O
Foral manuelino de Esgueira, vila de que era donatário o Mosteiro de
Lorvão, guarda-se hoje no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Sala B,
estante 54, com outras espécies do cartório deste
Mosteiro, que aqui deram entrada em 1879, e entre as quais
tem o n.º 7.
É um códice membranáceo, cujas dimensões exteriores são de 268x190 mm.
A encadernação é inteira de carneira de cor castanha escura, com três
nervos na lombada (correspondentes a outros tantos fios da
encadernação), e com lavores a seco − uma espécie
de silvado, formando cercadura rectangular e com duas diagonais que se cruzam em X, tudo acompanhado, de ambos os lados, de filetes
rectilíneos; tem, em cada uma das pastas, 5 pregos de latão de secção
hexagonal, postos em aspa, e 2 fechos de latão, um dos quais já falto do
colchete. As pastas são de madeira de carvalho.
Servem de folhas custodes duas fIs. de pergaminho, escritas em 2 colunas,
regradas horizontal e verticalmente a plumbum, que contém fragmentos dum
texto jurídico (ao que parece), escrito em letra cursiva dos sécs. XIV-XV.
São as seguintes as dimensões interiores: da
fol. 265x183;
da mancha gráfica, 170x114 mm.
O códice compõe-se de 4 cadernos, de 2, 8, 6 e 2 fIs., respectivamente,
das quais falta a primeira do último caderno; tem, pois, actualmente, 17
fIs. ou 34 págs. As fIs. 1 e 2 (esta contém a Tauoada) não estão
numeradas, bem como as 3 finais;
as outras estão foliadas de 1 a 12, ao alto das págs., recto, com
a numeração então usada e a que JOÃO PEDRO RIBEIRO chama romano-lusitana.
(1)
O pergaminho é «da terra», o que é reconhecível pelo seu preparo algo
imperfeito e pelo contraste com o dos livros da
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272 /
Leitura Nova, da Torre do Tombo, muito mais branco, mais igual e que era
da Flandres.
Escrito em uma só coluna, regrado a tinta horizontal e verticalmente,
conserva ainda muito visíveis os picos do punctorium, tanto na
margem direita (a exterior) como em cima e em baixo; as fls. estão
dispostas carnaz com carnaz e flor com flor.
Letras iniciais filigranadas, alternadamente azuis e vermelhas;
igualmente os caldeirões; cotas marginais a tinta preta e
vermelha.
A
1.ª fl. do texto é, como de costume, nesta espécie de monumentos,
iluminada.
Tem o escudo das armas reais, sobrepujado de coroa aberta, incluso em um
D inicial iluminado a carmesim, verde, azul, vermelho, prata e ouro;
nestas mesmas cores, a tarja rectangular que contorna inferior e
lateralmente o texto e que é de composição vegetal estilizada. A isto se
limita o trabalho de iluminura, que, como o códice, está bem conservado,
embora com picos de traça na pasta da frente, algo sujo nos cantos
inferiores e falta do selo pendente, de chumbo, do qual apenas resta um
fragmento de trança de seda vermelha e branca, de que pendia o mesmo.
Nas três págs. finais, em grande parte ainda por letras do século XVI,
cursivas, várias probationes pennae, algumas com interesse, como uns
alfabetos cursivos, completos, da época, e o seguinte: Monta setecentos
e cincoenta e nove Reaes, preço ou emolumentos do foral.
Como todos os forais manuelinos, tem interesse principalmente para a
história fiscal e económica, embora, também neste, para a da vida local pelas referências a marinhas, lezírias,
baldios, etc. O que lhe dá ainda mais interesse é o documento que nele
foi exarado em 2 de Setembro de 1516, original e autógrafo: o seu termo
de recebimento e aceitação, em câmara.
No seu pouco legível cursivo dá-nos
ele conta de várias
personalidades oficiais, ligadas à vida local, e cujos nomes seriam, por certo, difíceis de averiguar em outro documento com o carácter
de autenticidade deste.
