Agostinho de Campos, Na morte de um justo. Dr. Jaime de Magalhães Lima, Vol. II, pp. 46-49.

NA MORTE DE UM JUSTO

Com invulgar e justa elevação noticiou a Imprensa nacional o passamento de Jaime de Magalhães Lima, reflectindo unanimemente nos seus comentários a grande perda que o Pensamento português acabava de sofrer.

Pela delicadeza de conceitos, brilho literário e rigor de observação, a crónica que lhe dedicou em "O Comércio do Porto" o Prof. Dr. Agostinho de Campos constitui notável página de crítica que não deve ficar apenas nas folhas efémeras dum jornal.

Com autorização de Sua Excelência a transcreve daquele diário o ARQUIVO DO DISTRITO DE AVEIRO.

 

A VIDA dos homens notáveis fala aos outros homens, é a seu modo linguagem. A de alguns sublima-se em estilo, e há vidas que são poemas.

Certos homens vivem poeticamente sem terem escrito nunca uma só linha métrica. Por outro lado, muitos nos legaram poemas e poemas, tendo transitado pelo mundo em existências prosaicas. De um poeta, francês e não dos menores, me estou lembrando! que foi na sua vida vivida assassino e ladrão.

E os Santos? Porque o mundo é sempre o mesmo e sempre vário, alguns vivem connosco, são do nosso tempo e da / 47 / nossa roda, falamos-lhes, escrevemos-lhes, visitamo-los ou passeamos com eles. E, apesar de tudo isto, nunca verdadeiramente convivemos, se esta palavra se dissecar e experimentar com o seu pleno significado de com-viver. Este conviver é impossível, porque só há duas formas santas de viver, que são viver, ou acima, ou à margem da vida. Nós, pecadores, atravessamos o Vale de Lágrimas, assim chamado por o ser de Maldades, encharcados, mergulhados, se não sepultados na crassidão da / 48 / existência. Os Justos deslizam por ela, nem de outra maneira o seriam, ou poderiam ser.

Exerce-se a santidade neste mundo, mas é por si um mundo − e não o nosso. E podemos ter no Santo um «amigo íntimo», mas iludimo-nos sobre a força e a propriedade deste adjectivo: a verdade é que o nosso santo amigo «íntimo» vive, na sua vida real, ou profunda, a longa distância de nós.

 

 
 

Um dos últimos retratos do Dr. Jaime de Magalhães Lima.

 

Não é da jurisdição de quem isto escreve canonizar ninguém; mas pegamos na pena para prestar uma pobre homenagem à memória querida de Jaime de Magalhães Lima − e o desabafo que primeiro nos saiu cá de dentro, no seu primeiro jacto mais sentido que pensado, não pôde exprimir-se por palavras diferentes das que aí ficam acima.

Serão elas talvez oportunas, pois em todas as notícias referentes ao falecimento daquele Mestre, ou na transcrição dos belos discursos proferidos no seu funeral pelos Drs. Alberto Souto e Coelho de Magalhães, as duas palavras Santo e Justo surgem e se repetem como lugares-comuns inevitáveis para definir o escritor eminente e o homem que tão alto se elevou na sua mansa humildade.

Ilustre, assíduo e raro nas nossas Letras foi o pensador, o crítico, o místico, o esteta e o poeta que, revelando-se em tantos livros coalhados de ideias, espessos de meditação, alados de nobreza moral e mental, para sempre ficará na história da cultura nacional como exemplo de seriedade, sagacidade, subtileza e profundeza. Mas a sua vida belíssima, no momento em que se apaga, ofusca as suas belas obras. Sonho de perfeição se chama uma destas, e não haverá talvez melhor letreiro para a sua sepultura.

Certos homens reconciliam-nos com os homens, e isto alivia e consola de sermos e vermos homens. E afinal, para que se não esvaia o conforto, convir-nos-á talvez esquecer por um momento que esse Homem fugiu aos homens, refugiando-se junto das flores ou das árvores; e que, ao convívio directo com os seus pares em cultura, preferiu a intimidade com o campo, e o arvoredo, e a montanha, e as almas simples cujos pecados não pensados nem sábios, cuja própria insuficiência humana se confunde com a vegetação, inocente ainda quando espinhosa ou de má sombra.

Vai em dez anos escrevi, para a "Ilustração Moderna", de Marques de Abreu, certas palavras destinadas a acompanhar vários belos retratos do anacoreta letrado que repousa agora Na paz do Senhor. Algumas dessas voltam à tona:

Dizem que há árvores que envenenam os homens. Talvez. Mas o prazer de quase todas é darem-nos a frescura da sombra e o calor da lenha, a beleza da flor e o sabor do fruto. Com a / 49 / [Vol lI − N.º 5 − 1936] colaboração maldosa da mão humana é que se fabricam, de troncos e ramos inocentes, a cruz, a forca e o cacete. Vedes aqueles penhascos sem caridade nem sorriso? De outros iguais fez Jaime de Magalhães Lima, em dezenas de anos de amorosa paciência, matas extensas e frondosas, música para os ouvidos, pintura para os olhos, carícia das almas, saúde para os peitos, exemplo a sôfregos e apressados, poética herança, riqueza puríssima. Um Cincinato que não pôde ser César? Não: um S. Francisco de Assis, que se abraçou à Irmã Árvore, porque o irmão Homem não sentiu nem desejou o seu abraço.


Morto o Justo, compreenderá o irmão Homem a lição da sua vida? Lição igualmente rica, por qualquer dos seus três aspectos principais.

Amou as Letras e serviu-as como poucos, e principalmente por amor da Grei a que pertencia, embora o seu próprio tipo físico o aparentasse talvez mais com outras se é que não provinha de atavismos que nele tivessem feito regressar e reviver um etnos mais antigo e mais puro. Alguém a seu tempo estudará com respeito e proveito a significação e o alcance nacional do seu labor literário.

Amou as Árvores, criou-as, embevecia-se na contemplação da sua livre e natural integridade e deixava-as expandir-se com a majestosa força e beleza de que Deus as dotou. À sua volta
(e sobretudo desde que há trinta anos se instituiu entre nós a Festa da Árvore) ecoava permanentemente o ruir dos velhos troncos e o esgalhar das ramagens magníficas, para que a poda miserável e assassina reduzisse os colossos às proporções mesquinhas dos homens invejosos da grandeza de Deus e das suas obras mais belas. Algum dia, sob o patrocínio do nome e da Memória de Jaime de Magalhães Lima, a Árvore será defendida e amada por outros homens mais civilizados que os de hoje
estes que falam em turismo ou nas belezas naturais da Pátria, e mostram ao viajante, em vez de alamedas, feijoais com os seus tutores mais grossos que a planta.

Morreu o Justo, que amou o povo e o povo tratava como Santo. Se outros o esquecessem, esse o guardaria, com a lenda perdurável, na sua espontânea e incorruptível gratidão.

AGOSTINHO DE CAMPOS 

 

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