Extintas as
casas conventuais portuguesas, nenhuma logrou manter, nos próprios
lugares, os seus tesouros e valores de arte. O estado duma parte, com a
sua tendência centralizadora, os particulares de outra, com empolgantes
garras, motivaram a desagregação ou a perda de valiosos núcleos
artísticos. A indiferença das populações locais, diga-se, contribuiu
para o calamitoso malefício.
Arouca
constitui uma excepção. E se a podemos apontar é, principalmente, pelo
espírito bairrista da sua gente. Teve força moral para impedir o êxodo
daquilo que, com direito, julgava seu, e inteligência lúcida para velar
pela inerente conservação.
Daí derivou o
Museu.
A sua criação
estava, assim, naturalmente indicada.
Quando há anos
visitei o mosteiro de Arouca na grata companhia do então Director Geral
dos Monumentos Nacionais, o ilustre artista Sr. Adães Bermudes, e do
arquitecto Sr. Baltasar de Castro, fiquei profundamente impressionado
por encontrar adormecidas em velhas arcas, valiosíssimas, peças do
antigo tesouro do mosteiro, que a verificação oficial por momentos
despertou, e trouxe à luz, permitindo satisfazer a minha curiosidade de
amador. Um verdadeiro tesouro aí se encontrava, oculto, na profundeza
dos cofres, morto para o público, é certo, mas ciosamente vigiado por
uma excelente mulher, a Sr.ª Maria Rosa, antiga serventuária das
religiosas, devotada à casa conventual que desde a infância conhecia;
aos seus cuidados persistentes, à sua diligência infatigável, como se
guardasse valores que lhe pertencessem, se deve em grande parte a boa
conservação dessas riquezas quase ignoradas. Nos humildes, de alma
límpida
/ 12 / e sã,
encontram-se, imensas vezes, os mais fiéis guardadores; nada abala a
confiança que neles se deposita. O tesouro de Arouca teve quem o
soubesse velar. Apraz-me referir esta pequena nota simpática.
Reconhecida a
vantagem de serem expostos ao público os objectos de sumptuosidade e as
venerandas relíquias existentes em Arouca, tomou a iniciativa do Museu a
Irmandade de Santa Mafalda, que nas entidades oficiais da Direcção dos
Monumentos, Srs. engenheiro Gomes da Silva e arquitecto Baltasar de
Castro, encontraram os melhores desejos de cooperação e de auxílio.
A breve
trecho, numa série de pequenas salas e num vestíbulo do Majestoso
edifício, ala norte, procedia-se à instalação do museu, que foi
inaugurado solenemente, por ocasião de uma visita ministerial, em
Dezembro de 1933; a sua designação é: Museu Regional de Arte Sacra.
O Museu, que tem os seus objectos classificados e fotografados (exemplo
digno dos maiores louvores), muito deve à dedicação de vários
conterrâneos, entre os quais é justiça destacar os Srs. Drs. Simões
Júnior e Alberto Brito.
Parecerá extraordinário que Arouca ainda tenha objectos
para expor.
Várias circunstâncias o determinaram.
Começarei por
narrar um episódio passado com o DR. AUGUSTO FILIPE
SIMÕES quando em 1881 foi a Arouca na colheita de objectos para a
Exposição de Arte Ornamental. No seu relatório (Escriptos diversos, pág. 159), lê-se: «Infelizmente aquelle
rico e antigo mosteiro tem sido de tal sorte explorado, que hoje
não se encontra aIli uma só obra de arte com valor artístico, excepto
a urna de ébano ornada de prata em que se guarda o corpo de Sancta
Mafalda. É notavel esta obra, que parece do tempo de D. João V, pela
elegancia da fórma, belleza e delicadeza dos ornatos e valor das
materias empregadas na sua fabrica. Todavia faltam-lhe já alguns
fragmentos dos ornatos mais delicados, estrago que irá continuando
porque, tendo sobre a urna uma
coberta de chita, a levantam quasi violentamente quando aIguem
pretende ver o corpo da sancta ou a urna. Um vidro está partido, e a
face correspondente aos pés da sancta está aberta, deixando assim
facilmente a qualquer que subir acima do altar metter a mão dentro para
furtar o que melhor appetecer dos ricos vestidos bordados a ouro.
