A. A. Mendes Correia, Recordações de Vagos, Vol. 1, pp. 83-86.

RECORDAÇÕES DE VAGOS

Ligam-se a Vagos inúmeras recordações da minha mocidade. Nado e educado no Porto, aqui exercendo a minha actividade profissional, sinto, entretanto, por aquele recanto do distrito de Aveiro a afeição de filho adoptivo. Pois se ali passei, na juventude, os meses de férias!... Ali vivia meu velho avô paterno, que ainda conheci. Ali nasceu meu Pai que lá edificou uma residência de verão; ali vivem numerosos parentes meus.
 

São-me familiares aquelas paisagens: o braço da Ria em que, a ocultas de meus Pais, justamente receosos dum desastre, passava dias inteiros entregue a expedições náuticas, visionando combates navais, sonhando com jornadas a terras desconhecidas de além-oceano; a Ria com as suas formosas margens de juncais verdes, com as suas marolas movidas pelo norte rijo, com as suas bateiras da pesca à fisga, com os seus moliceiros imponentes, propulsionados à vela ou pela longa vara, suja do lodo dos fundos; as encostas argilosas ravinadas pela erosão; os pinhais nas terras arenosas do alto; os vastos areais da Gafanha, com as suas dunas, com os seus aspectos evocadores dos desertos, estímulo infindável de aventuras de fantasia, em que perpassavam beduínos, caravanas, dramas angustiosos .de calor e de sede...
 

Companheiros de brincadeiras infantis, uns ainda vivos, outros − curva-se perante sua memória a minha saudade já desaparecidos, desfilam na minha mente. Vejo-os reunidos comigo na quinta de meu tio João ou no quintal de nossa casa, entretidos no fabrico de pequenos adobes, na construção de casas em miniatura, na ornamentação de pequeninas capelas de dois palmos com flores e... galão de caixões de defunto. Esclareça-se que um desses companheiros era filho do sacristão, do Alexandrino, que era também armador... Depois, mais crescidos, vinham as corridas de toiros (não decerto toiros autênticos da / 84 / Gafanha e dos campos de Coimbra, mas um rapaz provido duma agressiva caranguejola terminada por um par de chifres de carneiro) e outras diversões desportivas, corridas de bicicletas, gincanas. Parentes e amigos tinham de se esportular nas subscrições para os prémios...
 

São também, por volta dos 14 anos, os primeiros romances em que brilham olhos femininos, os primeiros versos, e logo em seguida a alegria pagã das desfolhadas, as romarias, a Senhora de Vagos, o bodo dos romeiros de Cantanhede, a Senhora dos Anjos em Sôza, a Senhora do Pilar na Lavandeira, as feiras da Vista Alegre... Há agora uma confusão estranha, perturbante, do profano e do devoto, do real e do ideal, e assim é que nas minhas recordações da Semana Santa se associam as cerimónias solenes da Igreja, as matracas das Trevas, as doloridas evocações da Paixão, a alegria pura e cristalina da Aleluia, com os jantares dos padres, esses lautos banquetes em casa duma boa Senhora, «que fora freira», jantares consecutivos às cerimónias religiosas, e que, sem quebra da viva simpatia pelos estimados eclesiásticos, reconheço. serem a reprodução rigorosamente exacta da descrição de Eça de Queiroz no «Crime do Padre Amaro»...

Vem também à minha lembrança a política, o jornalismo local, os meus primeiros ensaios de colaboração neste, talvez demasiado precoces. Irrompem no meu espírito as preocupações filosóficas e sociais, realizo em Vagos tentativas de monografias da «Ciência Social» de Le Play, procuro organizar uma propaganda em favor da instrução, uma propaganda anti-alcoólica. A benevolência amiga com que toda aquela boa gente vaguense me acompanha nas mais variadas iniciativas, mesmo nas mais utópicas! Uns trinta anos são decorridos e na minha alma perdura gratidão infinita por esse ambiente de bondosa condescendência que sempre ali encontrei.

Creio que nada mais resta hoje daquelas iniciativas, nem talvez as árvores que, com a anuência dos professores locais, o saudoso Padre Rocha, figura esclarecida e nobre de pedagogo, e a senhora D. Maria Henriqueta Rafael, professora devotada e distinta, lá se plantaram em luzidas «Festas da Arvore»!...

A povoação, com a sua paisagem envolvente, com o seu casario branco, com a sua gente amiga e boa, distanciou-se, depois, de mim. Uma vez terminado o meu curso, tornaram-se menos frequentes e mais fugitivas as minhas visitas. Quando lá vou, sinto o religioso enlevo de tempos felizes que não voltam.

