Miguel A. de Oliveira, Vila de Ovar. Subsídios para a sua história até ao séc. XVI, Vol. II, pp. 21-27.

A VILA DE OVAR

SUBSÍDIOS PARA A SUA HISTÓRIA ATÉ AO SÉCULO XVI

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UM século depois do de Ovar, e sem que este desapareça, ocorre pela primeira vez o nome de Cabanões num importantíssimo documento que atesta a pirataria dos Normandos nesta parte da beira-mar. Vindos do Báltico nas suas barcas, esses bárbaros da Jutlândia, depois de infestarem as praias da Inglaterra e da França, visitaram todo o litoral da Península, desde o ano de 843, durante perto de dois séculose(1). Saqueadas as povoações da beira-mar, faziam incursões pelo interior e por toda a parte assinalavam a sua passagem com danos e mortes. Acabaram, todavia, por entrar em relações amigáveis com os habitantes do litoral e talvez lhes deixassem certos ensinamentos sobre navegação. O nosso documento mostra, pelo menos, que admitiam o resgate de prisioneiros. Escapou a JOÃO FREDERICO porque VITERBO, embora o cite, não o refere a Ovar. Está publicado nos P. M. H. Dipl. et Ch. com o n.º 261 e precedido duma nota em que se explica que a carta autógrafa, outrora pertencente ao mosteiro de Pedroso, fora levada do cartório da Universidade de Coimbra para o Arquivo Nacional onde se conserva. É do teor seguinte:

 

«Christus. In dei nomine ego meitilli kartula uenditionis facimus ad tiui octicio de ereditate nostra propria que auemus de auolenga et de parentorum nostrorum in uilla kabanones et in muradones IIlIª integra subtus mons castro rekaredi terridorio ciuitas sancta maria discurrente riu ouar in ipsa uilla kabanones in ipso kasal IIlIª ad / 22 / integro et de muradones IIII integra pro que comparastes nobis de kaptibo mici meitilli cum filia mea guncina et sakastes nobis de barcas de laudomanes et dedistis pro nobis uno manto lobeno et una spada et lº kamisso et III lenzos et una uaka et III modios de sal finto sub uno LXX modios ante ipsos domnos que abitantes eram in cassa de sancta maria de ciuitate tedon galindici et fredenando gundissalbici et era tellici et de pretio abut uos non remansit pro dare. Ita ut de odie die siat ipsa eredidate de iuri nostro abrasa et in uestro jure siad tradida adque confirmada et aueadis uos ipsa ereditade quod sursum resonat de adie die in denante ad integro et faciadis inde quod uolueridis. Siquis tamen quod fieri non credidis et aliquis omo uen... uel uenerimus contra anc factum nostrum que nos in iuditio deuindigare non potuerimus aut uos in uoce nostra quomodo pariemus ad uobis ipsa eredidate dublada uel tripada uel quantum ad uobis fuerit meliorada. nodum die quod erit III kalendas magii. Era millesima LXIII. et ego meitilli in anc kartula uenditionis manu mea rouo + ro. qui presentes fuerunt ederonio test. − kazume test. − erigu test. − dauit test. − songemiro test.

Aba uasculum notuit».

Consta deste documento, cuja tradução literal ficaria pouco elegante, que Meitili e sua filha Guncina doam a quarta parte das propriedades que possuíam de seus pais e avós no Casal da vila de Cabanões e em Muradões, sob o monte Castro de Recarei, no território da cividade de Santa Maria, junto do curso do rio Ovar, a um tal Octício que os resgatou do cativeiro e os tirou das barcas dos Normandos, dando aos piratas «um manto de pele de lobo, uma espada, uma camisa, três lenços, uma vaca e três moios de sal, tudo no valor de 70 módios». A entrega do resgate fez-se na casa de Santa Maria da Cividade, na presença dos senhores da terra, Tedon Galindes, Fernando Gonçalves e Ero Teles. O título de transacção das propriedades lavrou-se a 28 de Abril do ano de 1026, perante as testemunhas Ederónio, Cáceme, Erigo, David e Songemiro, servindo de notário o abade Vasco.

Que o nome de Ovar se não aplicava apenas ao porto e ao rio, mas designava uma vila, prova-o um documento do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, impresso nas Dissertações Cronológicas de JOÃO PEDRO RIBEIRO. É a doação de Transtina Pinioliz a Sancha Pinioliz, em 24 de Fevereiro de 1046, na qual se inclui metade e a décima parte da vila de Ovar: et villa Obar mediatate et decima (Dis. Cron., tomo I, pág. 208).