«Entre centenares de pinturas e de obras de arte que vi
em Arouca não achei pois uma só digna de attenção. Pessoas entendidas
devem ter entrado naquella casa a fim de fazerem uma escolha para que as freiras de certo não seriam capazes.
Esconderam-nos paramentos e outras alfaias. Algumas porém
consegui ver, e por essas fiquei julgando que o mais que haviam
occultado não teria tambem o menor valor artistico.
/ 13 /
«O grande templo, construido no século XVIII, é todo cercado de largos corredores adornados com pinturas, retabulos e
altares. Debalde se buscarão nelles tecidos, bordados, jarras,
quadros ou alfaias que tenham algum valor. Debalde se buscará
um movel antigo pelas casas do vasto convento. Se houve umas
e outras cousas, como é provavel em tão rico e antigo mosteiro,
totalmente desappareceram, substituidas por aquellas que hoje
alli existem, e que nenhum interesse offerecem, archeologico ou
artistico.»
Como complemento explicativo temos a seguinte nótula de
ABEL ACÁCIO (O Mosteiro de Arouca, in O Ocidente, 1884, n.º
187) : «Ao defrontar com este valioso artefacto [a cátedra abacial] para mim desconhecido,
estranhei que ele não houvesse
figurado na Exposição retrospectiva de arte ornamental; e soube então que as freiras haviam posto
particular cuidado em
sonegá-lo, de medo que lho não restituíssem, terminada a Exposição.»(1)
Acauteladamente, as freiras ocultaram os objectos que tinham em maior conta!
Entre eles contavam-se os que tradicionalmente passavam
como doados pela rainha Santa Mafalda. No seu testamento,
incluído por D. ANTÓNIO DE SOUSA na Historia Genealogica da
Casa Real Portugueza (Provas, tomo I) exara-se:
...Item dimitto eis
totam meam capellam & crucem majorem, & ditágas & brachium de argento
cum omnibus reliquiis quae
ibidem inventae fuerint, & Crucifixum magnum de ebore, & majestates; & prohibeo sub benedictione,
& maledictione dictaram
reliquiarum quod nec Abbas aliquis, nec Abbatissa nec vir, nec
mulier possit alienare, vel dividere, nec transferre, nec auferre a
Monasterio de Arauca...
Ao Dr. Filipe Simões passou despercebido o facto.
Morta a última freira, a abadessa D. Maria José Gouveia
Tovar e Meneses, em 3 de Julho de 1886, logo o governo lançou mão do que pertencia à comunidade, indo alguns objectos
para Lisboa e outros para Aveiro. Uma brevíssima local do
diário portuense Jornal da Manhã (2. lI. 1887) referia ter o Museu Nacional de Belas Artes escolhido diversas peças no convento de Arouca. Mas nem tudo saiu, por, tenazmente, se opor a isso o povo da vila, o que motivou a presença da força armada.
A defesa do património artístico do mosteiro não esfriou: o
espírito de resistência das monjas teve nos habitantes de Arouca decididos continuadores!
/ 14 /
O tesouro, alfaias e paramentos, foram então entregues à
Irmandade da Rainha Santa Mafalda, a cuja guarda ainda estão
adstritos.
Alguns objectos eram inteiramente desconhecidos. Estava
neste caso o tríptico de prata, que, segundo MARQUES GOMES,
«até à extinção do convento em 1886, ninguém sabia em Arouca
da sua existência nem mesmo a maioria do pessoal dele, tal era
o cuidado com que as antigas religiosas as ocultavam '[peças
de ourivesaria] aos olhos de todos» (A Arte, 1909, n.º 52).
O mencionado tríptico e uma cruz argêntea foram levados
por esse arqueólogo à Exposição de Arte Sacra Ornamental,
que a comissão do centenário de Santo António, em Lisboa, promoveu no
ano de 1895.
Caso estranho: um díptico de prata e um pequeno cofre
com aplicações do mesmo metal, puderam ser ocultos fora do
mosteiro, tendo regressado, por entrega voluntária feita por uma parente da religiosa ocultante à Irmandade, vai em sete anos.
Grande era o receio de que se perdessem para o convento!
O estabelecimento do Museu Regional de Arte Sacra permitiu que fosse cumprida a determinação da Rainha Santa
Mafalda, e garantida, com proveito público, a vontade dos habitantes
de Arouca em manter, no mosteiro que enobrece a sua terra, as relíquias
de um tesouro opulento e venerando.