Aí vemos os juízes do crime e do cível, respectivamente
João Giraldes e André Anes; os vereadores Pero Alvares e
João Domingues (?); os oficiais do ano transacto, Gonçalo Coelho, João Gil o moço, João Gil o velho e André Fernandes; o recebedor
do concelho, João Pires; o ouvidor da Abadessa de Lorvão e um seu
feitor, respectivamente Gonçalo Coelho e Afonso Fernandes. Foi portador
dos exemplares do foral Braz
de Sequeira, escudeiro, morador em Aveiro, que deveria receber os
emolumentos na importância de 759 reais.
Além
destes, figuram ainda outros nomes, decerto homens bons do lugar,
e o tabelião e escrivão da câmara Lapa Fernandes.
/
273 /
[Vol. 1 - N.º
4 -1935]
O presente exemplar, pertencente, como ficou dito, ao Mosteiro de Lorvão
como donatário da terra, é um dos dois originais
(2) que dele se
tiraram. O outro, o da «camara do lugar desgueyra», como no Foral se lê,
deveria existir no cartório da mesma (incorporado no da Câmara de
Aveiro, em virtude da extinção do concelho de Esgueira, nos termos da
divisão administrativa, aprovada por Decreto de 6 de Novembro de 1836) e
tem de considerar-se perdido actualmente. Com efeito,
JOÃO PEDRO
RIBEIRO, ao mencionar aquele cartório
(3) entre os das câmaras que
visitou e estudou, é de crer que não deixaria de aludir, embora em
rápida referência, a este monumento, se ele porventura então
existisse. Se voluntária, ou involuntariamente o omitiu, é certo que ele não se conserva hoje na Câmara de Aveiro, como teve a bondade de
me informar um dos Directores desta Revista, o Sr. Dr. A. G. da Rocha
Madahil. Deveria ser um duplicado do presente exemplar mas teria o
interesse, que falta a este, de nele estarem exarados os vistos das sucessivas correições,
como é usual nestes casos.
O registo
deste Foral está no livro de Foraes Novos da
Estremadura, fis. 212 v.º a 213 v.º (Leitura Nova, 1.º 47) − simples
registo, e não original, como já ficou dito. Do cotejo que fizemos entre
ambos apurámos as numerosas e importantes variantes que damos em notas infra-paginais.
Entre original e registo (autêntico e coevo,
este) deveria existir a
mais absoluta conformidade ou, quando muito, simples variantes
gráficas que tão vulgares eram então. Tal se não dá, porém, e, longe de
conferirem inteiramente, as variantes são importantíssimas, já por
atingirem a ordem das matérias, já por se notarem isenções fiscais de
certos produtos que no original são tributados, já, enfim, por esta
tributação ser frequentemente muito mais elevada no original do que no registo. Basta percorrer as
ditas variantes e aproximá-las do texto para se comprovar isto.
Tão estranho facto faz pensar involuntariamente que estejamos em face
de um caso de fraude ou falsificação, tanto mais que certos precedentes
de imoralidade, ocorridos na reforma manuelina dos forais do reino (ca.
1495-1520), pelo menos aparentemente depõem a favor da suposição
(4).
Tal suspeita, porém, para logo se desvanece
ao procedermos
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274 / a igual conferência
entre os registos e os originais de vários outros forais novos.
É assim que, ainda há pouco, cotejando nós, a pedido do Sr. Dr. Rocha
Madahil, o texto do foral de Aveiro, publicado
neste Arquivo, págs. 69 e segs., que é o duma cópia de 1811, e não o do
original (pois este crê-se também perdido) com o registo oficial e coevo
da Leitura Nova (Forais novos da Estremadura, fIs. 207 v.º a 212
v.º),
depararam-se-nos por igual numerosíssimas e substanciais variantes da
natureza e importância
das que acabamos de referir. Muitas delas − no original de onde fôra
extraída a certidão − apresentavam o mesmo carácter, isto é, os impostos
foram agravados, por vezes até ao dobro.
Posteriormente, fizemos a comparação dos textos originais e dos registos
de vários outros forais de diversas e distantes localidades do país;
notámos as mesmas discrepâncias e com a mesma natureza de aumento de
direitos de várias espécies. Isto basta para excluir toda a ideia de
fraude ou viciação de textos.
