Liturgia Pagã

 

«Novo acordo» para a tabuada

25º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro de Isaías, 55, 6-9

2ª leitura:  Carta de S. Paulo aos Filipenses, 1, 20-24. 27

Evangelho: S. Mateus, 20, 1-16

 

Aquela história do agricultor que teima em pagar o mesmo a quem trabalhou o dia todo como a quem pouco mais fez do que arregaçar as mangas, não é só um erro de tabuada: ofende o mais elementar sentido de justiça. Ainda por cima, o agricultor justifica-se dizendo que faz o que quer ao seu dinheiro, sem atender a sensibilidades. Não convence lá muito …

Quanto a S. Paulo, parece querer fazer-nos acreditar que morrer é muito melhor do que viver. Diz que Jesus Cristo é tudo para ele e portanto prefere deixar este mundo. Por fim, como que condescende em dizer que não será má ideia continuar mais uns tempitos por cá, com a desculpa de poder continuar a fazer o melhor pelos outros…

Em tudo isto, há várias coisas difíceis de «encaixar». Valha-nos a primeira leitura: que «a tabuada de Deus» se rege por um «novo acordo».

Sem dúvida que a carta de Paulo revela profundo misticismo (conceito difícil de definir, ou não fora afim a «mistério», como o de Deus e do universo): as alegrias da vida são símbolo da alegria em Deus; e os sofrimentos são parte da caminhada com Cristo a caminho da ressurreição (Carta aos Romanos, 8,17). Aliás, os sofrimentos alertam para a inconsistência da vida, como também estimulam a força do amor que deve conduzir as nossas acções mesmo até ao fim. A angústia da morte é mesmo mitigada, quando se sente o sabor de concorrer para que o «teatro da vida» seja aplaudido com entusiasmo. É agradável ter consciência de que entramos no palco com aprumo e beleza no gesto e no falar, e que aqueles que continuam a nossa acção recebem de nós as «deixas» devidas.

O que interessa não é o tempo que «brilhamos» em cena, mas o contributo imprescindível para que a vida continue. Quem sabe se o momento de marca mais duradoura não é a fugaz aparição de uma carinha, sorridente ou triste, entre cortinas que se fecham?

O místico a sério, porque tem consciência da grandiosidade do conjunto da obra, dá toda a importância quer às pequenas quer às grandes actuações, bem como a todo o cenário. Mesmo nos bastidores, não deixa de influir positivamente no esforço dos outros para o grande aplauso. Para ele, há harmonia entre as coisas do céu e da terra, não caindo na tentação de nada fazer sob a desculpa de se dedicar «às coisas do céu», como se fosse superior, por direito divino, aos que trabalham para que a terra não seja um inferno.

            A mensagem de S. Paulo pode ser clara: o ser humano, faça ele o que fizer, tenha a idade que tiver, é feito para Deus. E por isso, a nossa estrutura interior é de contínua insatisfação. Somos lançados para os caminhos da vida e é aí que a parábola de Jesus nos diz muito.

A realização da nossa vida, de um recém-nascido ou de um adulto, na saúde ou na debilidade, será sempre o fruto de um convite feito por Deus às horas mais desencontradas. Um convite pessoalíssimo, à luz do qual todos somos amados igualmente. Um convite que se confunde com a estrutura da nossa personalidade, habilitando-nos para trabalhar pela vida ao ritmo das possibilidades de cada qual (que na tabuada tradicional podem parecer igual a zero).

(E aqueles trabalhadores da última hora, que mal chegaram a arregaçar as mangas, não serão também um símbolo dos deixados de parte ou postos na rua, devido ao egoísmo dos companheiros, ganância, materialismo e até falta de horizontes vastos na gestão, sobretudo por parte de alguns «empresários» – que de grande só têm a conta bancária?)

Nascer é ter um convite para trabalhar. E a vida só revela um pouco do seu sentido a quem partilha da experiência do Deus da vida. Jesus, que vivia com Deus como um filho com o Pai, vem sublinhar que a vida humana é fundamentalmente um dom, sem lugar para classificações por antiguidade ou mérito. Nenhum tipo de nascimento ou de actividade dá direito especial ao «reino de Deus».

O mundo é obra de todos nós, em que o valor incomensurável de cada pessoa é base de contínua multiplicação. Mas no «novo acordo» por que se rege a tabuada de Deus, o «produto» acaba por ser só aquilo que é mesmo bom.

18-09-2011


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