O Museu de Arouca é, sobretudo, do domínio das artes
decorativas
−
ourivesaria, mobiliário, tecidos, bordados, etc. As
belas artes
−
pintura e escultura, encontram-se menos favoravelmente
representadas.
Entre as primeiras sobressaem a ourivesaria e a tapeçaria,
com peças de alto valor.
DÍPTICO DE ALTAR
Precioso pela invulgaridade, e único entre nós. «As peças archaicas da ourivesaria medieval,
observou o erudito professor JOAQUIM DE VASCONCELOS, são geralmente muito raras nas nossas coIlecções publicas» (Arte Religiosa, 1904, I).
Acerca dos dípticos (designação que em grego significa
«dobrado em dois») explana um arqueólogo francês: «Les diptyques ont servi pendant une longue période d'années dans la
célébration des saints mystères. On en plaçait sur les autels,
suivant quelques interprétations, uniquement comme objects de
luxe et de décoration; suivant d'autres parce qu'on établit un
rapport symbolique entre les honneurs du consulat et ceux de
l'episcopat, qui avait emprunté jusqu'au costume de cette dignité civile. On inscrivait dans l'intérieur des tablettes les noms des
saints invoqués au moment de la consécration, des formules
d'oraison, et la liste des évêques dont on récitait les noms en
demandant à Dieu le salut des fidèles trépassés» (Le Magasin
Pittoresque, 1837).
/ 15 /
Segundo D. JOSÉ AMADOR
DE LOS RIOS, os dípticos eram
«destinados desde su construcción á hacer oficio de relicarios ó á
servir de oratorios portátiles, usos que hacía muy frecuentes en España
durante Ia Edad Media la necesidad constante de la guerra con los
mahometanos, así respecto de reyes y magnates, como de caballeros y prelados». (La Cámara Santa de la
Catedral de Oviedo, in Monumentos Arquitectónicos de Espana, 1877).
|
Fig. 1 − Díptico de prata. Exterior |
De madeira, chapeada de prata. Recorte superior trilobado, com o arco
central ogivante. No revestimento externo, duas personagens em relevo
que representam a Anunciação; o anjo Gabriel apresenta a mão direita
radiada, figuração hieroglífica, invulgar, do Espírito Santo (fig. 1).
As figuras, alongadas, com os vestuários de pregas agudas e paralelas,
de calma e severa gravidade, têm caracterização bizantina.
Interiormente, circunscritas por emolduramentos com ornamentação
geométrica, aberta a buril, e em planos reentrantes, vêem-se duas
placas (fig. 2).
/ 16 /
A placa do lado esquerdo do observador divide-se em trinta e dois compartimentos, com fiadas longitudinais de figuras e
florões, alternando. As figuras, que lembram delicado trabalho
de glíptica, de duas espécies, interpoladas, representam homens em meio
corpo, um, pintando, e o outro fazendo menção de
apontar: o escriba e o leitor dos nomes e frases inscritas nas
faixas que limitam os compartimentos. No alto, duas figuras de
corpo inteiro, em oração. Nos cruzamentos das divisões e em
baixo, pregos ornamentais de roseta.
|
Fig. 2 − Díptico de prata. Interior |
As legendas feitas a buril, com incrustações de esmalte negro (nielles), evocam, quase na totalidade, santos ou relíquias
deles, a saber:
/ 17 /
[VoI.
III - N.º 9 - 1936]
Caracteres latinos, com algumas letras unciais.
A placa do
lado direito mostra Cristo crucificado entre a Virgem e
S. João Evangelista. Gravura a buril. Concepção iconológica e
artística da idade média. Cristo, de nimbo crucígero, com os braços de horizontalidade perfeita (tradição grega) e a
cabeça ligeiramente inclinada para a direita, os pés separados,
'fixos com dois pregos a um supedâneo. A Virgem, do seu lado direito,
com os pés calçados; S. João, à esquerda do Salvador, de pés nus; ambos
apoiam a face na mão, em sinal de dor. Sob a cruz, o «vaso místico».
Como testemunhas do martírio de Cristo, vêem-se o sol e a lua aos
lados da haste Superior da cruz, de extremidade curvada; a mão divina,
surgindo das nuvens, é a representação primitiva do Padre Eterno.
