Chegaram ao aeroporto de Varadero ao entardecer. Chovia e
estava calor. A humidade envolvia tudo.
Quase à força, um grupo de bagageiros tirou-lhes as malas das
mãos para as levar para o autocarro estacionado a quatro metros da
porta de saída.
A luta pelos dólares que lhes garantia a sobrevivência.
Ironicamente a moeda do inimigo.
A neblina não deixava ver a paisagem para lá da estrada.
Algumas casas baixas com aspecto pobre, pouco trânsito. A noite caiu
quase sem se dar conta por trás do céu encoberto.
Havana e o mítico Hotel Nacional já estavam iluminados quando
chegaram.
Kidina entrou no quarto, pousou as malas e olhou a marginal
iluminada. As cidades ficam mais bonitas à noite.
Estendeu-se na cama tal como estava, as malas junto
à
entrada, a gozar o prazer de se abandonar e sentir o silêncio.
Havana não é uma cidade barulhenta, nem apressada e o hotel
também não.
Meia hora depois sentiu bater à porta. Era
Luís, seu
vizinho de quarto, a convidá-la para ir ao bar beber qualquer coisa
antes do jantar. Iria lá ter.
Desmanchou as malas apenas no indispensável, tomou um duche e
desceu.
Luís seria o seu companheiro no resto da viagem.
O dia seguinte começou cedo. Visita panorâmica da cidade.
Quem viaja em grupo sabe que é assim. Por volta do meio dia chegaram à Praça da Catedral.
O calor era insuportável. San
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dálias. calções, um ou outro chapéu de palha. A praça estava
repleta de turistas. Do lado da sombra as pessoas sentavamse no chão,
encostadas às paredes. É fácil sentarmo-nos no chão quando viajamos.
Kidina e Luís procuraram um lugar na esplanada e sentaram-se
também.
Os pés explodiam dentro das sandálias. Ela baixou-se para
massajar os dedos. Os seios redondos transbordaram no decote do
vestido vermelho. Ao levantar-se encontrou o olhar de Luís pousado
neles. Tinha uma expressão ambígua, entre interessado e plácido.
Por uns instantes suspendeu o gesto de se levantar e
observou-o hesitante. Depois sorriu. Então vieram-lhe à memória as
perplexidades da personagem de Ítalo Calvino, o Sr. Palomar, sobre o
seio nu de uma mulher na praia, tomando banho de sol.
Afinal qual o olhar adequado para olhar um seio nu,
no caso
de Kidina seminu?
Desviar o olhar seria confirmar o tabu da nudez e seria, de
certa maneira, uma acusação.
Olhar distraidamente como se eles fossem parte da
paisagem,
também não. Era rebaixá-los ao nível de objector. Os seios não podiam
ser subestimados.
Talvez o olhar devesse percorrê-los atentamente, voluptuosamente. Bem,
mas neste caso a mulher poderia sentir-se invadida e reagir agressivamente.
E enquanto Kidina recordava as reflexões do Sr. Palomar,
chegou à conclusão que, nesta circunstância, não sabia como gostaria que
Luís tivesse olhado para os seus seios. Sorriu divertida. Ele
perguntou:
— De que ri?
— Estava a lembrar-me de Ítalo Calvino e das
perplexidades do Sr. Palomar, sobre um seio nu.
— Ah! Esse livro! Foi o último que publicou em vida.
Li algumas obras dele.
Ignorou totalmente a brejeirice do assunto. Respondeu
com a
literatura. Enfim, gostos...
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O empregado aproximou-se. Ela quis beber um
mojito, ele
também.
O verde da hortelã boiando entre o gelo criava uma sugestão
de frescura que era quase palpável.
Sorvia pequenos goles, apaziguada, quase deitada na cadeira
com uma perna para cada lado. O calor torna as pessoas mais
tolerantes com o seu corpo.
Luís comentou:
— Temos que ir à Bodeguita del Medio, experimentar os
mojitos
de Hemingway.
Kidina quis saber como se faziam e perguntou ao empregado.
— Fácil: juntam-se 2 cálices de rum, 3 colheres de sopa de
açúcar, 3 colheres de sopa de sumo de limão, hortelã, água mineral com gás, pedras de gelo e mexe-se.
Depois sorriu.
