João Martins da Silva Marques, Foral de Esgueira (1515), Vol. 1, pp. 271-276.

FORAL DE ESGUEIRA

(1515)

O Foral manuelino de Esgueira, vila de que era donatário o Mosteiro de Lorvão, guarda-se hoje no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Sala B, estante 54, com outras espécies do cartório deste Mosteiro, que aqui deram entrada em 1879, e entre as quais tem o n.º 7.

É um códice membranáceo, cujas dimensões exteriores são de 268x190 mm.

A encadernação é inteira de carneira de cor castanha escura, com três nervos na lombada (correspondentes a outros tantos fios da encadernação), e com lavores a seco − uma espécie de silvado, formando cercadura rectangular e com duas diagonais que se cruzam em X, tudo acompanhado, de ambos os lados, de filetes rectilíneos; tem, em cada uma das pastas, 5 pregos de latão de secção hexagonal, postos em aspa, e 2 fechos de latão, um dos quais já falto do colchete. As pastas são de madeira de carvalho.

Servem de folhas custodes duas fIs. de pergaminho, escritas em 2 colunas, regradas horizontal e verticalmente a plumbum, que contém fragmentos dum texto jurídico (ao que parece), escrito em letra cursiva dos sécs. XIV-XV.

São as seguintes as dimensões interiores: da fol. 265x183; da mancha gráfica, 170x114 mm.

O códice compõe-se de 4 cadernos, de 2, 8, 6 e 2 fIs., respectivamente, das quais falta a primeira do último caderno; tem, pois, actualmente, 17 fIs. ou 34 págs. As fIs. 1 e 2 (esta contém a Tauoada) não estão numeradas, bem como as 3 finais; as outras estão foliadas de 1 a 12, ao alto das págs., recto, com a numeração então usada e a que JOÃO PEDRO RIBEIRO chama romano-lusitana. (1)

O pergaminho é «da terra», o que é reconhecível pelo seu preparo algo imperfeito e pelo contraste com o dos livros da / 272 / Leitura Nova, da Torre do Tombo, muito mais branco, mais igual e que era da Flandres.

Escrito em uma só coluna, regrado a tinta horizontal e verticalmente, conserva ainda muito visíveis os picos do punctorium, tanto na margem direita (a exterior) como em cima e em baixo; as fls. estão dispostas carnaz com carnaz e flor com flor.

Letras iniciais filigranadas, alternadamente azuis e vermelhas; igualmente os caldeirões; cotas marginais a tinta preta e vermelha.

A 1.ª fl. do texto é, como de costume, nesta espécie de monumentos, iluminada.

Tem o escudo das armas reais, sobrepujado de coroa aberta, incluso em um D inicial iluminado a carmesim, verde, azul, vermelho, prata e ouro; nestas mesmas cores, a tarja rectangular que contorna inferior e lateralmente o texto e que é de composição vegetal estilizada. A isto se limita o trabalho de iluminura, que, como o códice, está bem conservado, embora com picos de traça na pasta da frente, algo sujo nos cantos inferiores e falta do selo pendente, de chumbo, do qual apenas resta um fragmento de trança de seda vermelha e branca, de que pendia o mesmo.

Nas três págs. finais, em grande parte ainda por letras do século XVI, cursivas, várias probationes pennae, algumas com interesse, como uns alfabetos cursivos, completos, da época, e o seguinte: Monta setecentos e cincoenta e nove Reaes, preço ou emolumentos do foral.

Como todos os forais manuelinos, tem interesse principalmente para a história fiscal e económica, embora, também neste, para a da vida local pelas referências a marinhas, lezírias, baldios, etc. O que lhe dá ainda mais interesse é o documento que nele foi exarado em 2 de Setembro de 1516, original e autógrafo: o seu termo de recebimento e aceitação, em câmara.

No seu pouco legível cursivo dá-nos ele conta de várias personalidades oficiais, ligadas à vida local, e cujos nomes seriam, por certo, difíceis de averiguar em outro documento com o carácter de autenticidade deste.

