Vaz Craveiro, Ida ao Mar..., Vol. I, pp. 19-20.

LITERATURA REGIONAL

 

(Costa Nova do Prado − Ílhavo

 

IDA AO MAR...

 

Manhã da cor do sol que nasceu rubro!


Atroa um búzio o ar por toda a praia
Num clamor de festa...
Inquietas, as gaivotas voam baixo,
Novelando incertos rumos...
A aragem
Balbucia seus líquidos segredos;
(Lesta voz a diluir-se em fumos)
Ecos das conchas, algas ou corais
Ao morrer na borda
Quando o mar é límpido aquário!...


Manhã da cor do sol que o céu transborda!
− Instante extraordinário
De luz em cromatismo!
Hora toda Outubro,
Misteriosa, eremítica, outonal,
Diferente das demais.
− É bem aquela hora virginal
Que tudo transfigura, tudo!
Hora em que o céu e o mar mal se distinguem
Em azulinea cor − de tão iguais!...


De instante a instante a luz jorra num facho,
Irisa a vaga em tons que se não pintam
E veste os barcos de roupagens novas!
À boca cheia,
Dá ordens, apressado, o moço arrais.
− Passam os vultos a correr na areia −
(Que o barco está prontinho para a faina)
E, logo prestes, gesticulam mandos;
Vão os remos rimar as suas trovas;
O garotio vem chegando aos bandos...


Vagarosos, − os bois são aguilhados
(Estamos na maré) e alam mansos.
O mar amaina;
O sol, com o seu facho,
Anda a pintar a praia cor do cobre!...
Já se aprontam as cordas para os lanços
E as bocas numa voz que tudo encobre,
Começam a cantar o bota-abaixo...


A melopeia toma corpo: afIora
Aos lábios ritmada pelo esforço
Da legião humilde que amealha
O Pão de cada Dia... pão tão rude!...
Quanta mágoa no canto se agasalha?!
Sabe-o Deus!...


«Abaixo!... − Bota abaixo agora!... Agora!...»
Gritam as bocas numa só unidas...
− Velhos e novos em olímpica atitude
Pela voz se excitam
E, aos olhos meus,
Cada um com a alma desdobrada
De esforço heróico,
Empurra o barco donairoso, esguio!


«Abaixo!... abaixo!...» ainda as bocas gritam!
E o barco vai:
...Já as ondas roleirinhas
O abraçam, e erguem,
Lambem e tornam a abraçar...
Lá vai ele de longada,
Que ao desafio
Os remos começaram seu cantar!...


O mar, de manso, faz lembrar o rio!...


«Senhor Jesus é connosco,
Já varámos a pancada»
− Diz o arrais a rezar.


«Seja a faina abençoada,
− Reza a companha − e o mar
Não nos trague na arribada!...»


Sob a fé do padroeiro,
Que vêem na sua cruz,
Lá vai o barco ao pesqueiro.


Transfigura-se o mar e o céu num tom de luz!


Que força, vida, cor em tudo isto vai!


E se ao regresso, mar! te enfurecias?!
Homens de terra!
                            − vinde-as ver! Olhai
Estas novas galés dos nossos dias!...


Ílhavo
1935

VAZ CRAVEIRO

 

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