A inscrição do madeiro reza:
HIC: NASARENO. REX: lVDEORVM: ELOl:
A última palavra respeita à frase que Jesus pronunciou ao morrer:
Eloi, Eloi, lama sabacthani? Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?
(Evangelho de S. Marcos, XV, 34).
O díptico, todo de prata dourada, acha-se externamente
deteriorado, tendo sofrido restaurações pouco cuidadas.
Este belíssimo exemplar apresenta os caracteres gerais das
obras de Limoges, que até ao século XII evidenciam o gosto e a maneira
bizantinas.
Pode ser trabalho peninsular, pois há obras de inspiração limosina
feitas em Espanha no século XIII. O díptico do bispo D. Gonçalo, da
Câmara Santa de Oviedo, obra de ourivesaria espanhola da segunda metade
do século XII, tem uma Crucificação de tipo análogo ao exemplar de
Arouca (Vid.: El Arte en España, n.º 33. Ed. Thomas).
Século XII ou princípios do século XIII. Altura, 0,24; largura, aberto, 0,27.
RELICÁRIO do lignum crucis, sob a forma de cruz.
«Según el canon 1287, las reliquias tienen que guardarse
en recipientes cerrados y sellados, pudiéndo-se tener varias y distintas reliquias en un solo relicario, con excepción de las
de la Cruz de J.
C. que se deben venerar en relicario separado y en forma de Cruz»,
(RAFAEL SÁNCHEZ, Colección de documentos sobre la orfebreria olival en
la Corona de Aragón, in Universidad, Zaragoza, 1932, n.º 4).
Cruz de prata, com o vulto dourado, de haste superior
alongada,
aproximando-se do tipo grego, contendo uma relíquia do Santo Lenho e um
espinho da coroa de Cristo (fig. 3). Ornamentação inteiramente constituída de rosetas, unidas, com
'fundos vasados, de sabor bizantino. Pedras azuis, engastadas, nos
braços./ 18 /
|
Fig. 3 − Cruz relicário de prata. |
/ 19 /
Em toda a orla, decoração vegetal rudimentar, os característicos «ganchos» primitivos, góticos, do começo do século
XIII. A base é um enxerto do renascimento. Séculos XIII e XVI. Altura,
sem a base, 0,38
TRÍPTICO
|
Relicário de madeira chapeada de prata. Nas
portadas, com fechadura de aldraba, sob arcos trilobados, as imagens de Santo Huberto, S. Pedro, S. Paulo e S. Martinho,
em relevo, dourados, entre densa ornamentação repuxada e lavrada de
folhagens estilizadas, rosetas e cachos, cujos temas se repetem (fig.
4). As costas do relicário são igualmente lavradas, com motivos
flóricos de fino acabamento, dispostos em três secções longitudinais
divididas por fiadas de rosetas e pregos estrelados (fig. 5). Interiormente os três corpos comportam trinta e nove nichos, todos
povoados de relíquias (fig. 6). Faixas estruturais realçadas a ponteado.
|
Fig. 4 − Tríptico-relicário de prata. Face anterior. |
Arco culminante central, ligado a
arcos laterais nos dois terços
da altura das portas, em cuja faixa corre uma fiada de esbeltas rosetas,
variadas, que repetindo-se na base constituem notável parte do adorno.
Sobrepuja o tríptico uma fiada de lises de belo recorte.
As relíquias acham-se distribuídas ordenadamente, vendo-se os nomes dos
santos à direita (do objecto), das santas à esquerda,
/ 20 / e da família sagrada, apóstolos, patriarcas e de outros santos,
no centro, entre eles o nosso Santo António.
As legendas do tríptico são em português, com tipo de letra
de
cerca de 1500. Trata-se, sem dúvida, de obra nacional.
Como disse esta peça foi levada à Exposição de Arte Sacra
Ornamental, de Lisboa, em 1895. Num dos artigos que então publicou,
referiu-se-lhe, sem indicar
a procedência, o professor JOAQUIM DE VASCONCELOS (O Comércio do Porto,
I. VIII. 1895):
«...relicario grande de prata, portatil, especie de tripticho, proprio
para ser levado em procissão sôbre uma
haste, quer aberto quer fechado. No interior 39 compartimentos com
relíquias e lettreiros portuguezes.
|
|
Fig. 5 − Tríptico-relicário de prata. Face posterior. |
As inscripções são em
lettras nielladas. Fechado, apresenta grandes figuras de Santos,
em lavor repuxado. Temos lido umas singulares phantasias sobre esse relicario,
que dizem bysantino (!). É lavor do fim do seculo XV, quando muito, por todos os caracteres que apresenta
na ornamentação vegetal e nas figuras».
