Alberto Souto, Geologia do distrito de Aveiro, Vol. 1, pp. 265-270.

GEOLOGIA DO DISTRITO DE AVEIRO

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II

Ainda como introdução, seja-me permitido tratar das relações que possam existir entre a geologia, a região e o distrito, isto é, versar, ligeiramente embora, este tema: a geologia e a questão distrital e administrativa.

É lícito perguntar se existe realmente uma geologia do distrito de Aveiro, o que equivale a inquirir se a geologia foi levada em conta na divisão do país em distritos e se, portanto, o distrito de Aveiro se acomodou de alguma forma a uma particularidade geológica característica do espaço que lhe foi assinalado.

O que é que deve entender-se por geologia do distrito de Aveiro?

Vamos ver, mas cumpre analisar previamente a questão dos distritos, que tem como desdobramento − a questão provincial, problemas de natureza política visto que interessam à divisão administrativa do país...

O distrito de Aveiro é, como se sabe, uma circunscrição administrativa. Todas as circunscrições desta natureza são convencionais, mais ou menos arbitrárias, mais ou menos variáveis segundo a evolução dos arranjos populacionais e dos conceitos fundamentais da política interior. O distrito de Aveiro não podia deixar de tornar-se discutível no detalhe dos seus limites, isto é, no seu contorno, na sua periferia, como sucede com todas as divisões internas das nações organizadas, divisões essas necessárias, convenientes ou cómodas para efeitos da sua administração política e civil.

É o caso do concelho de Mira que lhe deveria pertencer, talvez mesmo do de Cantanhede; é o caso de Castelo de Paiva que, devemos confessá-lo, ficaria talvez melhor no distrito do Porto.

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Porém, o que é facto é que o distrito de Aveiro foi estabelecido com impressionante correspondência à parte principal de um compartimento geográfico distinto e marcante no país: o da região, exposta ao mar e drenada para a Ria, situada a oeste das montanhas e planaltos da Beira Alta, entre o Douro e  o Mondego e que forma o seu pendor, pouco mais ou menos entre o paralelo 41 de latitude norte que marca a zona de forte atracção para o Porto, e as elevações do Buçaco e Cantanhede, região essa onde desde remotíssimos tempos a população se fixou em alta densidade.

Se estas afirmações, muitas vezes por mim repetidas durante o debate sobre as vantagens e inconvenientes de uma nova divisão política e administrativa baseada na criação de províncias, vai de encontro a opiniões preconcebidas ou apenas emitidas em contrário, não é por espírito de renovar e alimentar polémicas, praticamente inúteis, cientificamente detestáveis: é porque correspondem a verdades absolutas e a realidades que, no fundo, são incontroversas.

De resto é bem conhecida já a minha arreigada convicção acerca da questão dos distritos e bem conhecido foi o combate que pelejei contra a lunática inovação das províncias administrativas não menos convencionais e arbitrárias que os distritos quando é certo que estes se tinham arreigado durante um século no qual se procedeu à organização de um país que vivia até aí numa verdadeira anarquia de jurisdições e magistraturas.

Seja-me relevado o parêntesis, mas a verdade é que todas as situações e todas as épocas de transformação política têm os seus ideólogos e sonhadores, fabricantes de fantasias, elixires e quimeras que transplantadas para a prática esbarram com as realidades e se diluem ao contacto do senso comum. Teve muitos desses inventores o regímen liberal, muitos teve também o regímen republicano-democrático, não podia deixar de os ter a corrente integralista que informou a república corporativa, neste ponto tocando raias com a própria esquerda da renovação democrática. Para se atacar a obra do constitucionalismo liberal  buscaram-se todos os pretextos. A divisão por distritos foi um dos menos felizes.

O programa republicano-histórico tivera já idêntica veleidade. Mas a prudência da Constituinte de 1911 soube corrigir a fantasia federalista do programa histórico. Os distritos. foram conservados com aprazimento dos povos e contento da nação inteira. A constituição corporativa quis transigir com as duas correntes e criou um amálgama: distritos sem função e províncias sem viabilidade, amálgama esse destinado fatalmente a um fracasso que convinha evitar ou a uma correcção que não devia ter demora.

A divisão por distritos é uma divisão inteligente; e pode dizer-se, até, que foi originariamente indicada pela população e, / 267 / depois de surpreendida e observada pelo legislador, sancionada e regulada pela lei.

Foi efectivamente a população, o factor humano, tão de considerar no conceito antropogeográfico moderno e essencial em qualquer arranjo de circunscrições políticas de uma nação, quem fez de certos aglomerados urbanos as suas cidades.

As cidades tradicionais portuguesas estão distribuídas no país com uma regularidade impressionante. Essa regularidade foi afinal a base bem sensata da divisão por distritos, harmónica com o fenómeno que fez de cada cidade a verdadeira capital de uma certa porção de território onde se congregaram de cem a trezentos mil habitantes.