Do outro lado da praça, debaixo de um chapéu de sol, uma
mulher negra, corpulenta, sentada num pequeno banco, falava do
passado, do presente e do futuro.
O mojito esgotara-se nos copos, um torpor agradável
invadiu-lhe o corpo complacente. Um braço pendendo abandonado, o
outro sobre a mesa apoiando a cabeça, os olhos quietos, passivos,
deixando entrar as imagens dos que passavam. 0 tempo parado. De
repente, como se tivesse soado uma campainha de alarme, Kidina
levantou-se
— Vou consultar a santeira. Deve ser interessante. Venha
comigo, já pode começar a tirar apontamentos.
Atravessaram a praça. A santeira estava vestida de branco, um
vestido de algodão inteiro que a cobria até aos pés, ornamentado com
folhos largos, rematados com renda grossa. Tinha a cabeça envolta num
turbante branco com duas pontas de tecido formando uma laçada, que
pendia sobre o pescoço, do lado direito. A ornamentar o turbante,
sobre a orelha, um ramalhete de flores vermelhas de hibisco,
inacreditavelmente brilhantes, como se tivessem sido colhidas naquele
momento. Colares emblemáticos, de contas coloridas, ao pescoço e pul
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seiras no braço esquerdo. Fumava um charuto grosso enquanto
olhava para Kidina a aproximar-se vestida de vermelho, como se a
esperasse.
Ficaram a olhar-se por uns momentos, depois abriram-se num riso alegre, contagiante, caloroso e tão insólito, que
Luís ficou perplexo.
Estenderam as duas mãos uma à outra. Na mão esquerda da santeira
apareceu um lenço vermelho.
Os vestidos vermelho-branco, a pele branca-preta e a
energia que irradiava daquelas duas mulheres criou, por momentos, um ambiente magnético, mágico, que fez convergir para elas o olhar de toda a gente que estava próxima.
Olhando uma para a outra, era como se tivessem
descoberto ali que aquele encontro lhes estava prometido.
Não podemos ter a pretensão de explicar tudo.
Há coisas que, simplesmente, são inexplicáveis.
Sentou-se na frente da santeira e disse-lhe como se chamava. Ela invocou os bons espíritos, os anjos protectores, os
orixás e o Senhor Deus. Depois estendeu-lhe um baralho de cartas e
disse:
— Escolhe vinte.
A seguir abriu-as em cima de uma banqueta que tinha
na sua
frente. Observou-as atentamente e olhou para ela no fundo dos olhos.
—Tu és a filha querida de Oxúm e a protegida da
Virgem da Caridade do Cobre, padroeira de Cuba.
—
E quem é Oxúm?
— perguntou Kidina.
— Oxúm é a deusa do amor e das águas claras, foi amada e amou muitos orixás que lutaram por ela. Tu
és alegre, conversadora, leve como as folhas das palmeiras baloiçando
e gostas de dançar ao vento, mas às vezes choras escondida.
És como um sol para onde todos se dirigem. Deves ter
à
entrada da tua casa girassóis, que são as flores que se oferecem a
Oxúm. Este é o ano do teu amor e terás saúde.
Mas tem cuidado com Eleguá, o deus dos caminhos. É ele que
os abre e os fecha. Está à entrada e à saída e comanda o
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espaço, o tempo e o movimento. Destrói ou salva. Eleguá é um
menino caprichoso e susceptível. Quer receber os sacrifícios antes de
todos os orixás.
É preciso mimá-lo e tê-lo sempre contente dando-lhe
caramelos. Lembra-te de Eleguá e dos caminhos.
A santeira fez uma pausa e acrescentou:
— Veste-te de branco, isso agrada à Virgem da Caridade do
Cobre, de quem és filha também.
— Põe um copo de água limpa num sítio alto da tua casa.
Depois calou-se. Kidina pensou que ela tivesse acabado. Abriu
a carteira e colocou num recipiente 15 dólares, uma pequena fortuna
para ela.
A santeira procurou num saco algumas pedras e escolheu duas
que lhe ofereceu. A outro sítio foi buscar uma moeda de cinco
centavos.
— É para passares pelo corpo quando estiveres dentro de
água.
Põe pétalas brancas no banho.
Estenderam as duas mãos uma à outra.
Kidina tinha vindo do outro lado do mundo para aquele
encontro.