A. de Amorim Girão, Aspectos geográficos do distrito de Aveiro, Vol. I, pp. 9-14.

ASPECTOS GEOGRÁFICOS

DO DISTRITO DE AVEIRO

Criação da vontade humana em sua tarefa de adaptar-se às condições do meio físico, mais do que uma consequência necessária destas últimas, as circunscrições administrativas apresentam quase sempre uma heterogeneidade bem pronunciada de aspectos geográficos, reunindo parcelas de diversas regiões naturais.

O distrito de Aveiro está precisamente nestas circunstâncias. Com uma grande variedade de constituição geológica que vai desde os terrenos graníticos, arcaicos e precâmbricos do interior, com suas importantes assentadas de quartzito, até aos terrenos triássicos, cretácicos, pliocénicos e modernos do litoral não menos variadas se revelam também as suas condições hipsométricas e orográficas. É serra e é litoral: desce das zonas de relevo interiores, dos contrafortes montanhosos da Freita, Arestal, Talhadas, Caramulo e Buçaco até às zonas baixas da beira-mar, debruadas por compacta faixa de areias. Começa ao Norte no Douro, para vir morrer ao Sul quase nos campos do Mondego; e em toda essa extensão os seus aspectos variam consideravelmente.

Corta-o ao meio o rio Vouga: curso de água que muitos autores têm reputado importante barreira física e humana.

Considerou-o o geólogo PAUL CHOFFAT como limite meridional dos relevos que ao Norte do país formam, com os da Galiza, uma unidade bem destacada da geomorfologia peninsular o Maciço Galaico-Duriense.

Apontou-o ANTÓNIO ARROIO como constituindo o limite etnográfico entre a zona portuguesa setentrional, onde as diversões populares são caracteristicamente representadas pelas romarias, e a zona meridional, onde predominam sobretudo as touradas.

Considerou-o ainda mais recentemente o Sr. Dr. JAIME LIMA como assinalando a zona onde se puseram em contacto as invasões marítimas do Norte e as invasões marítimas do Sul, que povoaram a costa.

As próprias invasões efectuadas por via terrestre, vindas / 10 / tanto pelos Pirenéus como pelo estreito de Gibraltar, ter-se-iam também encontrado junto do rio Vouga, no território que mais tarde veio a pertencer ao nosso país.

Por isso ALBERTO SAMPAIO considerava este rio como o verdadeiro limite entre o Portugal do Norte e o Portugal do Sul; e não faltará mesmo quem, tendo em vista pôr mais em destaque a importância do Vouga como linha de separação, venha aduzir factos da nossa história contemporânea, colhidos nas dissenções políticas por vezes existentes entre o Porto e Lisboa.

Não há que contestar, é certo, o importante papel desempenhado pelos nossos rios como' linhas estratégicas e limites políticos nas sucessivas etapas por que foi passando o engrandecimento territorial do organismo político português.

Mas há, entretanto, que reconhecer como a laguna ou esteira, ainda hoje com os seus 47 quilómetros de comprido, sobreleva em importância atractiva o próprio curso de água que nela desemboca: a Ria (impropriamente chamada) contribui assim para unir o que o rio, pelas suas fracas condições de navegabilidade e pelas suas inundações frequentes, teimava em separar!

É o que pode concluir-se pelo exame das condições demográficas regionais.

A análise dos mais importantes centros povoados pode levar-nos a estabelecer as seguintes leis gerais da sua distribuição, tomando como base os recentes dados estatísticos: a população, que por completo evita as areias do litoral, é tanto mais densa quanto mais se aproxima da laguna, e junto desta se encontram todos os núcleos superiores a 2.000 habitantes; à medida que dela nos afastamos em qualquer direcção, o povoamento diminui e o habitat rural dispersa-se; nos terrenos alagadiços situados junto do Vouga e do seu afluente Águeda, o habitat concentrado é todavia regra geral, predominando nesta zona os núcleos de população compreendida entre 1.000 e 2.000 habitantes; caminhando para o interior, apenas os três centros de Águeda, Albergaria e Oliveira de Azeméis marcam uma zona de povoamento mais denso e mais antigo, correspondente à tradicional zona de passagem já seguida desde a época romana.

