UM século depois do de Ovar, e sem que
este desapareça, ocorre pela primeira vez o nome de Cabanões num importantíssimo documento que atesta a pirataria dos Normandos nesta parte da beira-mar.
Vindos do Báltico nas suas barcas, esses bárbaros da Jutlândia,
depois de infestarem as praias da Inglaterra e da França,
visitaram todo o litoral da Península, desde o ano de 843, durante
perto de dois séculose(1). Saqueadas as povoações da beira-mar,
faziam incursões pelo interior e por toda a parte assinalavam a
sua passagem com danos e mortes. Acabaram, todavia, por entrar em relações amigáveis com os habitantes do litoral e
talvez lhes
deixassem certos ensinamentos sobre navegação. O nosso documento mostra,
pelo menos, que admitiam o resgate de prisioneiros. Escapou a JOÃO FREDERICO porque VITERBO, embora o
cite, não o refere a Ovar. Está publicado nos P. M. H.
− Dipl. et Ch. com o
n.º 261 e precedido duma nota em que se explica
que a carta autógrafa, outrora pertencente ao mosteiro de Pedroso, fora levada do cartório da Universidade de Coimbra para o Arquivo
Nacional onde se conserva. É do teor seguinte:
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«Christus. In dei nomine ego meitilli kartula uenditionis facimus
ad tiui octicio de ereditate nostra propria que auemus de auolenga
et de parentorum nostrorum in uilla kabanones et in muradones IIlIª
integra subtus mons castro rekaredi terridorio ciuitas sancta maria
discurrente riu ouar in ipsa uilla kabanones in ipso kasal IIlIª ad
/ 22 /
integro et de muradones IIII integra pro que comparastes nobis de
kaptibo mici meitilli cum filia mea guncina et sakastes nobis de
barcas de laudomanes et dedistis pro nobis uno manto lobeno et una
spada et lº kamisso et III lenzos et una uaka et III modios de sal
finto sub uno LXX modios ante ipsos domnos que abitantes eram in
cassa de sancta maria de ciuitate tedon galindici et fredenando
gundissalbici et era tellici et de pretio abut uos non remansit pro
dare. Ita ut de odie die siat ipsa eredidate de iuri nostro abrasa
et in uestro jure siad tradida adque confirmada et aueadis uos ipsa
ereditade quod sursum resonat de adie die in denante ad integro et
faciadis inde quod uolueridis. Siquis tamen quod fieri non credidis
et aliquis omo uen... uel uenerimus contra anc factum nostrum que
nos in iuditio deuindigare non potuerimus aut uos in uoce nostra
quomodo pariemus ad uobis ipsa eredidate dublada uel tripada uel
quantum ad uobis fuerit meliorada. nodum die quod erit III kalendas
magii. Era millesima LXIII. et ego meitilli in anc kartula
uenditionis manu mea rouo + ro. qui presentes fuerunt ederonio test.
− kazume test. − erigu test. − dauit test. − songemiro test.
Aba uasculum notuit». |
Consta deste documento, cuja tradução literal ficaria pouco
elegante, que Meitili e sua filha Guncina doam a quarta parte
das propriedades que possuíam de seus pais e avós no Casal da vila de Cabanões e em Muradões, sob o monte Castro de
Recarei, no território da cividade de Santa Maria, junto do curso do rio
Ovar, a um tal Octício que os resgatou do cativeiro
e os tirou das barcas dos Normandos, dando aos piratas «um
manto de pele de lobo, uma espada, uma camisa, três lenços,
uma vaca e três moios de sal, tudo no valor de 70 módios». A
entrega do resgate fez-se na casa de Santa Maria da Cividade,
na presença dos senhores da terra, Tedon Galindes, Fernando
Gonçalves e Ero Teles. O título de transacção das propriedades
lavrou-se a 28 de Abril do ano de 1026, perante as testemunhas
Ederónio, Cáceme, Erigo, David e Songemiro, servindo de notário o abade Vasco.
Que o nome de Ovar se não aplicava apenas ao porto e ao
rio, mas designava uma vila, prova-o um documento do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra,
impresso nas Dissertações
Cronológicas de JOÃO PEDRO RIBEIRO. É a doação de Transtina Pinioliz a Sancha Pinioliz, em 24 de
Fevereiro de 1046, na qual se
inclui metade e a décima parte da vila de Ovar: et villa Obar
mediatate et decima (Dis. Cron., tomo I, pág. 208).
