Os Homens de Kidina, col. Holograma, Lisboa, Âncora Editora, Maio de 2003, 196 pp. - ISBN 972-780-116-1

Capítulo V - pp. 125-129

Chegaram ao aeroporto de Varadero ao entardecer. Chovia e estava calor. A humidade envolvia tudo.

Quase à força, um grupo de bagageiros tirou-lhes as malas das mãos para as levar para o autocarro estacionado a quatro metros da porta de saída.

A luta pelos dólares que lhes garantia a sobrevivência. Ironicamente a moeda do inimigo.

A neblina não deixava ver a paisagem para lá da estrada. Algumas casas baixas com aspecto pobre, pouco trânsito. A noite caiu quase sem se dar conta por trás do céu encoberto.

Havana e o mítico Hotel Nacional já estavam iluminados quando chegaram.

Kidina entrou no quarto, pousou as malas e olhou a marginal iluminada. As cidades ficam mais bonitas à noite.

Estendeu-se na cama tal como estava, as malas junto à entrada, a gozar o prazer de se abandonar e sentir o silêncio.

Havana não é uma cidade barulhenta, nem apressada e o hotel também não.

Meia hora depois sentiu bater à porta. Era Luís, seu vizinho de quarto, a convidá-la para ir ao bar beber qualquer coisa antes do jantar. Iria lá ter.

Desmanchou as malas apenas no indispensável, tomou um duche e desceu.

Luís seria o seu companheiro no resto da viagem.

O dia seguinte começou cedo. Visita panorâmica da cidade. Quem viaja em grupo sabe que é assim. Por volta do meio dia chegaram à Praça da Catedral. O calor era insuportável. San­ / 126 / dálias. calções, um ou outro chapéu de palha. A praça estava repleta de turistas. Do lado da sombra as pessoas sentavam­se no chão, encostadas às paredes. É fácil sentarmo-nos no chão quando viajamos.

Kidina e Luís procuraram um lugar na esplanada e sentaram-se também.

Os pés explodiam dentro das sandálias. Ela baixou-se para massajar os dedos. Os seios redondos transbordaram no decote do vestido vermelho. Ao levantar-se encontrou o olhar de Luís pousado neles. Tinha uma expressão ambígua, entre interessado e plácido.

Por uns instantes suspendeu o gesto de se levantar e observou-o hesitante. Depois sorriu. Então vieram-lhe à memória as perplexidades da personagem de Ítalo Calvino, o Sr. Palomar, sobre o seio nu de uma mulher na praia, tomando banho de sol.

Afinal qual o olhar adequado para olhar um seio nu, no caso de Kidina seminu?

Desviar o olhar seria confirmar o tabu da nudez e seria, de certa maneira, uma acusação.

Olhar distraidamente como se eles fossem parte da paisagem, também não. Era rebaixá-los ao nível de objector. Os seios não podiam ser subestimados.

Talvez o olhar devesse percorrê-los atentamente, voluptuosamente. Bem, mas neste caso a mulher poderia sentir-se invadida e reagir agressivamente.

E enquanto Kidina recordava as reflexões do Sr. Palomar, chegou à conclusão que, nesta circunstância, não sabia como gostaria que Luís tivesse olhado para os seus seios. Sorriu divertida. Ele perguntou:

De que ri?

Estava a lembrar-me de Ítalo Calvino e das perplexidades do Sr. Palomar, sobre um seio nu.

Ah! Esse livro! Foi o último que publicou em vida. Li algumas obras dele.

Ignorou totalmente a brejeirice do assunto. Respondeu com a literatura. Enfim, gostos...

 / 127 /  

O empregado aproximou-se. Ela quis beber um mojito, ele também.

O verde da hortelã boiando entre o gelo criava uma sugestão de frescura que era quase palpável.

Sorvia pequenos goles, apaziguada, quase deitada na cadeira com uma perna para cada lado. O calor torna as pessoas mais tolerantes com o seu corpo.

Luís comentou:

Temos que ir à Bodeguita del Medio, experimentar os mojitos de Hemingway.

Kidina quis saber como se faziam e perguntou ao empregado.

Fácil: juntam-se 2 cálices de rum, 3 colheres de sopa de açúcar, 3 colheres de sopa de sumo de limão, hortelã, água mineral com gás, pedras de gelo e mexe-se.