A opinião do notável arqueólogo professor J. DE VASCONCELOS,
merece ser fixada.
/ 21 /
Fim do século XV. As suas dimensões são: altura,
0,56; largura, aberto, 0,55; largura, fechado, 0,27.
|
Fig. 6 − Tríptico-relicário. Interior. |
COFRE DE RELÍQUIAS
Em forma de
baú. Imitação de
tartaruga, com aplicações de prata, trabalhada a buril.
Ornamentos de folhagens e aves, de estilo
românico-gótico (século XIII) (fig. 7).
A propósito de um cofre similar do Museu Nacional das Janelas Verdes, o
professor JOAQUIM DE VASCONCELOS (Arte Religiosa, fascículos 17 e 18),
anota: «Intrigou-me deveras esta obra que a alguns parece ser de
tartaruga, guarneci da de prata lavrada.»
/ 22 /
|
Fig. 7 − Cofre de relíquias. |
/ 23 /
E acrescenta: «Muitas das peças que apareceram
na Exposição
de Arte Ornamental (1882), sobretudo cofres e pentes
(os célebres pentes altos, de senhora, rendilhados, dos séculos
XVII e XVIII) eram keratine e não tartaruga (aliás raríssima e
de dificílima manipulação), nem gelatina, como até absurdamente se escreveu no catalogo a cada passo, com referencia especial aos
cofres de relíquias, como este».
O cofre-baú, de Lisboa, mostra nas guarnições de prata, elementos
decorativos do século XVII (gravura a buril) e outros do estilo românico
do século XIII («chapa batida sobre matrizes»). O de Arouca apresenta-os de uma época só: século XIII.
A caixa, de massa, não pode ter atribuição tão remota. Assim,
ou foram aproveitadas as guarnições antigas ou se imitaram os lavores
medievais, o que é menos crível.
No tesouro da Sé de Coimbra (Notícia
Histórica, por A. AUGUSTO GONÇALVES
e EUGÉNlO DE CASTRO, 1911) existem dois cofres de tartaruga (n.os 32 e
33), paralelos aos de Lisboa e de Arouca, indicados como do século XVII.
A forma e as dimensões
de todos eles são semelhantes. Comprimento, 0,24; altura, 0,12.
Dada pela
tradição como coeva da Rainha Santa, há ainda
no tesouro de Arouca uma cruz de azeviche, com o Cristo de marfim, que,
dizem, «servia para as noviças levarem na mão
quando iam professar». As cruzes de azeviche eram geralmente
usadas em actos fúnebres, destino que a de Arouca parece denunciar pela
caveira esculpida na base. O suporte apresenta
duas superfícies, horizontais aos lados da haste, destinadas a
imagens, a Virgem e S. João. Nos inventários antigos mencionam-se cruzes de azeviche assim acolitadas; o dos Reis Católicos
de 1504, refere: «Dos cruces de altar de azabache negro la una
dellas tiene a Nuestra Señora e San Juan y el crucifijo dorado»
(JOSÉ FERRANDIS), Marfiles y azabaches españoles, Barcelona 1928,
p. 250).
Esta cruz deve datar do século XVII.
Outras peças se encontram no Museu, como relicários, cruzes, custódias, etc., mas, por serem de secundária
categoria
artística ou obras modernas, se bem que algumas valiosas, dispenso-me de as mencionar.
Várias peças de ourivesaria são consideradas pela tradição
como tendo pertencido à rainha Santa Mafalda. O testamento,
que alude a alguns desses objectos de arte e de piedade, não
permite a respeito delas identificação segura.
Contemporâneas da rainha, tais
peças não podem ser de factura
posterior ao meado do século XIII. Os objectos falam
por si, e é o seu depoimento, unicamente, que devemos escutar.