/
23 /
A VILA, ERMIDA E COUTO DE S. DONATO
A seguir a um documento de
1116, vem sem data, no Livro Preto (fl. 124 v.), esta nota de «herdades» pertencentes à Sé de
Coimbra e «que andavam alienadas»:
|
«Castrumia cum adiectionibus et testamentis ad integrum. sancto michale.
saxo albo. sancto martino. Arnelas. sancta maría de famelgos. sancta
marina de purtugal cum suis diretturis. sancto cipriano de illa gandera.
sancto saluatore de guitin cum suis diretturis. sancta cruce de lacuna.
sancto donato. sancto petro de uilla plana [oluar. sancto johne de vaer
ad integrum]»
(2). |
Como esta lista segue de perto a de 922, parece que as vilas e igrejas,
então doadas ao bispo D. Gomado e ao mosteiro de Crestuma, passaram
depois à posse da Sé de Coimbra em que se conservaram até que, em 1115,
Pascoal II fixou como limite desta diocese com a do Porto o rio Antoã.
Seja como for, os documentos anteriores e os que vão seguir-se mostram
quão dividida andava já a propriedade das vilas no período que precedeu
a constituição da independência nacional. O fraccionamento fazia-se por
partes, porções e quinhões «íntegros» que «abrangiam tudo, incluindo as
próprias habitações», e não importava a decomposição real do prédio. «Os
co-herdeiros ou co-adquirentes tornavam-se então com-proprietários da vila na proporção das fracções obtidas» (A. SAMPAIO).
Do ano de 1101 temos uma carta de venda de várias
dessas porções e quinhões na vila de S. Donato, uma das pequenas vilas
que se anexaram para a unidade paroquial de Ovar:
Karta de sancto donato. suero fromariguiz.
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In dei nomine. Ego gunsaluus com fratribus meis. Et
ego ramirus cum fratribus meis. Et ego maria cum fratribus meis. nulla constricti necessitare aut
timore perterriti. sed
spontanea nobis accessit uoIuntas ut faceremus cartam uenditionis et
firmitudinis uobis dompno suero fromariguiz. et uestre muliere eluire
nuniz sicut et facimus de hereditate nostra propria quam habemus de
parte auorum et parentum nostrorum. in ipsa uilla de sancto donato. et de molino de sancto donato.
V.ª integra subtus castro recarei.
discurrente riu maior. territorio portugalensi. propre ciuitatem sancte
marie. damus et concedimus
/
24 / in ipsa uilla nostras portiones integras et in illas
salinas. et in illas uillas nostros quiniopes íntegros. per suos locos et terminos nouos et antiquos. per ubi illam
potueritis inuenire. cum quantum in se obtinet et ad prestitum hominis est. et damus uobis de ipsa hereditate de froia sesmiriz. quartam minus quintam et quintam
de quinta. pro qua accepimus a uobis in pretio definito
.XXII. modios. tantum recipere nobis placuit et de pretio
pro dare penes uos nil remansit.
. . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . .
facta carta uenditionis noto termino .VI. idus marcii. E. M. C.
XXXªVIIII. Ego gunsaluus et ramirus et maria cum
omnibus fratribus nostris hanc cartulam iussu nostro facta
propriis manibus r
−
|||
− obor
−
amus. Qui presentes fuerunt. sandus testis. petrus testis. pelagius testis. Petrus notuit.
(Livro Baio Ferrado de Grijó,
fl. 77) |
Diz este documento que Gonçalo, Ramiro e Maria, com
seus irmãos, vendem por 22 módios a D. Soeiro Fromarigues e a sua mulher
Elvira Nunes as suas porções e quinhões na vila de S. Donato e nas
respectivas salinas, a quinta parte do moinho de S. Donato e uma parte
da herdade de Froia Sesmires.
A exiguidade do preço, o número dos com-proprietários
das partes vendidas (pelo menos 9) e a fracção destas (1/5 no
moinho) mostram que a divisão se vinha operando há muito.
Por outro lado, recompondo as parcelas, verifica-se que não era grande a
vila de S. Donato na primitiva unidade, embora à propriedade rural andasse conjunta a de salinas que não ficariam
próximas.
Não entrou neste contrato a ermida já existente em 922 e que deu o nome à vila. A referida nota do
Livro Preto inclui-a nas que «andavam alienadas». Por venda, por usurpação?