A província perdera todo o seu velho, vago e impreciso significado; por isso a província das Beiras, a que o movimento de congregação expresso nos Congressos Beirões tem dado recentemente certa consciência e unidade, que jamais ela sentira, foi por mim considerada e definida no Congresso da Figueira da Foz em 1932 como uma federação amigável dos cinco distritos das Beiras, mas nada mais.

Se se quebrar essa amizade que começou a alicerçar-se em 1921 no Congresso de Viseu, a província das Beiras desaparecerá porque nada é como organização.

Ora, desde que me propus falar na geologia do distrito, é lícito inquirir de entrada se a ideia distrital nos pode influenciar a ponto de querermos que haja uma geologia tão própria do distrito de Aveiro que só por si o caracterize e justifique ou, ainda, se supomos ser admissível isolar-se a geologia de um distrito da geologia dos distritos confinantes ou se se pretende forçar a geologia a demonstrar a minha tese acerca das circunscrições administrativas de Portugal.

Já em um dos artigos da Independência de Águeda sobre os aspectos geográficos e geológicos desse concelho eu tive ocasião de dizer, há tempos, que a divisão administrativa não pode confinar de uma forma exacta qualquer estudo sobre a terra ou sobre qualquer divisão natural do território. Não é menos verdadeira a recíproca.

De facto, a coincidência da divisão administrativa com a divisão natural e regional é praticamente impossível. Sob o ponto de vista geológico, então, é inútil tentar fazer coincidir qualquer divisão administrativa com qualquer formação ou agrupamento geológico, como é impossível fazer da base geológica o fundamento de uma ampla divisão regional.

Não há, pois, uma geologia própria do distrito de Aveiro. Mas não há também uma geologia peculiar da província das Beiras ou de qualquer outra província.

A província não pode deixar de ser geologicamente um complexo de formações, uma heterogeneidade de afloramentos, oul uma extensão incaracterística de qualquer terreno.

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Nem a constituição do solo nem a idade das formações ou das deslocações pode influir nas divisões políticas, aliás teríamos de formar a província do granito, a província dos xistos, a província dos terrenos sedimentares; a província do ante-câmbrico, do paleozóico, do mezo-cenozóico, do moderno; ou ainda a província do caledónico, do hercínico, do alpino!

O pitoresco deste absurdo atinge também a ingénua presunção de que muita gente está eivada considerando as grandes linhas de água ou outros acidentes geográficos como fáceis indicativos a seguir na determinação dos limites das circunscrições administrativas.

Mas os rios não separam regiões populacionais, nem mesmo regiões geográficas. Pelo contrário, são por vezes um obstáculo à sua divisão. Assim, no esboço de carta regional apresentado em 1933 pelo Sr. Dr. AMORIM GIRÃO, o Douro atravessa pelo centro as regiões do Baixo-Douro e do Alto-Douro; a Beira-Baixa passa para o sul do Tejo e este rio corre ao meio do Ribatejo! Também não são as cumeadas das grandes serras, ou os maciços importantes, que se impõem como divisórias naturais das circunscrições políticas internas.

A província das Beiras, como vimos, amistosa criação do movimento regionalista, é um exemplo de complexidade. Defini-la, marcar-lhe limites lógicos, proporcioná-la aos desejos dos orientadores do seu tão simpático movimento regionalista, foi um trabalho demorado e difícil dos estudiosos dos seus congressos. Ela estende-se por grau e meio de latitude e é um mosaico de particularidades geográficas, económicas e etnográficas. Dispõe das mais variadas altitudes que vão do nível do mar e dos polders, dunas e campos, ao alto da Serra da Estrela; possui climas diversíssimos entre os quais se assinalam o marítimo, o continental e o alpino; tem populações muito diferenciadas − vareiro, murtozeiro, ílhavo, bairrez, beirão, serrano do Hermínio; dispõe de aptidões culturais de verdadeira pluricultura; é de geologia complicadíssima, com terrenos que vão do moderno ao precâmbrico e ao arcaico, das formações marinhas e lagunares actuais ao azóico e ao agnotozóico.

Esta província só pode conceber-se como uma federação das cinco divisões que correspondam à hegemonia das cinco capitais de distrito.

Administrativamente una, abrangeria a terça parte de Portugal. Fraccioná-la é dividi-la em distritos, embora com outro nome. Reunir dois distritos numa pequena província parcelar é apenas iludir a absorção de um distrito por outro, sem vantagem para ninguém. As designações novas não conseguem mascarar esta verdade injustificável por qualquer razão de ordem científica. A geologia é que não pode fornecer qualquer argumento nem a favor nem contra qualquer critério de divisão administrativa. A orla mezo-cenozóica, por exemplo, começa / 269 / em Espinho e alarga-se, sob a forma de um triângulo, passando a leste de Coimbra segundo uma linha quase recta que vai até Tomar. O precâmbrico forma outro triângulo no rebordo da meseta confinando por poente com a orla dos terrenos sedimentares e por leste com os gneisses e granitos, até Santa Comba Dão, Tábua, Oliveira do Hospital, Covilhã e Sabugal. Era absurdo adoptar essas linhas geológicas como raias políticas ou administrativas. Os grandes rios, por seu turno, não limitam também as grandes formações: em regra atravessam-nas! Também nenhuma combinação de coordenadas geográficas as pode abranger e confinar inteiramente. A harmonia geológica não obedece às leis da simetria e da regularidade numérica ou geométrica que nós inventámos para ordenar os homens; tem uma beleza anárquica!