Principais centros de população da zona litoral e seu rebordo montanhoso. Para ver o mapa em resolução elevada, clicar na imagem (pág. 11)

É curioso verificar que o Vouga, o Águeda e os pequenos cursos de água que desaguam na Ria se apresentam como raios de um círculo que nela tivesse o seu centro. A atracção que sofreram as águas deve ter sido a mesma que experimentaram as populações no seu movimento. histórico; e essa atracção veio sem dúvida alguma aumentar o efectivo humano que chegara por via marítima e j unto da antiga reentrância da costa se estabelecera desde tempos muito remotos.

À medida que se avança para o interior, o relevo do solo,  em degraus sucessivos, impõe agora os seus direitos: a população rareia e quase desaparece por completo, especialmente naquelas  / 12 / zonas onde os terrenos xistosos, menos abundantes em água, contribuem em grande parte para o mesmo resultado: na carta demográfica, como na carta hipsométrica, fica assim bem marcado o crescente de vastas planícies que constitui no país uma das subdivisões mais típicas a Marinha ou Beira-mar, se assim quisermos chamar-lhe, como lhe chamou também há pouco MAX. SORRE na descrição de Portugal da grande Géographie Universelle. E devemos acentuar com desvanecimento que esta região deu pretexto ao autor para uma das páginas de mais vivo colorido, nesse estudo que, sou certos aspectos, se ressente da falta de um conhecimento mais directo das questões geográficas do nosso território.

E o distrito de Aveiro? Este, ao fixar os seus limites, procurou, como convinha, associar no espaço que em boa justiça devia caber a uma circunscrição administrativa da sua categoria, o maior número de vantagens de ordem natural e possibilidades de futuro desenvolvimento.

Comecemos do centro para a periferia.

Coração do distrito, ponto de atracção e núcleo polarizador de todas as suas actividades económicas é a foz do Vouga, é a Ria: zona de terrenos alagadiços, da cultura do arroz, da exploração do sal, do moliço e da pesca; zona de denso povoamento e até mesmo de povoamento anfíbio, a que a imagem platónica, segundo a qual o Mediterrâneo constituiria a condição geográfica de um aglomerado humano semelhante a «rãs em volta de um charco» poderia aplicar-se, se não com apurado gosto, pelo menos com grande propriedade de expressão.

Apresenta esse povoamento características especiais, não devidas certamente a determinada influência étnica, fenícia ou helénica, conforme alguns autores têm imaginado, mas antes à mistura dos mais variados elementos raciais, nesta zona costeira tão acessível a todos os povos marítimos e colonizadores; e revela excepcionais qualidades de resistência, desenvolvidas na constante luta com o mar e com a terra, nos pontos em que ela se mostra menos própria para a agricultura. A dureza da vida temperou as energias do homem: é ver, por exemplo, a disputa travada entre os ílhavos e os ribatejanos, nas Viagens na minha terra de GARRETT.

Em tais condições, toda esta zona se mostra susceptível de uma variada produção agrícola, tendo ainda nas actividades marítimas e lagunares uma boa parte dos seus horizontes de trabalho, porque o lavrador é ali também pescador; e como trabalho e fecundidade andam geralmente associados, neste particular teremos ainda uma das grandes razões da maior densidade do seu capital humano. Pertencem-lhe os concelhos de Ovar, Estarreja, Murtosa, Aveiro, Ílhavo e Vagos.

A esta zona havia que acrescentar a Ribeira do Vouga, pois a ela se liga directamente e por ela se estabelecem as relações / 13 / com o interior. Terras de milho, pastagens e gado bovino, a pegarem já com a serra: são os concelhos de Albergaria-a-Velha, Sever do Vouga e Águeda.

A toponímia local pode ajudar-nos a estabelecer os limites das duas sub-regiões. O complemento de Ribeira que alguns nomes de lugares apresentam, como, por exemplo, Óis da Ribeira (em contraposição com Óis do Bairro), mostra-nos que a separação entre elas não deve andar muito longe da Pateira de Fermentelos.

