Ligam-se a Vagos inúmeras
recordações da minha mocidade. Nado e educado no Porto, aqui exercendo a
minha actividade profissional, sinto, entretanto, por aquele recanto do
distrito de Aveiro a afeição de filho adoptivo. Pois se ali passei, na
juventude, os meses de férias!... Ali vivia meu velho avô paterno, que
ainda conheci. Ali nasceu meu Pai que lá edificou uma residência de
verão; ali vivem numerosos parentes meus.
São-me familiares aquelas paisagens: o braço da Ria em que, a ocultas de
meus Pais, justamente receosos dum desastre, passava dias inteiros
entregue a expedições náuticas, visionando combates navais, sonhando com
jornadas a terras desconhecidas de além-oceano; a Ria com as suas
formosas margens de juncais verdes, com as suas marolas movidas pelo
norte rijo, com as suas bateiras da pesca à fisga, com os seus
moliceiros imponentes, propulsionados à vela ou pela longa vara, suja do
lodo dos fundos; as encostas argilosas ravinadas pela erosão; os pinhais
nas terras arenosas do alto; os vastos areais da Gafanha, com as suas
dunas, com os seus aspectos evocadores dos desertos, estímulo infindável
de aventuras de fantasia, em que perpassavam beduínos, caravanas, dramas
angustiosos .de calor e de sede...
Companheiros de brincadeiras infantis, uns ainda vivos, outros −
curva-se perante sua memória a minha saudade
−
já desaparecidos, desfilam na minha mente. Vejo-os reunidos comigo na
quinta de meu tio João ou no quintal de nossa casa, entretidos no
fabrico de pequenos adobes, na construção de casas em miniatura, na
ornamentação de pequeninas capelas de dois palmos com flores e... galão
de caixões de defunto. Esclareça-se que um desses companheiros era filho
do sacristão, do Alexandrino, que era também armador... Depois, mais
crescidos, vinham as corridas de toiros (não decerto toiros autênticos
da
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Gafanha e dos campos de Coimbra, mas um rapaz provido duma agressiva
caranguejola terminada por um par de chifres de carneiro) e outras
diversões desportivas, corridas de bicicletas, gincanas. Parentes e
amigos tinham de se esportular nas subscrições para os prémios...
São também, por volta dos 14 anos, os primeiros romances em que brilham
olhos femininos, os primeiros versos, e logo em seguida a alegria pagã
das desfolhadas, as romarias, a Senhora de Vagos, o bodo dos romeiros de
Cantanhede, a Senhora dos Anjos em Sôza, a Senhora do Pilar na
Lavandeira, as feiras da Vista Alegre... Há agora uma confusão estranha,
perturbante, do profano e do devoto, do real e do ideal, e assim é que
nas minhas recordações da Semana Santa se associam as cerimónias solenes
da Igreja, as matracas das Trevas, as doloridas evocações da Paixão, a
alegria pura e cristalina da Aleluia, com os jantares dos padres, esses
lautos banquetes em casa duma boa Senhora, «que fora freira», jantares
consecutivos às cerimónias religiosas, e que, sem quebra da viva
simpatia pelos estimados eclesiásticos, reconheço. serem a reprodução
rigorosamente exacta da descrição de Eça de Queiroz no «Crime do
Padre Amaro»...
Vem também à minha lembrança a política, o jornalismo local, os meus
primeiros ensaios de colaboração neste, talvez demasiado precoces.
Irrompem no meu espírito as preocupações filosóficas e sociais, realizo
em Vagos tentativas de monografias da «Ciência Social» de Le Play,
procuro organizar uma propaganda em favor da instrução, uma propaganda
anti-alcoólica. A benevolência amiga com que toda aquela boa gente
vaguense me acompanha nas mais variadas iniciativas, mesmo nas mais
utópicas! Uns trinta anos são decorridos e na minha alma perdura
gratidão infinita por esse ambiente de bondosa condescendência que
sempre ali encontrei.
Creio que nada mais resta hoje daquelas iniciativas, nem talvez as
árvores que, com a anuência dos professores locais, o saudoso Padre
Rocha, figura esclarecida e nobre de pedagogo, e a senhora D. Maria
Henriqueta Rafael, professora devotada e distinta, lá se plantaram em
luzidas «Festas da Arvore»!...
A povoação, com a sua paisagem envolvente, com o seu casario branco, com
a sua gente amiga e boa, distanciou-se, depois, de mim. Uma vez
terminado o meu curso, tornaram-se menos frequentes e mais fugitivas as
minhas visitas. Quando lá vou, sinto o religioso enlevo de tempos
felizes que não voltam.