Aí vemos os juízes do crime e do cível, respectivamente João Giraldes e André Anes; os vereadores Pero Alvares e João Domingues (?); os oficiais do ano transacto, Gonçalo Coelho, João Gil o moço, João Gil o velho e André Fernandes; o recebedor do concelho, João Pires; o ouvidor da Abadessa de Lorvão e um seu feitor, respectivamente Gonçalo Coelho e Afonso Fernandes. Foi portador dos exemplares do foral Braz de Sequeira, escudeiro, morador em Aveiro, que deveria receber os emolumentos na importância de 759 reais.

Além destes, figuram ainda outros nomes, decerto homens bons do lugar, e o tabelião e escrivão da câmara Lapa Fernandes.

/ 273 /   [Vol. 1 - N.º 4 -1935] 

O presente exemplar, pertencente, como ficou dito, ao Mosteiro de Lorvão como donatário da terra, é um dos dois originais (2) que dele se tiraram. O outro, o da «camara do lugar desgueyra», como no Foral se lê, deveria existir no cartório da mesma (incorporado no da Câmara de Aveiro, em virtude da extinção do concelho de Esgueira, nos termos da divisão administrativa, aprovada por Decreto de 6 de Novembro de 1836) e tem de considerar-se perdido actualmente. Com efeito, JOÃO PEDRO RIBEIRO, ao mencionar aquele cartório (3) entre os das câmaras que visitou e estudou, é de crer que não deixaria de aludir, embora em rápida referência, a este monumento, se ele porventura então existisse. Se voluntária, ou involuntariamente o omitiu, é certo que ele não se conserva hoje na Câmara de Aveiro, como teve a bondade de me informar um dos Directores desta Revista, o Sr. Dr. A. G. da Rocha Madahil. Deveria ser um duplicado do presente exemplar mas teria o interesse, que falta a este, de nele estarem exarados os vistos das sucessivas correições, como é usual nestes casos.

O registo deste Foral está no livro de Foraes Novos da Estremadura, fis. 212 v.º a 213 v.º (Leitura Nova, 1.º 47) − simples registo, e não original, como já ficou dito. Do cotejo que fizemos entre ambos apurámos as numerosas e importantes variantes que damos em notas infra-paginais.

Entre original e registo (autêntico e coevo, este) deveria existir a mais absoluta conformidade ou, quando muito, simples variantes gráficas que tão vulgares eram então. Tal se não dá, porém, e, longe de conferirem inteiramente, as variantes são importantíssimas, já por atingirem a ordem das matérias, já por se notarem isenções fiscais de certos produtos que no original são tributados, já, enfim, por esta tributação ser frequentemente muito mais elevada no original do que no registo. Basta percorrer as ditas variantes e aproximá-las do texto para se comprovar isto.

Tão estranho facto faz pensar involuntariamente que estejamos em face de um caso de fraude ou falsificação, tanto mais que certos precedentes de imoralidade, ocorridos na reforma manuelina dos forais do reino (ca. 1495-1520), pelo menos aparentemente depõem a favor da suposição (4).

Tal suspeita, porém, para logo se desvanece ao procedermos / 274 / a igual conferência entre os registos e os originais de vários outros forais novos.

É assim que, ainda há pouco, cotejando nós, a pedido do Sr. Dr. Rocha Madahil, o texto do foral de Aveiro, publicado neste Arquivo, págs. 69 e segs., que é o duma cópia de 1811, e não o do original (pois este crê-se também perdido) com o registo oficial e coevo da Leitura Nova (Forais novos da Estremadura, fIs. 207 v.º a 212 v.º), depararam-se-nos por igual numerosíssimas e substanciais variantes da natureza e importância das que acabamos de referir. Muitas delas − no original de onde fôra extraída a certidão − apresentavam o mesmo carácter, isto é, os impostos foram agravados, por vezes até ao dobro.