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A VILA, ERMIDA E COUTO DE S. DONATO

 A seguir a um documento de 1116, vem sem data, no Livro Preto (fl. 124 v.), esta nota de «herdades» pertencentes à Sé de Coimbra e «que andavam alienadas»:

 

«Castrumia cum adiectionibus et testamentis ad integrum. sancto michale. saxo albo. sancto martino. Arnelas. sancta maría de famelgos. sancta marina de purtugal cum suis diretturis. sancto cipriano de illa gandera. sancto saluatore de guitin cum suis diretturis. sancta cruce de lacuna. sancto donato. sancto petro de uilla plana [oluar. sancto johne de vaer ad integrum]» (2).

Como esta lista segue de perto a de 922, parece que as vilas e igrejas, então doadas ao bispo D. Gomado e ao mosteiro de Crestuma, passaram depois à posse da Sé de Coimbra em que se conservaram até que, em 1115, Pascoal II fixou como limite desta diocese com a do Porto o rio Antoã.

Seja como for, os documentos anteriores e os que vão seguir-se mostram quão dividida andava já a propriedade das vilas no período que precedeu a constituição da independência nacional. O fraccionamento fazia-se por partes, porções e quinhões «íntegros» que «abrangiam tudo, incluindo as próprias habitações», e não importava a decomposição real do prédio. «Os co-herdeiros ou co-adquirentes tornavam-se então com-proprietários da vila na proporção das fracções obtidas» (A. SAMPAIO).

Do ano de 1101 temos uma carta de venda de várias dessas porções e quinhões na vila de S. Donato, uma das pequenas vilas que se anexaram para a unidade paroquial de Ovar:

Karta de sancto donato. suero fromariguiz.

 

In dei nomine. Ego gunsaluus com fratribus meis. Et ego ramirus cum fratribus meis. Et ego maria cum fratribus meis. nulla constricti necessitare aut timore perterriti. sed spontanea nobis accessit uoIuntas ut faceremus cartam uenditionis et firmitudinis uobis dompno suero fromariguiz. et uestre muliere eluire nuniz sicut et facimus de hereditate nostra propria quam habemus de parte auorum et parentum nostrorum. in ipsa uilla de sancto donato. et de molino de sancto donato. V.ª integra subtus castro recarei. discurrente riu maior. territorio portugalensi. propre ciuitatem sancte marie. damus et concedimus / 24 / in ipsa uilla nostras portiones integras et in illas salinas. et in illas uillas nostros quiniopes íntegros. per suos locos et terminos nouos et antiquos. per ubi illam potueritis inuenire. cum quantum in se obtinet et ad prestitum hominis est. et damus uobis de ipsa hereditate de froia sesmiriz. quartam minus quintam et quintam de quinta. pro qua accepimus a uobis in pretio definito .XXII. modios. tantum recipere nobis placuit et de pretio pro dare penes uos nil remansit.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

facta carta uenditionis noto termino .VI. idus marcii. E. M. C. XXXªVIIII. Ego gunsaluus et ramirus et maria cum omnibus fratribus nostris hanc cartulam iussu nostro facta propriis manibus r ||| obor amus. Qui presentes fuerunt. sandus testis. petrus testis. pelagius testis. Petrus notuit.

(Livro Baio Ferrado de Grijó, fl. 77)

Diz este documento que Gonçalo, Ramiro e Maria, com seus irmãos, vendem por 22 módios a D. Soeiro Fromarigues e a sua mulher Elvira Nunes as suas porções e quinhões na vila de S. Donato e nas respectivas salinas, a quinta parte do moinho de S. Donato e uma parte da herdade de Froia Sesmires.

A exiguidade do preço, o número dos com-proprietários das partes vendidas (pelo menos 9) e a fracção destas (1/5 no moinho) mostram que a divisão se vinha operando há muito. Por outro lado, recompondo as parcelas, verifica-se que não era grande a vila de S. Donato na primitiva unidade, embora à propriedade rural andasse conjunta a de salinas que não ficariam próximas.

Não entrou neste contrato a ermida já existente em 922 e que deu o nome à vila. A referida nota do Livro Preto inclui-a nas que «andavam alienadas». Por venda, por usurpação? D. RODRIGO DA CUNHA, tratando, no seu Catálogo, do bispo do Porto D. João Peculiar, cita dum livro antiquíssimo do Cartório do Cabido «huã doaçaõ que o mesmo Bispo fez aos Frades, que viviaõ na Ermida de S. Christovaõ de Lafoês da Ordem de S. Bernardo, da Ermida de S. Donado, que estava na terra de Santa Maria, junto ao mar Oceano, pegado com a Villa de Cabanois, que hoje chamaõ Ovar. He sua data na Era 1176. no segundo ano de seu Pontificado: Reynando, e consentindo D. ,Affonso Princepe de Portugal filho do Conde D. Henrique, e da Raynha Tareja, e neto do grande Rey Affonso. Confirma a doaçaõ o mesmo Bispo D. Joaõ de cõsentimento dos seos Clerigos: e Pedro Rabaldis Arcediago da mesma Se do Porto.