O curioso é que, consagrando-me há um quarto de século aos estudos
antropológicos, escassa aplicação fiz ali da minha preparação
especializada. Tenho no fundo duma gaveta os registos de 54 observações
de somatologia étnica que recolhi em Vagos e Ílhavo há mais de 20 anos,
juntamente com umas reduzidas notas etnográficas. Foram os meus
primeiros trabalhos
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do género; achei pequeno o número de casos. Daí a minha relutância em os
publicar. No entanto, aproveitei alguns elementos dessas observações
para outros trabalhos: no meu livro «Os Criminosos Portugueses»
(1.ª ed., Porto, 1913) utilizei materiais de comparação sobre a cor da
pele, perfil do nariz, braça, índices frontal, verticais, largura
bizigomática, pressão dinamométrica, etc. No meu artigo «Sobre o
índice nasal na Beira Alta e um crânio desarmónico beirão» («Anais
da Acad. Politécn. do Porto, t. XII, Coimbra, 1917) utilizei, em nota,
alguns elementos sobre os índices cefálico e nasal, etc. em Vagos e
Ílhavo. As médias da estatura e índice cefálico nas duas séries locais
figuram também nos quadros respectivos do meu artigo «Estatura e
Índice Cefálico em Portugal» («Arquivo da Repart. de Antrop.
Criminal do Porto», vol. II, 1932, pp. 68 e 70).
É pouco. Talvez ainda um dia aproveite mais largamente esses elementos e
os amplie mesmo com maior número de casos. Por agora não disponho do
tempo necessário.
Causará decerto estranheza que, dadas as minhas preferências de estudo,
não houvesse nas minhas antigas permanências em Vagos realizado ali mais
farta colheita de materiais. O facto tem explicação. Diz um colega meu
que o médico deve ser enxertado num biologista. Parece que o devia ser
de preferência num antropólogo, tendo-o este sido antes num biologista,
numa sequência lógica: Biologia > Antropologia > Medicina humana.
Comigo não se deu assim: a inclinação pela Antropologia veio da
Medicina. Desde muito cedo, no meu curso médico, comecei a interessar-me
por assuntos de Psiquiatria e Medicina social. As doutrinas lombrosianas
sobre o homem de génio e sobre o delinquente nato haviam atraído
vivamente a minha atenção, e foi daí que surgiu o meu interesse pela
Antropologia zoológica, étnica e pré-histórica, em suma pela
Antropologia Geral. Compreendi que não era possível (como sucede
correntemente, como sucedeu mesmo ao próprio Lombroso) fazer
Antropologia Criminal sem uma base sólida de Antropologia em geral. Esta
evolução dos meus interesses estudiosos coincidiu com o período em que
deixei de ir a Vagos. Aliás, não havia aqui certos estímulos para a
curiosidade que mais tarde em mim se estabeleceria por assuntos
relativos à antiguidade. Grande parte da região da Ria de Aveiro é uma
conquista recente ao mar, e, se o Crasto de Verdemilho, a
possível localização − tão bem defendida por Alberto Souto − da
Pelagia Ínsula de Avieno nestas paragens, e outros indícios
literários, toponímicos ou materiais de ocupação humana pré-histórica ou
nas mais remotas épocas históricas, permitem admitir que alguma coisa
pode aqui chamar a atenção do pré-historiador e do arqueólogo, eu nunca
ouvi em Vagos falar de antas ou de castros. A maior parte da Ria de
Aveiro, como o Zuider-Zee e outros pontos do litoral do norte da Europa,
ofereceu sem dúvida aos primeiros invasores romanos que aqui
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vieram, um aspecto muito diferente do actual. Testemunhos históricos e a
geologia o demonstram. Mas decerto, aqui e além, em ilhas ou linguetas e
rebordos continentais o homem primevo estacionou. Se a presunção é
legítima, nada em Vagos mo denunciou até agora. Aparte as Paredes da
Senhora plenamente dos tempos históricos, apenas ali há notícia, por
Pinho Leal, das ruínas duma ponte romana (?) para os lados da capelinha
da Senhora de Vagos, e recentemente sei que se efectuou no adro da
Igreja matriz um achado de moedas, as quais desapareceram de pronto,
decerto sumidas pela avidez ignara, mas que, por certo, não dirão
respeito a datas sequer confinantes com os tempos
recuados a que se volve a minha curiosidade de pré-historiador.
(1)
Pode ser que me decida um dia a um largo inquérito em Vagos e Ílhavo,
complemento dos escassos materiais que lá reuni. Os traços somatológicos
e psicológicos da população que, com intuição feliz, Jaime de Magalhães
Lima já bosquejou, merecem estudo detido, como, para Ílhavo, muito bem
preconizou o erudito Dr. Rocha Madahil. Mas sem tempo nada se faz e por
aqui me fico hoje, pedindo me desculpem ter talvez, ao contrário do meu
desejo, falado mais de mim do que de Vagos.
A. A. MENDES CORREIA
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(1) − Ao rever as provas deste artigo,
cumpre-me rectificar o juizo desfavorável acima expresso sobre os
detentores das moedas e confirmar o que destas escrevi. Espontaneamente
me foram enviadas algumas: a mais antiga susceptível de classificação
era um ceitil de Afonso V. Nada de importante.
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