Jaime de Magalhães Lima, Fecundidade das relíquias, Vol. I, pp. 5-8.

FECUNDIDADE DAS RELÍQUIAS

O regionalismo do nosso tempo, tal qual o nacionalismo seu parceiro por identidade de impulsos íntimos e coincidência de formas externas, ambos rematando numa mesma compleição estética e moral, fortalecida pela paridade de pensamento e afeição intelectual − o regionalismo actual, em seus termos de lucidez e graça e por efeito de sua magia recôndita, convence-nos e comove-nos e de contínuo e vivamente nos chama a servi-lo este regionalismo e nacionalismo, entenda-se bem, que é amizade e cooperação com os seus irmãos de todas as latitudes, respeito mútuo e mútua generosidade e pela generosidade se distinguindo daquele outro regionalismo traiçoeiro que a cada passo compromete a alegria e a fortuna dos povos, ambicioso, ávido, agressivo, orgulhoso e xenófobo, uma doença que desvaira o carácter dos homens precipitados nas convulsões da aversão ao vizinho, mascarada do amor da pátria.

 

Esse regionalismo primitivo, facilmente cruel, se em dias bárbaros se afirmou, moveu e operou como realidade criadora entre cegos arrebatamentos de turvas pelejas egoístas, hoje emendou-se; purificado e disciplinado, converteu-se piedosamente à bondade instruída pela razão e seu conselho e lei, inflamada e incensada pelos alentos de um sacerdócio ao qual só a dedicação segreda, os seus ritos e ensina as suas orações, enquanto com êxito brilhante o induz na arte de criar e disseminar a beleza. O que foi uma livre propensão, caprichosamente escolhendo o seu caminho e praticando os seus feitos, não raro miraculosos, posto que nem sempre isentos de cobiças vulgares e de avareza, tornou-se agora devoção reflectida, regrada, e entretanto cândida. Tão activa como liberal, para a expressão das suas graças e para a multiplicação dos seus benefícios tanto confia na simpatia recíproca, como aborrece e teme o apartamento e o perigo de dissensões, rivalidades e acres disputas.

 

Neste novo rumo da actividade do nosso espírito, empenhado em bem servir a fé e o coração, o nosso tempo exige-nos a consciência clara e minuciosa da beleza e virtude da alma e / 6 / das cousas que se criaram nos lugares que nós amamos porque nos foram berço e nos sustentam e abrigam e nos dão contentamento, e também e imediatamente, essa mesma força e o seu império afeiçoam-nos por gratidão àqueles lugares que unicamente de passagem vimos, habitámos e contemplámos, em jornada, quando eles abriram ao peregrino os seus caminhos e o sentaram à mesa do lar hospitaleiro. Uma vida ingénua, inteiramente à lei da natureza, podia preencher-se e satisfazer-se com o deleite descuidado e as presas rudes que a terra e quanto a constitui e a povoa, enriquece e adorna, nos oferece à imaginação e aos sentidos, ao sangue palpitante e à poesia; a vida ingénua não nos pedia mais que simples faculdades de moderada apreensão e discreto enlevo. Mas o estado de razão e cultura intensa que a nossa época atingiu, desenvolvendo, acentuando, e complicando as formações psicológicas de muitos séculos que nos educaram e adestraram os sentidos e o espírito e lhes dilataram seus horizontes, o estado de razão e cultura, que é o nosso, reclama da nossa atenção e inteligência que para bem produzir completemos pelo conhecimento erudito, meditado, os impulsos da singeleza instintiva. Não o dispensa nem pode dispensá-lo; rigorosamente o demanda em toda a extensão, expansão e modos do nosso ser, e assim, porque é comum e sem excepção, obrigado o torna, sempre que por nossas cogitações e nossas obras houvermos de pagar capazmente o que devemos à nossa terra e às gerações que a afeiçoaram ao seu pensamento e vontade, e a usufruíram e pelo exemplo nos ensinaram a afeiçoá-la e usufruí-la. Quando houvermos de consagrar a nossa oferenda ao seu legado e glória, enquanto elas copiosamente nos retribuem o fervor e o zelo, prodigalizando-nos inefáveis confortos de formosura, agasalho e pão, a ingenuidade terá de ceder à consciência e proceder de harmonia com o seu instruído aviso.


Esta condição de consciência, razão e saber a que o regionalismo se ergue têm, porém, seu instrumento próprio; e importa empregá-lo e reconhecer-lhe a eficácia, se como bons filhos quisermos ser fiéis à divindade da nossa crença e do nosso culto.