D. RODRIGO DA CUNHA, tratando, no seu Catálogo, do bispo do
Porto D. João Peculiar, cita dum livro antiquíssimo do Cartório
do Cabido «huã doaçaõ que o mesmo Bispo fez aos Frades, que viviaõ na
Ermida de S. Christovaõ de Lafoês da Ordem de S. Bernardo, da Ermida de
S. Donado, que estava na terra de
Santa Maria, junto ao mar Oceano, pegado com a Villa de Cabanois, que hoje chamaõ Ovar. He sua data na Era 1176. no
segundo ano de seu Pontificado: Reynando, e consentindo D.
,Affonso Princepe de Portugal filho do Conde D. Henrique, e
da Raynha Tareja, e neto do grande Rey Affonso. Confirma a doaçaõ o
mesmo Bispo D. Joaõ de cõsentimento dos seos Clerigos: e Pedro Rabaldis
Arcediago da mesma Se do Porto.
Desta Ermida fez Couto el-Rey Dom Affonso Henríques a
Joaõ Cerita Prior, e mais Frades de S. Christovaõ de Lafoês,
/ 25 /
e lhe limitou os termos, e districtos della, e de sua herdade, que o
Bispo D. Joaõ tinha dado aos Padres. He a data no mez de Outubro, Era de
1176. no qual tempo hera já Arcebispo de Braga o
Bispo D. Joaõ, como se ve da confirmaçaõ da mesma escritura, em q se
assigna arcebispo de Braga: foraõ testemunhas Egas Moniz, e outros
senhores.
Destas doaçoens se ve como o Bispo D. Joaõ ordenou, e tratou, que se
edificasse o Mosteyro de S. Cristovaõ de Lafoês, e lhe deu a Ermida de
S. Donado, e terras della, para sustentaçaõ dos Religiosos...»
(3)
Em 14 de Junho de 1341, D. Afonso IV deu em Lisboa uma carta de sentença a favor do bispo D. Vasco Martins,
sobre a
jurisdição do Bispo do Porto «nos coutos de Sam Doado de Cabanões e de
Santo Tirso de Meinedo e de Sancta Maria de Campanhaã». Tendo-se
procedido a inquirições, averiguou-se «que sam doado ha couto e que o
Bispo por a dita sá Egreja do porto auya hi jurdiçom çiuel e que poynha hi
seu juiz e seu moordomo
e que o dito juiz ouuya os feitos ciuees dos moradores do dito couto e
daua sentenças. E que apellauam do dito juiz para o Bispo. E que outro
ssy prouaua que a jurdiçom do crime era mjnha» (do rei). Foi resolvido
que assim continuasse
(4).
Resumindo: em 922, o Conde Lucídio Guimarães doa a a ermida de S.
Donato ao mosteiro de Crestuma; em 1138, D. João Peculiar faz doação
dela e D. Afonso Henriques couta as suas terras aos frades de Lafões; em
1341, existe ainda o couto e está na posse do bispo do Porto, Não consta
que S. Donato fosse entre estas datas freguesia independente, nem é fácil
reconstituir os limites do seu couto, que talvez correspondessem
aos da antiga vila.
Voltarei a ocupar-me da capela de S. Donato ao esboçar a história religiosa de Ovar, porque se me depararam no Arquivo
Distrital do Porto os documentos utilizados por D. RODRIGO DA CUNHA,
que importa incorporar neste trabalho. Entretanto, convirá talvez resolver o problema da identificação do seu santo padroeiro.
Registam os agiológios vários santos com o nome de Donato, O autor das
Memórias e Datas escolheu, entre eles, o que
«foi monge e Bispo de Arécio», degolado por ordem de Juliano Apóstata a 7 de Agosto do ano de 362. O rev.
P.e MANUEL LÍRIO
nota, no entanto, que, «tendo esta capela o nome de S. Donato, nela
se não encontre, nem nunca lá estivesse a imagem do santo bispo de Arécio»,
e recolhe uma opinião antiga,
/
26 / segundo a qual lhe proviria o nome do facto de haver sido donato
ou doado aquele lugar ao mosteiro de Crestuma, em 922.
