A quem interesse observar e
procurar compreender as tendências estéticas das modernas gerações do
Distrito, e o contributo por elas trazido à evolução artística
contemporânea, logo se faz notar, e agradavelmente surpreende, a
predilecção manifestada a favor das artes do Desenho e da Pintura, e,
principalmente, o sólido equilíbrio procurado − e com felicidade
encontrado − pelos mais representativos desses novos artistas.
No meio das antinomias ideológicas e das hesitações artísticas da hora
presente, em ansiosa busca da esquiva fórmula estética do nosso século,
é altamente consolador verificar a serenidade com que alguns dos
pintores do Distrito − precisamente os mais prometedores − rapazes novos
que amanhã serão grandes nomes na Arte portuguesa mas a quem a sua
actual juventude justificaria rebeldias e excentricidades por isso mesmo
compreensíveis, sabem criar personalidade e conseguem ser do seu tempo
sem fugirem à observância das leis eternas e imutáveis da Arte.
Três ou quatro nomes acodem neste momento à nossa memória a justificar,
felizmente, a observação.
A esse número de artistas, equilibrados e conscienciosos, começa a
pertencer, em boa e sã verdade, ALÍPIO BRANDÃO, moço pintor de S. Tiago
de Riba-Ul, concelho de Oliveira de Azeméis, curiosa vocação que se
afirma e à nossa sensibilidade vitoriosamente se impõe.
Não procurando iludir dificuldades com artificiosos disfarces ou
caprichosas bizarrias de cor e forma, em que tanto se comprazem alguns
dos mais espectaculosos concorrentes às exposições nacionais de Pintura,
Alípio Brandão estuda; procura
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a lição dos Mestres, e, melhorando constantemente de forma, prossegue em
demanda da ambicionada perfeição, anseio de todo o artista eternamente
insatisfeito.
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A MÁSCARA DO
ARTISTA, GRAVADA EM MADEIRA |
Bastante moço
−
33 anos escassos − Alípio Brandão veio para a Pintura tendo praticado já
anteriormente outra arte; Alípio Brandão é, desde os dezasseis anos,
entalhador.
Quanto esta arte influenciou a sua técnica de Pintor, e
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quanta a sua forma pictural beneficiou daquela anterior aprendizagem,
onde o artista adquiriu singular destreza revelada nas suas
correctíssimas mísulas, molduras de estilo, primorosamente entalhadas,
como dum clássico, e em graciosas figurinhas, cheias de intenção,
vigorosamente cortadas, é caso para ser meditado com interesse,
pedagógico até, pois nessa influência da Escultura sobre a Pintura
reside, quanto a nós, a explicação do segredo e do triunfo de Alípio
Brandão.
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ESCULTURAS DECORATIVAS DE MADEIRA, NOTÁVEIS PELO MOVIMENTO,
CORRECÇÃO DE DESENHO E SEGURA EXECUÇÃO. |
Antes, porém, de nos determos no exame de algumas das qualidades e
tendências artísticas do Pintor, ouçamo-lo a ele próprio contando-nos
como se fiz artista, confidenciando-nos as suas aspirações, as suas
desilusões também.
Nasci em 2 de Agosto de 1902, no lugar do Outeiro, da freguesia de
Santiago de Riba-Ul, concelho de Oliveira de Azeméis. Após a instrução
primária − aos 13 anos − tive que enveredar pelo caminho da vida
prática, escolhendo então a profissão de entalhador. Fiz a aprendizagem
do ofício com António da Silva Tavares, já falecido, que tinha a sua
oficina no lugar de Lações, da freguesia e concelho de Oliveira de
Azeméis.
Aos 16 anos fui para a cidade do Porto, com intenção de me aperfeiçoar
na arte que havia preferido abraçar como modo de vida. Um dia, fui parar
ao atelier do grande Mestre Pintor, ARTUR LOUREIRO, como auxiliar do
oficial entalhador que fora encarregado de ornamentar uma moldura em
estilo gótico desenhada pelo mesmo pintor, moldura
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que serviu para a célebre tela «O Senhor da Pedra».
