziu ao nosso século XVII, onde, com raríssimas excepções, se registam artistas de reduzido valor.

«A segunda série, constituída por painéis de um conjunto igualmente relativo à Paixão de Jesus e de outros temas, ou pode dar origem a problemas interessantes para a história da nossa pintura ou não passará de trabalhos maus de copistas de fraca imaginação e sem recursos técnicos muito apreciáveis.

«Só os processos científicos podem esclarecer o caso. O / 27 / que está à vista, isto é, o que a camada cromática superior nos revela é, sob o ponto de vista técnico, francamente mau. Fraquíssimo desenho e de uma ingenuidade que não é produto de impulsos espontâneos; a cor é turva, em gradações mal insistidas e mal veladas.

Fig. 9 − Lava-pedes. Tábua do século XVI.

«Estará qualquer coisa por baixo desta pintura, ou as fraquezas apontadas são obra de um repintador mais que medíocre? Os raios X dirão. A composição, sobretudo dos da série relativa à Paixão do Senhor, é manifestamente copiada de xilogravuras francesas do fim do século XV, conforme tive ocasião / 28 / de constatar num incunábulo existente numa das nossas bibliotecas provinciais. Isto, porém, não exclui a hipótese de ocultarem os referidos quadros obras originais, porque a influência que as gravuras antigas exerceram nesses remotos tempos é frequentemente verificada».

Há pouco foram encontradas ao abandono (em salas de arrumação) mais duas pinturas, em tábua, dos meados do século XVI: um pequeno tríptico com a Adoração dos Reis, e um quadrinho com o martírio de Santa Úrsula e das suas companheiras.

Entre as esculturas, merece especial menção a imagem de S. Pedro, em calcário, colocada na Sala do Capítulo, que, para o coleccionador lisbonense Sr. ERNESTO DE VILHENA (conforme exarou recentemente no livro dois visitantes), «é sem dúvida, a mais harmoniosa e característica escultura da século XV que existe em Portugal».

Não pretendi fazer uma resenha circunstanciada, mas reunir algumas notas apreciativas respeitantes às peças mais salientes do espólio artístico do mosteiro de Arouca, agora carinhosamente reunido num Museu elo do presente ao passado, onde o espírito do visitante pode surpreender em momentos o panorama diluído dos séculos.

PEDRO VITORINO

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(1) Todavia o mosteiro de Arouca não deixou de ser lembrado no certame; aí apareceram dois cálices manuelinos, mandados fazer pela abadessa D. Melícia de Melo, expostos pela Misericórdia do Porto, sua actual possuidora. (Vid.: Cat. da Exp. de Arte Ornamental, 1882, sala M, n.os 106 e 193; Portucale, IV, p. 271; Relat. da Misericórdia do Porto, 1934-1935, ps. 36 e 37.
 

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