Desta Ermida fez Couto el-Rey Dom Affonso Henríques a Joaõ Cerita Prior, e mais Frades de S. Christovaõ de Lafoês, / 25 / e lhe limitou os termos, e districtos della, e de sua herdade, que o Bispo D. Joaõ tinha dado aos Padres. He a data no mez de Outubro, Era de 1176. no qual tempo hera já Arcebispo de Braga o Bispo D. Joaõ, como se ve da confirmaçaõ da mesma escritura, em q se assigna arcebispo de Braga: foraõ testemunhas Egas Moniz, e outros senhores.

Destas doaçoens se ve como o Bispo D. Joaõ ordenou, e tratou, que se edificasse o Mosteyro de S. Cristovaõ de Lafoês, e lhe deu a Ermida de S. Donado, e terras della, para sustentaçaõ dos Religiosos...» (3)

Em 14 de Junho de 1341, D. Afonso IV deu em Lisboa uma carta de sentença a favor do bispo D. Vasco Martins, sobre a jurisdição do Bispo do Porto «nos coutos de Sam Doado de Cabanões e de Santo Tirso de Meinedo e de Sancta Maria de Campanhaã». Tendo-se procedido a inquirições, averiguou-se «que sam doado ha couto e que o Bispo por a dita sá Egreja do porto auya hi jurdiçom çiuel e que poynha hi seu juiz e seu moordomo e que o dito juiz ouuya os feitos ciuees dos moradores do dito couto e daua sentenças. E que apellauam do dito juiz para o Bispo. E que outro ssy prouaua que a jurdiçom do crime era mjnha» (do rei). Foi resolvido que assim continuasse (4).

Resumindo: em 922, o Conde Lucídio Guimarães doa a a ermida de S. Donato ao mosteiro de Crestuma; em 1138, D. João Peculiar faz doação dela e D. Afonso Henriques couta as suas terras aos frades de Lafões; em 1341, existe ainda o couto e está na posse do bispo do Porto, Não consta que S. Donato fosse entre estas datas freguesia independente, nem é fácil reconstituir os limites do seu couto, que talvez correspondessem aos da antiga vila.

Voltarei a ocupar-me da capela de S. Donato ao esboçar a história religiosa de Ovar, porque se me depararam no Arquivo Distrital do Porto os documentos utilizados por D. RODRIGO DA CUNHA, que importa incorporar neste trabalho. Entretanto, convirá talvez resolver o problema da identificação do seu santo  padroeiro.

Registam os agiológios vários santos com o nome de Donato, O autor das Memórias e Datas escolheu, entre eles, o que «foi monge e Bispo de Arécio», degolado por ordem de Juliano Apóstata a 7 de Agosto do ano de 362. O rev. P.e MANUEL LÍRIO nota, no entanto, que, «tendo esta capela o nome de S. Donato, nela se não encontre, nem nunca lá estivesse a imagem do santo bispo de Arécio», e recolhe uma opinião antiga, / 26 / segundo a qual lhe proviria o nome do facto de haver sido donato ou doado aquele lugar ao mosteiro de Crestuma, em 922.

Ora, na célebre carta do Cruzado Osberno sobre a conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, há um passo que nos dá talvez a chave do mistério. O texto latino desse documento foi reeditado pela C. A. da Câmara Municipal de Lisboa, em 1935, acompanhado da tradução portuguesa. Interessa-nos a seguinte referência ao território de entre Douro e Vouga, que vem na pág. 38 do volume:

 

«Habentur autem in continenti a Portugala usque ad insulam flumina et castra. Est Castrum quod dicitur Sanctae Mariae inter fluvium Doira et silvam quae dicitur medica in frigore; in cujus territorio requiescit beatus Donatus apostoli Jacobi discipulus; et post silvam fluvius Voga».

Na tradução:

«Ao longo do continente há, desde o Porto até esta ilha [Peniche], rios e castelos. Há o castelo chamado de Santa Maria (Feira), entre o rio Douro e um bosque, que dizem ser medicinal no inverno, e em cujo território repousa S. Donato, discípulo do Apóstolo S. Tiago; depois do bosque encontra-se o rio Vouga».