Então, porque esse regionalismo é não só um facto de atracções subconscientes, mas também uma lição da experiência, será nos seus vestígios tangíveis, nas suas relíquias de qualquer espécie que elas sejam, será no estudo das suas obras e acções que teremos de procurar e esclarecer e fortificar o nosso conhecimento do seu carácter, e sua constituição e as necessidades correlativas, o seu passado, as suas aspirações, os frutos criados e as promessas de nova colheita, cada vez mais abundante e mais nutritiva e saborosa. Nem por outra via e menor preço conseguiremos fortalecer o regionalismo com a assistência aturada de uma consciência que o ordene e guie,
/ 7 / fora da qual perderá sua qualidade de princípio vital, para se dissolver em nebuloso e inconsistente devaneio ou se quedar estéril em mero comércio de empoeiradas curiosidades.


Eis que agora as relíquias vivem, aquecem e iluminam como a luz de uma alâmpada imperecível, e dos seus jazigos se desentranha uma insondável profusão de riquezas. As antas denegridas dos invernos como os sacrários recatados, irisados pelo vitral da rosácea; as colunas do mercado alpendrado, ermidas das cumeadas da serra, fontes e prados, ribeiros e alcantis; a cor dos olhos e a dos cabelos e a tez do rosto; aves e feras, cantares de amor, temor dos monstros, sorrir de fadas, campanários, palácios e florestas; e as rosas do silvado e a igreja e a oficina − tudo nos é clamor sublime da torrente vital em que a aproximação das relíquias nos envolve e por mistério de funda simpatia nos renova as forças do ânimo e dos braços criadores. Uma palavra, um traço rasgado na penedia, uma árvore, um punhado de cinzas; o carril do rodado na montanha, como o livro de sapiência do monge que dos enganos do mundo se refugiou no claustro; quanto as mãos dos homens tocaram e os seus olhos avistaram e os seus ouvidos ouviram; uma sombra, um rumor e o barro dócil: − em tudo se contêm fragmentos da nossa alma e da alma cósmica, tudo desfere a voz do Criador e da Criação, tudo repete ensinamentos, conselho e exemplo, tudo nos descerra horizontes infindos de beleza, e nos é poder miraculoso de renascimento, nas formas passageiras, nos mostrando e nos mandando a traduzir a eternidade e com a eternidade nos unindo e exaltando e glorificando.


S. Francisco de Assis, segundo CELANO, queria que «onde quer que achássemos algum escrito divino ou humano, na estrada, em casa ou no chão, aí o apanhássemos com a maior reverência e o puséssemos em lugar sagrado ou decente, caso lá estivesse traçado o nome do Senhor ou qualquer cousa que lhe pertencesse. E um dia, quando um dos irmãos lhe perguntava por que era que ele com tão grande diligência apanhava até os escritos dos pagãos e outros nos quais não se lia o nome do Senhor, o Santo respondeu: − «Meu filho, é porque estão ali as letras com que se compõe o muito glorioso nome do Senhor Deus. Por conseguinte, o bem que no escrito está pertence não apenas aos pagãos ou a qualquer homem, mas só a Deus, de quem é todo o bem.» E, o que não é menos de admirar, quando o Santo mandava escrever quaisquer cartas de saudação ou admonição, não consentia que nem uma só letra ou sílaba fosse riscada, mesmo ainda que (como muitas vezes acontecia) fosse supérflua ou estivesse mal colocada.»


Ampliemos a advertência da inspiração do Santo; ponhamos «Vida», onde ele disse «Senhor», e sem tardar divisaremos nas relíquias e nos mais pequeninos factos da existência dos homens e da sua habitação e ambiente o alfabeto com que se / 8 / escreveu e escreve a epopeia infinda da nossa alma, e depressa aprenderemos a prestar-lhes a reverência que as procura para as volver em religião e pela sua irradiação iluminar o espírito e determinar a acção.

Três homens na plenitude de uma viril robustez, de provados talentos e legítima autoridade conquistada pela perseverança e firmeza da. honestidade e êxito de infatigável estudo vêm hoje a praticar piedosamente esta religião, fundando o «Arquivo do Distrito de Aveiro» e destinando-o a colher e interpretar inteligentemente, não só as relíquias mais antigas da vida desta região e do seu palpitar, como os sinais actuais do seu ser que lhe definem o carácter e verdadeiramente a personificam. Longa e árdua será a meritória jornada, que demanda um esforço poderoso daqueles mestres professos; e, pois que a sua dedicação é nobre e para vencer necessita um cerrado feixe de diversas e complexas forças, por suas virtudes obriga a coadjuvação de todos quantos amam a pátria, a pátria pequenina, a do seu torrão, como a maior, a que se expandiu e enraizou por todas as latitudes. Essa coadjuvação devemos por honra própria. Não hesitemos em cumprir, e a fidelidade nos será paga copiosamente, identificando-nos com a dignidade dos iniciadores e sacerdotes e apóstolos que nos convidam a orar em seus altares.

Eixo, Fevereiro de 1935

JAIME DE MAGALHÃES LIMA

 

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