As serras são geralmente formadas de rochas e terrenos de idades muito diferentes como sucede com a serra da Lousã, da Estrela, do Buçaco, do Caramulo, das Talhadas, do entre Vouga e Douro. Se lhe aproveitarmos o relevo ou a cumeada, temos de desprezar a constituição e a idade das formações.

Os rios actuais estabeleceram ou desviaram os seus cursos para oeste numa época relativamente recente, quando a terra que hoje é Portugal já estava emersa e formada na sua maior parte, sendo posteriores, mesmo, aos movimentos terciários que produziram o relevo peninsular dos nossos dias, como bem expôs DANTIN CERECEDA.

Cortaram, assim, os terrenos existentes obedecendo a leis hidrográficas sem grande preocupação da natureza ou idade dos seus leitos. Os rios são, pois, acidentes geográficos, mas não são limites geológicos. E a população, ao escolher a sua residência e ao fazer a sua enxamagem, não ouviu as lições dos geólogos, nem atendeu à ordem de antiguidade ou da juventude rios terrenos, nem mesmo à sua constituição. Proliferou sobre os granitos, os xistos, as argilas, os calcários, as arenatas; alcandorou-se no meio das penedias e insinuou-se pelas aluviões e areais, regulando-se pela habitabilidade, aptidão agrológica, capacidade produtiva, proximidade de água corrente ou manente, desdenhando apenas das altitudes agrestes, das rochas estéreis, das areias instáveis e adustas, do ambiente pantanoso.

Mas o que preferiu, através de todos os tempos, dos pré-históricos aos actuais, foi a zona acolhedora do pendor de oeste, entre as serranias e o mar, região de colinas e vertentes adoçadas, de múltiplos pequenos vales e reduzidos mas atraentes plainas que vão do Mondego ao Vouga e do Vouga ao Douro. Ali formou um distrito natural, uma província demográfica.

Ora esta porção de litoral, entre Mondego e Douro, de que o Vouga é eixo, e de que tanto nos falam os documentos medievais anteriores e coevos da fundação da monarquia /  270 / portuguesa, foi no século XIX dividida por três distritos administrativos, mas a sua parte principal e característica forma o distrito de Aveiro.

Se se atendesse apenas aos aspectos geográficos, deveria ter-se formado um só distrito com a capital em Aveiro. O Porto e Coimbra ficariam quase sem território no litoral de entre Mondego e Douro!

Vê-se, entretanto, em face da carta geológica, que a geologia do distrito de Aveiro está intimamente relacionada com a dos distritos vizinhos do litoral e até com a dos do interior, mas não é a nota dominante e essencial do distrito de Aveiro.

Não admira. O mesmo acontecerá à geologia das províncias. O mesmo sucede com a geologia de Portugal, que é a continuação geológica e geográfica de Espanha, desta diferenciado apenas por aspectos geográficos especiais salientados por ELISÉE RÉCLUS e SILVA TELES que seguindo na esteira de THEOBALD FISHER consideraram o nosso país como uma unidade geomorfológica da Península − mas não unidade geológica − opinião aliás contrariada pelo professor sr. dr. ANSELMO FERRAZ DE CARVALHO.

A geologia do distrito de Aveiro é necessariamente dependente da geologia dos distritos vizinhos, por onde se continua. Assim, se o método adoptado fosse o do estudo independente de cada uma das formações, excederíamos os limites convencionais do distrito; se fosse exclusivamente o da divisão política, não atinaríamos com os limites naturais nem abrangeríamos com o nosso golpe de vista a totalidade das formações.

Podemos pois assentar em que o estudo da geologia do distrito é o estudo daquela porção de formações geológicas que a circunscrição administrativa abrange, corta ou surpreende com a linha dos seus limites, bem como a análise das suas relações e possível causalidade.

A esse estudo vamos agora proceder procurando, tanto quanto possível, seguir a ordem da cronologia geológica no sentido ascendente, começando pelo grupo ante-câmbrico, depois de darmos uma ideia da disposição geral da terra sobre a qual o distrito de Aveiro foi tão criteriosamente estabelecido há um século, como adequada circunscrição administrativa que é, que nunca poderá dispensar-se e que deveria ter, até, bem mais amplas prerrogativas.

ALBERTO SOUTO

Continua no vol. II, pág. 137 −►►►

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