O tradutor confessa a sua dúvida quanto à identificação do território a que respeitam as palavras sublinhadas, e chega a supor que se trate da região de Lafões a cujas termas recorreu o próprio D. Afonso Henriques contra os males do seu reumatismo. Longe de esclarecer, mais parece complicar essa dúvida uma nota truncada que se lê no manuscrito, à margem de medica in frigore: «id est mei...»

O conhecimento das antiguidades locais permite afirmar com segurança que esse bosque medicinal (!) ficava na região de Albergaria-a-Velha, chamada em antigos documentos «Albergarie veteris de Meigonfrio». Parte dessa região foi coutada pela rainha D. Teresa, no ano de 1117, a Gonçalo Eriz, e os limites do couto são marcados «cum terram de Sancte Marie de una parte... et deinde de aliis partibus ad terminum de Vaga». A região era silvestre, porquanto havia nela veados, corças, gamos e ursos. Pela mercê do couto, D. Gonçalo colaboraria com D. Teresa na fundação duma albergaria: «et pro unam albergariam, quod inter me, et te ponamus in loco isto...» (J. P. RIBEIRO, Dissertações, tomo I, doc. n.º 36).

O monte que domina a região é chamado Mesão Frio em outros documentos antigos. Já no ano de 981, Gonçalo Mendes doava ao mosteiro de Lorvão uma propriedade «in uilla uocitata / 27 / paIos, secus ribulo uauga» e assinalava um dos termos desta vila «per montis meison frido» (Port. Mon. Hist., D. et Ch.,doc. n.º 132). Em 1182, Orraca Petri doa ao mosteiro de Grijó propriedades situadas entre Canelas e Fermelã, «subtus monte mansione frigida nuncupato in liture maris oceani Vauga flumine discurrente». No ano seguinte, Afonso Petri faz idêntica doação de propriedades do mesmo lugar, «subtus monte qui propter heremi magnitudinem vocatur mansio frigida, secos litus maris oceani et ostium, quo Vauga flumen intrat in mare» (Tombo do Mosteiro de Grijó, 3.º vol., fl. I e seg.).

As palavras do Cruzado Osberno entendem-se, assim, perfeitamente à letra: Castelo de Santa Maria entre o Douro e a selva chamada medica in frigore (nos outros doc. mansio frigida); e depois da selva o Rio Vouga. A nota à margem pode completar-se deste modo: id est mei[son frido].

Vejamos agora a referência a S. Donato. Diz o Cruzado que nesse território «requiescit beatus Donatus apostoli Jacobi discipulus». Mais adiante, na fala do arcebispo de Braga aos
muçulmanos de Lisboa, recorda entre os continuadores da pregação de S. Tiago: «Donato, Torquato, Secundo, Endaletio, Eufrasio, Tesiphonte, Victorio, Pelagio».

A única memória de S. Donato existente no território do Castro ou Castelo de Santa Maria (cujus refere-se evidentemente a Castrum) é, hoje como então, esta capela de Ovar. No século XII, estaria decerto ainda viva na tradição local a verdadeira identidade do santo e a circunstância de lá repousarem os seus restos mortais. Ligada esta tradição à que atribui a primeira fundação de igrejas na Península Hispânica a sete varões apostólicos, enviados por S. Pedro em tempos de Nero e cujos nomes são, com pequenas variantes, os memorados no discurso do arcebispo de Braga, teríamos na capela de S. Donato a sucessora dum pequenino templo coevo da primitiva pregação do Cristianismo e erecto porventura no local do martírio do seu padroeiro. Se é frágil este fio da tradição, lembremo-nos de que nenhuma cidade da Península tem documento mais seguro das suas origens. cristãs.

P.e MIGUEL A. DE OLIVEIRA
Continua na pág. 111 ►►►

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(1)  Ver: HERCULANO, História de Portugal Introdução; ALBERTO SAMPAIO, As Póvoas Maritimas; Mons. FERREIRA, Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga, tomo I, pág. 176 a 178; VITERBO, Elucidário, palavras Kemiso e Laudomanes. 

(2) O que está em parêntesis é de letra mais moderna. 

(3) Cat. dos Bispos do Porto, de D. RODRIÇO DA CUNHA, adicionado por A. CERQUEIRA PINTO; Porto 1742, 2.ª p., pág. 17.    

(4) Corpus Codicum, edit. pela Bib. Púb. Mun. do Porto, vol. I, pág, 79. Chancelaria de D. Afonso IV, liv. 4, fl, 71 V.

 

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