O que então ali vi deixou-me maravilhado e fiz nascer em mim o desejo,
que nunca mais me abandonou, de ser também pintor. Essa ideia passou a
constituir a maior preocupação do meu espírito e o motivo dos meus
sonhos.
Mas como torná-la realidade se as circunstâncias materiais mo não
permitiam?
Mantive-me no Porto até 1925 e voltei então para a minha terra, onde
montei uma pequena oficina de entalhador, enviando os meus trabalhos
para Coimbra e Porto e, raras vezes, para Lisboa.
Em 1927 decidi ir até Coimbra e nesta cidade me estabeleci também com
oficina de entalhador, numa casa do Largo da Sé Velha. A ideia da
pintura continuava a preocupar-me e, nas horas vagas, ia-me abalançando
aos primeiros ensaios. Os trabalhos que eu, anos antes, vira no atelier
de ARTUR LOUREIRO continuavam a exercer cada vez mais a sua influência
no meu espírito. Na minha terra já havia tentado a pintura. Em Coimbra
continuei essas tentativas, procurando transportar a umas pequenas telas
e tábuas alguns dos excelentes motivos que a bela e pitoresca cidade do
Mondego me oferecia. Mas a falta de desenho e a falta de contacto com
trabalhos que constituíssem para mim ensinamentos, não deixavam que eu
fizesse mais que uns quadrinhos ingénuos e sem arte.
Estive durante seis meses em Coimbra, após o que retirei de novo para a
minha aldeia, não só porque Coimbra me não ofereceu então o que,
materialmente, eu dela esperava, mas porque alguém me havia prometido o
lugar de mestre entalhador numa nova Escola Industrial que dentro de
algum tempo iria ser posta a funcionar. Contra o que esperava dessa
promessa, tive que me apresentar a um concurso por provas práticas com
outros concorrentes. Outrem se apresentou convenientemente «apadrinhado»
e, não obstante o meu trabalho ter sido o que melhor satisfez os
requisitos dos pontos a executar, fui preterido.
Decidi voltar novamente ao Porto e para lá transferi, mais uma vez a
minha oficina. Continuava obcecado pela ideia da pintura, que então
praticava quase sem regras. Reconhecia que o desenho, sobretudo, me era
indispensável.
Um dia tive um feliz encontro com o ilustre pintor JOSÉ DE BRITO e com
ele combinei que passaria a leccionar-me desenho.
No dia 4 de Maio de 1929 recebi a primeira lição, que pelo mestre me foi
ministrada no seu atelier, no edifício da Escola das Belas Artes.
Frequentei o atelier de JOSÉ DE BRITO e recebi as suas lições durante
cerca de três meses.
As dificuldades da vida assoberbavam-me e forçaram-me à
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desistência dessas lições, pois as não podia pagar. Ocorreu-me visitar
ARTUR LOUREIRO, o que fiz, apresentando-lhe a proposta de permutarmos os
nossos serviços, recebendo dele os seus valiosos ensinamentos e
entregando-lhe trabalhos de talha em madeira. Assim ficou assente.
Porém, pouco depois, o acordo teve de ser rescindido em parte, pois
ARTUR LOUREIRO, por motivo da sua idade algo avançada, não podia
dispensar-me assiduamente as suas lições. Por sua interferência passei a
frequentar as aulas nocturnas de desenho da Escola de Faria Guimarães,
onde leccionava outro mestre, o pintor JOAQUIM LOPES, passando a receber
as lições de ARTUR LOUREIRO somente aos domingos.
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OLIVEIRA DE AZEMÉIS − QUEBRADA (lápis) |
Continuei na frequência da Escola de Faria Guimarães, cujas aulas,
entretanto, passaram à direcção de um dos maiores artistas da paleta e
do lápis, mas certamente o mais modesto de todos: MANUEL RODRIGUES.
Deste distinto professor passei a receber, com a sua amizade e provas da
mais cabal estima, as lições não só ministradas na Escola mas também
particularmente.