Posteriormente, fizemos a comparação dos textos originais e dos registos de vários outros forais de diversas e distantes localidades do país; notámos as mesmas discrepâncias e com a mesma natureza de aumento de direitos de várias espécies. Isto basta para excluir toda a ideia de fraude ou viciação de textos.

Nem sequer a péssima e confusa sistematização adoptada na reforma dos forais, reforma que deu causa a tantas e tão fundadas queixas dos povos e foi origem das extorsões e exacções de que estes foram vítimas, nem sequer a incúria e ávido comodismo de Fernão de Pina e dos seus colaboradores (5) são suficientes para tal explicar. De facto, embora se tivesse enveredado pelo caminho aparentemente o mais curto mas realmente o mais longo e o mais caro... para os que, mais tarde, haveriam de o pagar; embora, nos registos da Leitura Nova (nos vários Livros de Foraes Novos) se usasse do processo de remeter duns forais para outros, isto é, de mandar aplicar algumas disposições do foral de uma terra a outra ou outras (6), limitando-se a preceituá-lo sumariamente a fim de evitar o incómodo e perda de tempo de transcrever por 4, 5, 6 e mais vezes os mesmos textos legais, o que, como bem se compreende, não poderia deixar de ser (7) fonte de dúvidas e questões graves. / 275 / Embora tudo assim seja, não bastam tais factos para explicar tão numerosas, tão importantes e tão frequentes alterações introduzidas nos exemplares dos forais entregues às Câmaras e aos donatários de tantas terras do país.

Não será, portanto, temerário avançar a conjectura de que entre a redacção das minutas e a dos originais ou entre o registo das minutas dos forais nos competentes livros e a redacção dos originais, qualquer medida legal tivesse aumentado esses impostos ou alterado, relativamente a tais ou tais terras, os tributos primeiramente lançados.

Sem pretendermos resolver este interessante problema, limitamo-nos a levantá-lo em face de vários forais onde ele se nos deparou − o que, salvo erro, ainda não fora notado. Só, todavia, o cotejo de todos ou quase todos os originais existentes, ainda apesar de tudo − em relativamente elevado número, com os registos respectivos, e a pesquisa de disposições legais correlativas, poderão esclarecer satisfatoriamente o caso.

A letra do foral, toda do mesmo punho, é excelente minúscula assentada, gótico-humanística, da mão do mesmo escriba que redigiu o registo respectivo no livro dos Foraes Novos.

Observam-se relativamente poucas abreviaturas, além do frequente emprego do til, a que mais adiante nos referiremos, e do da conjunção e. Não raro a mesma palavra aparece abreviada e por extenso (v. g. moest.ro e moesteiro, vinho e v.º).

O sistema braquigráfico é o tradicional. Assim, além de Vogais sobrepostas com os valores usuais (a= −ra; a= −ar; i= −ui; 0= −ro, etc.), encontram-se repetidamente os sinais especiais de 9= −com, −con (v. g. em conthya, comprar, contrato, comprir, conselho, com) assente na linha; 9= −us, os, s, acima da linha (v. g. direitos, gados, dous, escudeiros, moesteiros, os) e mais do que todos, e frequentíssimo, o conhecido sinal tironiano representativo da conjunção e, semelhante a um 2 invertido e, por vezes, apenas a um pequeno ângulo recto. Aparecem ainda os sinais de −er e −ur, ambos acima da linha, e este sobreposto ao u (v. g. jurdiçam).(8)
É corrente o emprego do R com o valor de r geminado (v. g. aRecadar, aRoido, aRovas).

A pontuação, muito escassa, e limitada ao ponto final.

De sinais diacríticos, além do til, figuram traços sobre os ii geminados ou sobre ij mas já não sobre o y. O til, além do seu emprego com valor geral, o que é corrente, aparece com valor de nasal (v. g. nã, vëder, somëte, cõta) e, por vezes, / 276 / meramente parasitário. A cedilha já aparece quase sempre, embora muitas vezes antes de e (v. g. açerqua, çeleiro, reçebera), e os casos em que a omitiram são poucos (v. g. sentencas, condicam).