Depois sorriu.

Do outro lado da praça, debaixo de um chapéu de sol, uma mulher negra, corpulenta, sentada num pequeno banco, falava do passado, do presente e do futuro.

O mojito esgotara-se nos copos, um torpor agradável invadiu-lhe o corpo complacente. Um braço pendendo abandonado, o outro sobre a mesa apoiando a cabeça, os olhos quietos, passivos, deixando entrar as imagens dos que passavam. 0 tempo parado. De repente, como se tivesse soado uma campainha de alarme, Kidina levantou-se

Vou consultar a santeira. Deve ser interessante. Venha comigo, já pode começar a tirar apontamentos.

Atravessaram a praça. A santeira estava vestida de branco, um vestido de algodão inteiro que a cobria até aos pés, ornamentado com folhos largos, rematados com renda grossa. Tinha a cabeça envolta num turbante branco com duas pontas de tecido formando uma laçada, que pendia sobre o pescoço, do lado direito. A ornamentar o turbante, sobre a orelha, um ramalhete de flores vermelhas de hibisco, inacreditavelmente brilhantes, como se tivessem sido colhidas naquele momento. Colares emblemáticos, de contas coloridas, ao pescoço e pul­ / 128 / seiras no braço esquerdo. Fumava um charuto grosso enquanto olhava para Kidina a aproximar-se vestida de vermelho, como se a esperasse.

Ficaram a olhar-se por uns momentos, depois abriram-se num riso alegre, contagiante, caloroso e tão insólito, que Luís ficou perplexo.

Estenderam as duas mãos uma à outra. Na mão esquerda da santeira apareceu um lenço vermelho.

Os vestidos vermelho-branco, a pele branca-preta e a energia que irradiava daquelas duas mulheres criou, por momentos, um ambiente magnético, mágico, que fez convergir para elas o olhar de toda a gente que estava próxima.         

Olhando uma para a outra, era como se tivessem descoberto ali que aquele encontro lhes estava prometido.   

Não podemos ter a pretensão de explicar tudo. Há coisas que, simplesmente, são inexplicáveis.

Sentou-se na frente da santeira e disse-lhe como se chamava. Ela invocou os bons espíritos, os anjos protectores, os orixás e o Senhor Deus. Depois estendeu-lhe um baralho de cartas e disse:

Escolhe vinte.

A seguir abriu-as em cima de uma banqueta que tinha na sua frente. Observou-as atentamente e olhou para ela no fundo dos olhos.

Tu és a filha querida de Oxúm e a protegida da Virgem da Caridade do Cobre, padroeira de Cuba.

E quem é Oxúm? perguntou Kidina.

Oxúm é a deusa do amor e das águas claras, foi amada e amou muitos orixás que lutaram por ela. Tu és alegre, conversadora, leve como as folhas das palmeiras baloiçando e gostas de dançar ao vento, mas às vezes choras escondida.

És como um sol para onde todos se dirigem. Deves ter à entrada da tua casa girassóis, que são as flores que se oferecem a Oxúm. Este é o ano do teu amor e terás saúde.

Mas tem cuidado com Eleguá, o deus dos caminhos. É ele que os abre e os fecha. Está à entrada e à saída e comanda o / 129 / espaço, o tempo e o movimento. Destrói ou salva. Eleguá é um menino caprichoso e susceptível. Quer receber os sacrifícios antes de todos os orixás.

É preciso mimá-lo e tê-lo sempre contente dando-lhe caramelos. Lembra-te de Eleguá e dos caminhos.

A santeira fez uma pausa e acrescentou:

Veste-te de branco, isso agrada à Virgem da Caridade do Cobre, de quem és filha também.

Põe um copo de água limpa num sítio alto da tua casa.

Depois calou-se. Kidina pensou que ela tivesse acabado. Abriu a carteira e colocou num recipiente 15 dólares, uma pequena fortuna para ela.

A santeira procurou num saco algumas pedras e escolheu duas que lhe ofereceu. A outro sítio foi buscar uma moeda de cinco centavos.

É para passares pelo corpo quando estiveres dentro de água. Põe pétalas brancas no banho.

Estenderam as duas mãos uma à outra.

Kidina tinha vindo do outro lado do mundo para aquele encontro.

 

 

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