Em 1932 expus pela primeira vez, na Sociedade das Belas Artes e numa
exposição de conjunto, alguns óleos e desenhos. O acolhimento havido
deu-me ânimo a novos cometimentos. Era o meu sonho a tornar-se
realidade.
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Em 7 de Janeiro de 1933 fiz a minha segunda exposição, desta vez no
salão do Ateneu Comercial do Porto, em conjunto com o caricaturista
Joaquim Gomes Mirão. A crítica ocupou-se já dos meus trabalhos com
bastante interesse e, em regra, de maneira elogiosa.
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OLIVEIRA DE AZEMÉIS − CASA DE VILA CHÃ (óleo) |
Em 17 de Fevereiro de 1934 exponho individualmente, no Salão Silva Porto
e recebo um acolhimento desvanecedor. Porém o resultado material deixou
muito a desejar. Nesse mesmo ano, em 12 de Maio, abro exposição em
Coimbra, num salão da Câmara Municipal, com trabalhos de pintura a óleo,
desenhos e talha. Coimbra recebeu-me galhardamente e compensou-me do
esforço que empregara. Ainda nesse mesmo ano, em Outubro, exponho alguns
trabalhos na Figueira da Foz, com resultados satisfatórios e elogio da
critica.
Em 20 de Abril de 1935 volto a expor em Coimbra, apresentando trabalhos
de pintura a óleo, desenhos, talha e escultura decorativa em madeira
(miniaturas), com sucesso quase absoluto.
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Propositadamente deixei desenrolar aos olhos do leitor estas curiosas
notas autobiográficas de Alípio Brandão, completas, tais como dele as
recebi, sem mutilar a sua unidade extratando-as, para mais em relevo
ficar a rara modéstia e sinceridade deste consciencioso artista.
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CLAUSTRO DO CONVENTO DE CUCUJÃES (óleo)) |
Do seu depoimento simples e franco, onde uma forte vontade de triunfar
pela Pintura sobressai, cumpre a nós destacar, para análise e estudo do
seu processo, a longa prática de entalhador que o artista já hoje
possui; no exercício assíduo dessa técnica e nas notáveis aptidões de
escultor que Alípio Brandão revela, cortando energicamente, sem
hesitações e com óptimo desenho sempre, está, como acima notámos, o
segredo do seu triunfo na Pintura.
O artista transportou para esta arte o sentido de volume,
estrutural na Escultura, resultando daí que tudo quanto pinta lhe sai
com vida e expressão plástica notáveis, e ao mesmo tempo com
simplicidade, sem esforço visível ou violência.
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Se trata flores, como essas camélias da sua última exposição,
impossíveis de reproduzir com fidelidade em gravura, devido ao
empastamento das cores na fotografia, folhas e pétalas apresentam
perfeito relevo, admiravelmente conjugado com o colorido quente,
riquíssimo, aplicado com precisão e gosto.
A própria paisagem, género para o qual as suas preferências artísticas
mais decididamente se inclinam, adquire por vezes nas suas mãos vida
real, desprendendo-se bem perspectivada da tela e tomando a nossos olhos
corpo e volume.
Se acrescentarmos ainda que o Pintor usa com moderação da sua paleta sem
incorrer em deficiência cromática, antes conseguindo uma alegre harmonia
de cor, e que sabe extrair da distribuição da luz os poderosos efeitos
que esse elemento encerra, deixaremos, resumida nestas brevíssimas
notas, a impressão dominante que de alguns dos trabalhos do moço artista
de S. Tiago de Riba-Ul nos ficou, baseada, principalmente, na sua última
exposição de Coimbra.
Correcção de desenho, propriedade de cor, riqueza de tons, noções
exactas de perspectiva, volume e luz.
Com estas qualidades e a vontade de trabalhar e de triunfar que anima
Alípio Brandão, não ê difícil vaticinar que num futuro próximo o seu
nome honrará o nosso distrito e o artista encontrará a justa compensação
do seu esforço de agora.
A. G. DA ROCHA MADAHIL
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