Confiado na tradição, e pouco curando de estilos artísticos, foi
que em 1893, o portuense P.e FRANCISCO JOSÉ PATRÍCIO, escreveu:
«São dignas de
memorar-se, como preciosidades artísticas de
primeira ordem, a cruz de prata dourada, estilo gótico, onde
/ 24 /
está uma relíquia insigne do Santo Lenho e um espinho da coroa de Cristo, e um relicário em forma de
capella tricipete,
portátil, todo cheio de lavores e cinzelados, também de prata dourada, e, como a cruz do Santo Lenho, é obra do século
XIII» (Portugal, Dic. 1909, v. Arouca).
Em verdade, dentro da época apenas pode incluir-se
a cruz.
Há porém, nas disposições testamentárias, referência a um
díptico
−
dítagos ou díptagos, tábuas de duas dobras onde se
inscreviam os nomes dos Santos (VITERBO, Elucidário), facto que
importa acentuar.
Em 1753, quando se organizou o processo para a canonização de D. Mafalda, dois peritos ourives examinaram «a custódia
chamada Santuário da Rainha» e viram que «era toda de prata
lavrada e dourada com as respectivas portinholas, chavesinha e
fechadura também de prata, toda guarnecida com uma renda de
prata dourada, e era sustentada nos lados por figuras do mesmo metal que representavam Leões. A dita custodia tinha três
palmos e meio de altura, três palmos de largura, e no interior quase um palmo. O vão desta Custódia
estava divldido em 44
nichos, em que estavam dispostas por ordem outras tantas Relíquias de Santos, isto é, da Santíssima Virgem, dos Doze Apóstolos, de S. José, de S. Joaquim, de Santa Ana, do Santo
Evangelista, dos Patriarcas S. Bento e S. Bernardo e de outros. Santos e Santas, com as respectivas inscrições, em
cada um dos mesmos nichos gravadas em prata a buril. Nas portinholas com que se fecha a dita custódia havia quatro baixos
relevos de prata representando respectivamente os Apóstolos
S. Pedro e S. Paulo e os Patriarcas S. Bento e S. Bernardo».
Esta descrição não condiz inteiramente, como se verifica,
com o exemplar existente, onde se não vêem quaisquer leões, o
número de nichos é menor, e dos apóstolos só contém nove nomes.
O falecido arqueólogo aveirense MARQUES GOMES, que transcreve
esse
documento (Arte, n.º 52, 1909), sem notar quaisquer
diferenças, julga que o tríptico, que a tradição dá como tendo
pertencido. a Santa Mafalda, «dois séculos depois foi inteiramente transformado», pois considera a sua factura, com razão, como
dos princípios do século XVI.
Todavia passou-lhe despercebida a dissemelhança entre o
tríptico que observou e o relato, deixado pelos peritos ourives.
O documento citado alude também a «um braço de prata» com relíquias,
indicado no testamento da Rainha, que não se encontra no tesouro.
A descrição feita em 1753 apenas se adapta ao tríptico
actual, quanto a duas figuras das portadas (S. Pedro e S. Paulo),
e às medidas, aproximadas, de altura e largura. As outras imagens são de
Santo Huberto, bispo de Liège, com o característico
veado, santo invocado sobretudo contra a raiva, e de S. Martinho,
/ 25 / bispo de Tours, com um coração na mão, aludindo à grandeza de alma que o caracterizava.
Há, como se vê, diferenças importantes.
|
Fig. 8 − Tapete do norte da Pérsia. Fragmento. |
Deve admitir-se, pois, a existência de outro, que seria
aquele que pertenceu à Santa Mafalda. O tesouro de Arouca era
rico, e possuiria, de certo, vários espécimes do género, como,
por exemplo, o díptico restituído há anos (talvez aquele que o
testamento indica) o qual totalmente se desconhecia. Esse é, sem
dúvida, contemporâneo da Rainha Santa Mafalda.
O grupo «tapeçarias" compreende um esplendoroso tapete oriental, em
magnífico estado de conservação, e vários outros
tapetes, alguns de Arraiolos do século XVIII. Só particularizarei o
primeiro.
/ 26 /
TAPETE DO NORTE DA PÉRSIA
Entre densa composição flórica,
estilizada, vêem-se aves, leões e tigres tratados de
maneira realista. Cercadura de linhas geométricas, com vasos de
flores, e grupos de veados e corças. De seda e lã, predominando as cores vermelha, azul e amarela (fig.
8) Século XVI.
Dimensões: 5,88 x 2,20.
Na secção de belas artes encontram-se diversas pinturas
dos séculos XVI e XVII, baixos relevos em madeira, policrómicos e, estofados, e imagens, várias delas de calcário.