Pela parte setentrional, e confundidas de alguma forma com esta última zona, ficam as sub-regiões de Cambra e de Paiva, de características tão semelhantes, apesar de pertencentes a bacias hidrográficas distintas. Zona de relevo, inculta em grande parte, mas cortada de vales férteis, a cultura do milho, que vai desde as feracíssimas várzeas de S. João da Madeira até ao planalto agreste de Albergaria das Cabras, associa-se nela à criação de gados, dando origem a uma larga produção de manteiga. São os concelhos de Castelo de Paiva, Arouca, Vila da Feira, S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Vale de Cambra.

Ao Sul, a Ribeira do Vouga estabelece uma transição quase insensível para a sub-região bairresa, especialmente caracterizada pela cultura da vinha e da oliveira. A ela pertencem os concelhos de Oliveira do Bairro, Anadia e Mealhada; e dentro dela se põe em contacto o distrito de Aveiro com o distrito de Coimbra, ao qual pertence ainda uma parte do concelho de Cantanhede.

Pode dizer-se que a Bairrada corresponde mais ou menos à bacia do Cértoma curso de água que nasce na serra do Buçaco e vai lançar-se no rio Águeda. MIGUEL RIBEIRO DE VASCONCELOS, na sua Notícia histórica do mosteiro da Vacariça, afirma que ela se estende entre aquela serra e o mar; é certo, porém, que uma outra subdivisão natural pode distinguir-se a Ocidente, à qual o vulgo aplica o nome de Gândara. É a zona que na Carta Geológica fica evidenciada pela mancha de terrenos pliocénicos que se estende em face dos médos de areia do litoral, entre a serra de Buarcos e o curso inferior do Vouga.

No ponto de vista geográfico, a Bairrada distingue-se pelas suas formas atenuadas de relevo; mas especialmente, como fica dito, pelas suas culturas, que dão à paisagem uma fisionomia especial.

A cultura da vinha, dando origem a um tipo especial de vinhos maduros, é a mais característica forma de ocupação do solo. E os extensos vinhedos da sub-região bairresa, de cepas baixas, geometricamente dispostas umas em relação às outras, não se confundem também com as latadas de pequena altura dispostas no meio de terrenos dedicados a outras culturas, como se verifica na zona situada mais ao N., junto do Vouga e do Águeda, onde nos aparece também um tipo de vinhos sensivelmente diverso.

/ 14 / A cultura dos olivais merece também apontar-se, como uma das mais importantes; e a cultura cerealífera e a das árvores frutíferas demonstram ainda o acentuado polimorfismo agrícola dessa região, corolário imediato da grande variedade de elementos que constituem o seu solo.

Convirá talvez esclarecer que a palavra Bairrada significa «conjunto de bairros» tomando o termo bairro (antigo barrio) não na acepção usual de «povoação ou parte de uma povoação», mas no sentido, que lhe dá a linguagem popular, de terreno argiloso sobretudo próprio para a cultura cerealífera. Da abundância desses terrenos na região lhe adveio o nome; e foi a aptidão cultural indicada que serviu de pretexto ao Marquês de Pombal para mandar arrancar todas as vinhas dessa região, por que ela é de facto, como escreveu o já citado RIBEIRO DE VASCONCELOS, «terreno fecundo e abundante de tudo o preciso para a vida e regalo do homem».

Na zona vizinha do litoral, a constituição dos terrenos continua uniforme na sua considerável variedade, e nela se confundem também as características da Ria com as da sua região gandaresa, por forma que bem difícil se tornará marcar nesta zona um bom limite geográfico. Mas deixou de sentir-se a atracção da laguna, menos denso é o revestimento humano regional, e outro também o modo de vida da população, sempre mais presa à terra: e se a divisão administrativa está longe de corresponder a esta mudança de características antropogeográficas, não deixa, no entanto, de até certo ponto a testemunhar.


Coimbra, Março de 1935.

A. DE AMORIM GIRÃO

 

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