Nem sequer a péssima e confusa sistematização adoptada na reforma dos
forais, reforma que deu causa a tantas e tão fundadas queixas dos povos
e foi origem das extorsões e exacções de que estes foram vítimas,
nem
sequer a incúria e ávido comodismo de Fernão de Pina e dos seus
colaboradores (5) são suficientes para tal explicar. De facto, embora se
tivesse enveredado pelo caminho aparentemente o mais curto mas realmente
o mais longo e o mais caro... para os que, mais tarde, haveriam de o
pagar; embora, nos registos da Leitura Nova (nos vários Livros de Foraes
Novos) se usasse do processo de remeter duns forais para outros, isto
é,
de mandar aplicar algumas
disposições do foral de uma terra a outra ou outras
(6), limitando-se a preceituá-lo sumariamente a fim de evitar o incómodo e
perda de tempo de transcrever por 4, 5, 6 e mais vezes os mesmos textos
legais, o que, como bem se compreende, não
poderia deixar de ser (7) fonte de dúvidas
e questões graves.
/
275 / Embora tudo assim seja, não bastam tais factos para explicar tão
numerosas, tão importantes e tão frequentes alterações introduzidas nos exemplares dos forais entregues às Câmaras e
aos donatários de tantas terras do país.
Não será, portanto, temerário avançar a conjectura de que entre a
redacção das minutas e a dos originais ou entre o registo das minutas
dos forais nos competentes livros e a redacção dos originais, qualquer
medida legal tivesse aumentado esses impostos ou alterado, relativamente
a tais ou tais terras, os tributos primeiramente lançados.
Sem pretendermos resolver
este interessante problema, limitamo-nos a levantá-lo em face de vários forais onde
ele se nos deparou − o que, salvo erro, ainda não fora notado. Só, todavia, o
cotejo de todos ou quase todos os originais existentes, ainda apesar de
tudo − em relativamente elevado número, com os registos respectivos, e a
pesquisa de disposições legais correlativas, poderão esclarecer satisfatoriamente o caso.
A letra do foral, toda do mesmo punho, é excelente minúscula assentada,
gótico-humanística, da mão do mesmo escriba que redigiu o registo
respectivo no livro dos Foraes Novos.
Observam-se relativamente poucas abreviaturas, além do frequente emprego
do til, a que mais adiante nos referiremos, e do da conjunção e. Não
raro a mesma palavra aparece abreviada e por extenso (v. g. moest.ro
e moesteiro, vinho e v.º).
O sistema braquigráfico é o tradicional. Assim, além de
Vogais sobrepostas com os valores usuais (a= −ra; a= −ar; i= −ui; 0= −ro,
etc.), encontram-se repetidamente os sinais especiais de 9= −com, −con (v. g. em
conthya, comprar, contrato,
comprir, conselho, com) assente na linha; 9= −us, os, s, acima da linha
(v. g. direitos, gados, dous, escudeiros, moesteiros, os) e mais do que
todos, e frequentíssimo, o conhecido sinal tironiano representativo da
conjunção e, semelhante a um 2 invertido e, por vezes, apenas a um
pequeno ângulo recto. Aparecem ainda os sinais de −er
e −ur, ambos acima
da linha, e este sobreposto ao u (v. g. jurdiçam).(8)
É corrente o emprego do R com o valor de r geminado
(v. g. aRecadar, aRoido, aRovas).
A pontuação, muito escassa, e limitada ao ponto final.
De sinais diacríticos, além do til, figuram traços sobre os
ii geminados ou sobre ij mas já não sobre o y. O til, além do seu
emprego com valor geral, o que é corrente, aparece com
valor de nasal (v. g. nã, vëder, somëte, cõta) e, por vezes,
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276 /
meramente parasitário. A cedilha já aparece quase sempre, embora muitas
vezes antes de e (v. g. açerqua, çeleiro, reçebera), e os casos em que a
omitiram são poucos (v. g. sentencas, condicam).