Acerca das pinturas do Museu reproduzo aqui a opinião do
meu ilustre amigo e devotado historiador da arte portuguesa,
SR. LUÍS REIS SANTOS, que me deu o gosto da sua companhia
numa das minhas visitas a Arouca: «Tábua que representa o Lava-Pés (fig.9): de um continuador de Vasco Fernandes;
embora fraco na composição e no desenho, o artista reflecte caracteres muito próprios de várias obras daquele pintor, em redor
do qual floresceram outros cuja obra ainda não foi identificada
com segurança. É curioso observar nesta tábua os abruptos penhascos que se vêem através da janela geminada e o retalho de
paisagem, típico aspecto que só conhecemos nas obras do grande Vasco. Certa maneira de tratar os panejamentos, quer no
desenho quer na cor, também nos recordam a arte inconfundível
do mestre de S. Pedro.
«Três outras tábuas, que porventura faziam parte de um
retábulo, episódios da Paixão do Senhor, representam as seguintes cenas: O beijo de Judas, Jesus escarnecido, A caminho do
Calvário; todos eles, mas principalmente o primeiro, mostram grandes
afinidades e até caracteres individuais do autor do Lava-Pés.
«Perante estes quadros estamos assistindo a uma fase de
transição; que conduz ao declinar da nossa brilhante pintura do século XVI, a qual teve o seu período áureo nos três primeiros
decénios do século.
«Desta época
em diante, quando os pintores das parcerias de Lisboa e
de Ferreirim entram numa fase amaneirada, vão-se perdendo as
características resultantes de uma tradição de grandes mestres italianos
e sobretudo flamengos.
«Estão-se estudando neste momento os documentos que nos restam dessa evidente decadência, que nos deu obras francamente inferiores nos últimos decénios de quinhentos, inspiradas numa
arte italiana de mau gosto que conduziu ao nosso século XVII, onde, com
raríssimas excepções, se registam artistas de reduzido valor.
«A segunda série, constituída por painéis de um conjunto igualmente
relativo à Paixão de Jesus e de outros temas, ou
pode dar origem a problemas interessantes para a história da
nossa pintura ou não passará de trabalhos maus de copistas de
fraca imaginação e sem recursos técnicos muito apreciáveis.
«Só os processos científicos podem esclarecer o caso. O
/ 27 /
que está à vista, isto é, o que a camada cromática superior nos
revela é, sob o ponto de vista técnico, francamente mau. Fraquíssimo desenho e de uma ingenuidade que não é produto de
impulsos espontâneos; a cor é turva, em gradações mal insistidas
e mal veladas.
|
Fig. 9 − Lava-pedes. Tábua do século XVI. |
«Estará qualquer coisa por
baixo desta pintura, ou as fraquezas apontadas são obra de um repintador mais que medíocre? Os raios X dirão. A composição, sobretudo dos da série relativa à
Paixão do Senhor, é manifestamente copiada de xilogravuras francesas do fim do século XV, conforme
tive ocasião
/ 28 /
de constatar num incunábulo existente numa das nossas bibliotecas provinciais.
Isto, porém, não exclui a hipótese de ocultarem os referidos quadros obras
originais, porque a influência que as
gravuras antigas exerceram nesses remotos tempos é frequentemente verificada».
Há pouco foram encontradas
ao abandono (em salas de
arrumação) mais duas pinturas, em tábua, dos meados do século
XVI: um pequeno tríptico com a Adoração dos Reis, e um quadrinho com
o martírio de Santa Úrsula e das suas companheiras.
Entre as esculturas, merece especial menção a imagem de
S. Pedro, em calcário, colocada na Sala do Capítulo, que, para o coleccionador lisbonense
Sr. ERNESTO DE VILHENA (conforme
exarou recentemente no livro dois visitantes), «é sem dúvida, a
mais harmoniosa e característica escultura da século XV que
existe em Portugal».
Não pretendi fazer uma resenha circunstanciada, mas reunir algumas
notas apreciativas respeitantes às peças mais salientes do espólio
artístico do mosteiro de Arouca, agora carinhosamente reunido num Museu
−
elo do presente ao passado,
onde o
espírito do visitante pode surpreender em momentos o panorama diluído dos séculos.
PEDRO VITORINO
|