Ora, na célebre carta do Cruzado Osberno
sobre a conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, há um passo que nos dá
talvez a chave do mistério. O texto latino desse documento foi
reeditado pela C. A. da Câmara Municipal de Lisboa, em 1935,
acompanhado da tradução portuguesa. Interessa-nos a seguinte
referência ao território de entre Douro e Vouga, que vem na pág. 38 do
volume:
|
«Habentur autem in continenti a Portugala usque ad
insulam flumina et castra. Est Castrum quod dicitur Sanctae Mariae
inter fluvium Doira et silvam quae dicitur
medica in frigore; in cujus territorio requiescit beatus Donatus apostoli Jacobi discipulus; et
post silvam fluvius
Voga». |
Na tradução:
«Ao longo do continente há, desde o Porto até esta
ilha [Peniche], rios e castelos. Há o castelo chamado de
Santa Maria (Feira), entre o rio Douro e um bosque, que dizem ser
medicinal no inverno, e em cujo território repousa S. Donato, discípulo do Apóstolo S. Tiago; depois do
bosque encontra-se o rio Vouga».
O tradutor confessa a sua dúvida quanto à identificação do
território a que respeitam as palavras sublinhadas, e chega a supor que
se trate da região de Lafões a cujas termas recorreu
o próprio D. Afonso Henriques contra os males do seu reumatismo. Longe de esclarecer, mais parece complicar essa dúvida
uma nota truncada que se lê no manuscrito, à margem de medica in frigore: «id est
mei...»
O conhecimento das antiguidades locais permite afirmar
com segurança que esse bosque medicinal (!) ficava na região de
Albergaria-a-Velha, chamada em antigos documentos «Albergarie veteris de Meigonfrio». Parte dessa região foi
coutada pela
rainha D. Teresa, no ano de 1117, a Gonçalo Eriz, e os limites
do couto são marcados «cum terram de Sancte Marie de una
parte... et deinde de aliis partibus ad terminum de Vaga». A
região era silvestre, porquanto havia nela veados, corças, gamos
e ursos. Pela mercê do couto, D. Gonçalo colaboraria com D.
Teresa na fundação duma albergaria: «et pro unam albergariam, quod inter me, et te ponamus in loco isto...» (J. P. RIBEIRO,
Dissertações, tomo I, doc. n.º 36).
O monte que domina a região é chamado Mesão Frio em
outros documentos antigos. Já no ano de 981, Gonçalo Mendes
doava ao mosteiro de Lorvão uma propriedade «in uilla uocitata
/
27 / paIos, secus ribulo uauga» e assinalava um dos termos desta
vila «per montis meison frido» (Port. Mon. Hist., D. et Ch.,doc.
n.º
132). Em 1182, Orraca Petri doa ao mosteiro de Grijó propriedades
situadas entre Canelas e Fermelã, «subtus monte
mansione frigida nuncupato in liture maris oceani Vauga flumine discurrente». No
ano seguinte, Afonso Petri faz idêntica doação de
propriedades do mesmo lugar, «subtus monte qui propter heremi
magnitudinem vocatur mansio frigida, secos litus maris oceani et ostium,
quo Vauga flumen intrat in mare» (Tombo do Mosteiro de Grijó, 3.º vol.,
fl. I e seg.).
As palavras do
Cruzado Osberno entendem-se, assim, perfeitamente à
letra: Castelo de Santa Maria entre o Douro e a selva chamada medica in
frigore (nos outros doc. mansio frigida); e depois da selva o Rio Vouga.
A nota à margem pode completar-se deste modo: id est mei[son frido].
Vejamos agora a referência a S. Donato. Diz o Cruzado que nesse
território «requiescit beatus Donatus apostoli Jacobi discipulus». Mais
adiante, na fala do arcebispo de Braga aos
muçulmanos de Lisboa, recorda entre os continuadores da pregação de S.
Tiago: «Donato, Torquato, Secundo, Endaletio, Eufrasio, Tesiphonte,
Victorio, Pelagio».
A única memória de S. Donato existente no território do Castro ou
Castelo de Santa Maria (cujus refere-se evidentemente a Castrum) é, hoje como então, esta capela de
Ovar. No
século XII, estaria decerto ainda viva na tradição local a verdadeira
identidade do santo e a circunstância de lá repousarem os seus restos
mortais. Ligada esta tradição à que atribui a primeira fundação de
igrejas na Península Hispânica a sete varões apostólicos, enviados por
S. Pedro em tempos de Nero e cujos nomes são, com pequenas variantes, os memorados no discurso do arcebispo de Braga, teríamos na capela de S.
Donato a sucessora dum pequenino templo coevo da primitiva pregação do
Cristianismo e erecto porventura no local do martírio do seu padroeiro.
Se é frágil este fio da tradição, lembremo-nos de que nenhuma cidade da
Península tem documento mais seguro das suas origens. cristãs.
P.e MIGUEL A. DE OLIVEIRA
Continua na pág. 111
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