As abreviaturas são todas correntes e a sua forma nada apresenta de particular. Assim: Rs=Reaes; sñor=senhor; ds=deus,: vº=vinho; sñrio=senhorio; testas=testemunhas; sncas=sentenças; etc.

Na publicação do texto seguimos o método diplomático, isto é, desenvolvemos as abreviaturas, imprimindo em itálico a letra ou letras omitidas pelo calígrafo, mas respeitando escrupulosamente o texto. Todavia, como é prática consagrada, separamos as palavras indevidamente ligadas e unimos as indevidamente separadas, bem como corrigimos os lapsos evidentes (primeiramenta, moior, pequene, conherce, e poucos mais); mantivemos as formas hüa, algüa e nenhüa e, finalmente, desenvolvemos as nasais de harmonia com o sistema do escriba quando grafava por extenso as mesmas palavras. Assim: nã= nam; perderã perderam (futuro), descaminharã=descaminharam (idem), encorrerã=encorreram (idem), etc. As cotas marginais, em obediência ao sistema adoptado nesta Revista, foram inseridas no texto como epígrafes de capítulos, o que é perfeitamente regular porquanto o escriba ora usava um ora outro processo e, regra geral, só empregava as cotas marginais quando o espaço lhe faltava.

 

Lisboa, 22 de Dezembro de 1935

JOÃO MARTINS DA SILVA MARQUES

________________________________

(1)J. P. RIBEIRO, Dissertações Cronológicas 1, lI, pág. 125. 

(2)Dois, e não três, apesar do que no final do mesmo se lê. Para a Torre do Tombo não se tiraram nunca originais alguns, mas apenas lá existiram e existem os registos (Leitura Nova, livros 43 a 47= Forais Novos de Entre Douro e Minho; idem, de Traz-os-Montes; idem, de Entre Tejo e Odiana; idem, da Beira; idem, da Estremadura).  

(3)«Os Cartorios das Camaras de Valença do Minho, Montemor o Vellho, Vila da Feira, Esgueira, e Penafiel, nada conservão que não seja de tempos proximos». V. Observações historicas e criticas (...) da diplomatica portuguesa, 1798; pág. 13.   

(4)Sirva de exemplo o relatado por JOÃO PEDRO RIBEIRO acerca dos maninhos que, pelos forais de Tibães e Vimieiro, foram declarados pertença do donatário; ora o donatário era precisamente o próprio Fernão de Pina, abade comendatário daqueles mosteiros... (V. RIBEIRO, Reflexões Históricas, 1835-6, l, 47 e lI, 195).
Acresce que estes exemplos não são os únicos, porquanto além do do mosteiro de St.ª Clara de Vila do Conde, apontado por J. P. RIBEIRO, há pelo menos o do convento de Tomar e outros que porventura não tenhamos presentes.
   

(5)Sucessiva ou simultaneamente o chanceler-mor do reino, D.or Rui Boto, o Licenciado Rui da Grã, o D.or Diogo Pinheiro, João Pires das Cubrituras e o D.or João Façanha, desembargador. V. RIBEIRO (J. P.) − Dissertação (...) sobre a reforma dos foraes, 1812, pag. 8 e segs.    

(6)Como é o caso dos forais de Aveiro e Esgueira nos quais se mandam aplicar várias disposições do foral de Miranda-de-a-par-de-Podentes.

(7)Tanto assim que, a fl. 283 do livro de Foraes Novos da Estremadura, se exarou uma extensa apostila, de letra do guarda-mor Manuel da Maia, explicando minuciosamente como, ao passarem-se as certidões do foral de Aveiro, neIe se deveriam inserir as disposições do Foral de Miranda-de-a-par-de-Podentes, aplicáveis por força do expressamente disposto no mesmo foral de Aveiro.   

(8) E ainda as letras b, I, s e v com um pequeno traço cortando a haste e com o valor, respectivamente, de -be, -le, - se e -ve, v. g. em levar, ser, saber, verde, etc.   

 

Página anterior Índice Página seguinte