24º Domingo do Tempo Comum (ano A)
1ª leitura: Livro de Bem-Sirá, 27, 33 - 28,9
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Romanos,14, 7-9
Evangelho: S. Mateus, 18, 21-35
É crença geral que como o fizermos
assim nos farão. Uma crença sustentada nitidamente pelas grandes
religiões do mundo, mas que se encontra sobretudo entre todos os
homens (crentes e não crentes) «de boa vontade». Como herança
cultural, esta crença deve muito ao desenvolvimento espiritual
gerado pelos grandes movimentos religiosos, como o
judeo-cristianismo que também inspirou o islamismo.
A sabedoria da vida ensina que à nossa
atitude de perdoar não corresponde sempre o perdão por parte dos
outros. Vê-se assim que a razão de perdoar não pode ser o perdão dos
outros, embora uma atitude de «perdão» tenha um efeito salutar de
bola de neve. É um facto social: o perdão desempenha um papel de
primeira importância na organização da sociedade, prevenindo e
eliminando conflitos, aumentando o nível de confiança na «bondade»
dos outros, criando uma comunidade em que não somos lobos uns para
os outros e fortificando, pelo exercício continuado, a nossa
capacidade de domínio sobre as situações adversas e a nossa
persistência em não perdermos de vista a comunidade ideal.
As leituras de hoje centram-se no Deus
que perdoa «porque» nós perdoamos (é a expressão de S. Lucas, 11,4,
que evita assim medir o perdão de Deus pelo nosso). O nosso acto de
perdoar, por muito imperfeito que seja, é apresentado nos evangelhos
(intimamente ligado ao princípio universal de «ama os outros como a
ti mesmo») como a melhor prova de abertura ao espírito de Deus.
A dimensão religiosa junta em Deus a
justiça e a «misericórdia» (conceito ligado, em várias línguas, ao
de «entranhas maternas»). Sem justiça e misericórdia, não há amor. O
acto de perdoar é possível na medida em que alimentamos a nossa
disposição para sermos sensíveis às situações de vida dos outros.
São sugestivas, as conotações
etimológicas de «perdoar», nas principais línguas: libertar da
culpa, ter paciência, suportar, não considerar, conhecer o outro
interiormente, estar de acordo, encontrar-se, ir com o outro,
deixar, libertar, desatar, permitir, conceder, renunciar, etc. É
notável o sentido de conhecimento íntimo do outro e de recriação de
uma relação humana, como que dando oportunidade a uma nova vida.
O termo grego mais utilizado na
Bíblia para «perdoar» (aphíemi) pode indicar, tanto na esfera
religiosa como na profana, libertar alguém de uma relação jurídica,
como do vínculo matrimonial, duma dívida, da prisão… Para que um
acto condenável não traga consequências negativas para o próprio, é
preciso como que «passar uma esponja» sem deixar o mínimo traço do
sucedido – um acto só possível a Deus, mas que pretendemos imitar.
Nem o amor se dissocia da justiça nem
há perdão se houver rancor. O que está mal e o que se fez de mal
deve ser honestamente identificado. Só assim uma experiência
negativa pode dar frutos bons, alertando-nos para o que é realmente
melhor e exercitando a capacidade de correcção. Deste modo, também
mais facilmente secamos as raízes do rancor.
A antiga cultura greco-romana já se
debruçava sobre o tema do perdão, por vezes difícil de conjugar com
a justiça. A indulgência era vista como capacidade superior de
compreensão do outro, que só aplica o castigo como uma medicina –
era uma virtude fundamental para a convivência harmoniosa entre os
«homens livres».
O Deus da Bíblia é um Deus de perdão.
Só o amor persiste em conhecer as razões que levam os outros a
determinadas acções, transformando o perdão num acto de confiança no
outro.
O perdão traduz a vontade de defender
uma civilização cheia de esperança; em as dificuldades aguçam a arte
de criar condições favoráveis à discussão do que é bom ou mau,
procurando a verdade e realizando o melhor possível.
A palavra «perdão» deriva de «dar».
«Dar por interesse» já é vender. O prefixo «per» intensifica o
sentido de «doar», indicando que se trata de um nível de acção
eminentemente generoso, resistente à indelicadeza e até traição.
Jesus Cristo pede um dificílimo acto
de fé: o de, com Deus, «jogar ao perdão». |