As abreviaturas são todas correntes e a sua forma nada apresenta de
particular. Assim: Rs=Reaes; sñor=senhor; ds=deus,: vº=vinho;
sñrio=senhorio; testas=testemunhas; sncas=sentenças; etc.
Na publicação do texto seguimos o método diplomático,
isto é, desenvolvemos as abreviaturas, imprimindo em itálico a letra ou
letras omitidas pelo calígrafo, mas respeitando escrupulosamente o
texto. Todavia, como é prática consagrada, separamos as palavras
indevidamente ligadas e unimos as indevidamente separadas, bem como corrigimos os lapsos
evidentes (primeiramenta, moior, pequene,
conherce, e poucos mais); mantivemos as formas hüa, algüa e nenhüa e,
finalmente,
desenvolvemos as nasais de harmonia com o sistema do escriba quando
grafava por extenso as mesmas palavras. Assim: nã= nam; perderã
perderam (futuro), descaminharã=descaminharam (idem), encorrerã=encorreram (idem), etc. As cotas marginais, em
obediência ao sistema adoptado nesta Revista, foram inseridas no texto
como epígrafes de capítulos, o que é perfeitamente regular porquanto o
escriba ora usava um ora outro processo e, regra geral, só empregava as
cotas marginais quando o espaço lhe faltava.
Lisboa, 22 de Dezembro de
1935
JOÃO MARTINS DA SILVA MARQUES
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________________________________
(1) − J. P. RIBEIRO,
Dissertações Cronológicas 1, lI, pág. 125.
(2) − Dois, e não três, apesar do que no final do mesmo se lê. Para a
Torre do Tombo não se tiraram nunca originais alguns, mas apenas lá existiram e existem os registos (Leitura Nova, livros 43 a 47=
Forais Novos
de
Entre Douro e Minho; idem, de Traz-os-Montes; idem, de Entre Tejo e Odiana; idem, da
Beira; idem, da Estremadura).
(3) − «Os Cartorios das Camaras de Valença do Minho, Montemor o Vellho, Vila da Feira,
Esgueira, e Penafiel, nada conservão que não
seja de
tempos proximos». V. Observações historicas e criticas (...) da
diplomatica
portuguesa, 1798; pág. 13.
(4) − Sirva
de exemplo o relatado por JOÃO PEDRO RIBEIRO acerca dos
maninhos que, pelos forais de Tibães e Vimieiro, foram declarados
pertença do donatário; ora o donatário era precisamente o próprio Fernão
de Pina, abade comendatário daqueles mosteiros... (V. RIBEIRO, Reflexões Históricas,
1835-6, l, 47 e lI, 195).
Acresce que estes exemplos não são os únicos, porquanto além do do
mosteiro de St.ª Clara de Vila do Conde, apontado por J. P. RIBEIRO, há
pelo menos o do convento de Tomar e outros que porventura não tenhamos
presentes.
(5) − Sucessiva ou simultaneamente o chanceler-mor do reino,
D.or Rui
Boto, o Licenciado Rui da Grã, o D.or Diogo Pinheiro, João Pires das Cubrituras e o
D.or João Façanha, desembargador. V. RIBEIRO (J. P.) − Dissertação (...) sobre a reforma dos foraes, 1812, pag. 8 e segs.
(6) − Como é o caso dos forais de Aveiro e Esgueira nos quais se mandam
aplicar várias disposições do foral de Miranda-de-a-par-de-Podentes.
(7) − Tanto assim que, a
fl. 283 do livro de Foraes Novos da Estremadura,
se exarou uma extensa apostila, de letra do guarda-mor Manuel da Maia,
explicando minuciosamente como, ao passarem-se as certidões do foral de
Aveiro, neIe se deveriam inserir as disposições do Foral de
Miranda-de-a-par-de-Podentes, aplicáveis por força do expressamente
disposto no mesmo foral de Aveiro.
(8) −
E ainda as letras b, I, s e v com um pequeno traço cortando a haste e
com o valor, respectivamente, de -be, -le, - se e -ve, v. g. em levar,
ser, saber, verde, etc.
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