O curioso é que, consagrando-me há um quarto de século aos estudos antropológicos, escassa aplicação fiz ali da minha preparação especializada. Tenho no fundo duma gaveta os registos de 54 observações de somatologia étnica que recolhi em Vagos e Ílhavo há mais de 20 anos, juntamente com umas reduzidas notas etnográficas. Foram os meus primeiros trabalhos
/ 85 / do género; achei pequeno o número de casos. Daí a minha relutância em os publicar. No entanto, aproveitei alguns elementos dessas observações para outros trabalhos: no meu livro «Os Criminosos Portugueses» (1.ª ed., Porto, 1913) utilizei materiais de comparação sobre a cor da pele, perfil do nariz, braça, índices frontal, verticais, largura bizigomática, pressão dinamométrica, etc. No meu artigo «Sobre o índice nasal na Beira Alta e um crânio desarmónico beirão» («Anais da Acad. Politécn. do Porto, t. XII, Coimbra, 1917) utilizei, em nota, alguns elementos sobre os índices cefálico e nasal, etc. em Vagos e Ílhavo. As médias da estatura e índice cefálico nas duas séries locais figuram também nos quadros respectivos do meu artigo «Estatura e Índice Cefálico em Portugal» («Arquivo da Repart. de Antrop. Criminal do Porto», vol. II, 1932, pp. 68 e 70).

É pouco. Talvez ainda um dia aproveite mais largamente esses elementos e os amplie mesmo com maior número de casos. Por agora não disponho do tempo necessário.

Causará decerto estranheza que, dadas as minhas preferências de estudo, não houvesse nas minhas antigas permanências em Vagos realizado ali mais farta colheita de materiais. O facto tem explicação. Diz um colega meu que o médico deve ser enxertado num biologista. Parece que o devia ser de preferência num antropólogo, tendo-o este sido antes num biologista, numa sequência lógica: Biologia > Antropologia > Medicina humana. Comigo não se deu assim: a inclinação pela Antropologia veio da Medicina. Desde muito cedo, no meu curso médico, comecei a interessar-me por assuntos de Psiquiatria e Medicina social. As doutrinas lombrosianas sobre o homem de génio e sobre o delinquente nato haviam atraído vivamente a minha atenção, e foi daí que surgiu o meu interesse pela Antropologia zoológica, étnica e pré-histórica, em suma pela Antropologia Geral. Compreendi que não era possível (como sucede correntemente, como sucedeu mesmo ao próprio Lombroso) fazer Antropologia Criminal sem uma base sólida de Antropologia em geral. Esta evolução dos meus interesses estudiosos coincidiu com o período em que deixei de ir a Vagos. Aliás, não havia aqui certos estímulos para a curiosidade que mais tarde em mim se estabeleceria por assuntos relativos à antiguidade. Grande parte da região da Ria de Aveiro é uma conquista recente ao mar, e, se o Crasto de Verdemilho, a possível localização − tão bem defendida por Alberto Souto − da Pelagia Ínsula de Avieno nestas paragens, e outros indícios literários, toponímicos ou materiais de ocupação humana pré-histórica ou nas mais remotas épocas históricas, permitem admitir que alguma coisa pode aqui chamar a atenção do pré-historiador e do arqueólogo, eu nunca ouvi em Vagos falar de antas ou de castros. A maior parte da Ria de Aveiro, como o Zuider-Zee e outros pontos do litoral do norte da Europa, ofereceu sem dúvida aos primeiros invasores romanos que aqui
/ 86 / vieram, um aspecto muito diferente do actual. Testemunhos históricos e a geologia o demonstram. Mas decerto, aqui e além, em ilhas ou linguetas e rebordos continentais o homem primevo estacionou. Se a presunção é legítima, nada em Vagos mo denunciou até agora. Aparte as Paredes da Senhora plenamente dos tempos históricos, apenas ali há notícia, por Pinho Leal, das ruínas duma ponte romana (?) para os lados da capelinha da Senhora de Vagos, e recentemente sei que se efectuou no adro da Igreja matriz um achado de moedas, as quais desapareceram de pronto, decerto sumidas pela avidez ignara, mas que, por certo, não dirão respeito a datas sequer confinantes com os tempos recuados a que se volve a minha curiosidade de pré-historiador. (1)

Pode ser que me decida um dia a um largo inquérito em Vagos e Ílhavo, complemento dos escassos materiais que lá reuni. Os traços somatológicos e psicológicos da população que, com intuição feliz, Jaime de Magalhães Lima já bosquejou, merecem estudo detido, como, para Ílhavo, muito bem preconizou o erudito Dr. Rocha Madahil. Mas sem tempo nada se faz e por aqui me fico hoje, pedindo me desculpem ter talvez, ao contrário do meu desejo, falado mais de mim do que de Vagos.

A. A. MENDES CORREIA

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(1)
Ao rever as provas deste artigo, cumpre-me rectificar o juizo desfavorável acima expresso sobre os detentores das moedas e confirmar o que destas escrevi. Espontaneamente me foram enviadas algumas: a mais antiga susceptível de classificação era um ceitil de Afonso V. Nada de importante.

 

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