Domingo da Santíssima Trindade (ano
C)
1ª leitura: Provérbios, 8, 22-31
2ª leitura: carta aos Romanos, 5,
1-5
Evangelho: S. João, 16, 12-15
A razão humana não se poupa, no
seu esforço fantástico de procurar e desbravar caminhos entre o ser
humano e Deus; e de assim conseguir falar de Deus mostrando que dele
não se pode falar e rascunhando uma imagem de Deus mostrando que
dele não pode fazer imagem. Este cuidado em não lhe aplicar
conceitos e representações humanas continua bem patente no judaísmo
e islamismo.
Mas todas as religiões se
preocupam com a sistematização do seu «depósito de fé». É o
resultado das formulações históricas da multimilenária experiência
de Deus, quer de origem multicultural quer de pequenos grupos mais
ou menos fechados; quer testemunhada por «gente simples» quer por
célebres pensadores ou «santos» famosos.
Esse «depósito» é frequentemente
guardado como um tesouro em caixas fortes à prova de tudo, como
padrão único e inviolável da nossa relação com Deus.
E no entanto, todas a pessoas
verdadeiramente religiosas sabem que esses tesoiros jamais poderiam
ser uma espécie de relíquias de Deus ou fórmulas sagradas a que
basta uma pessoa agarrar-se para garantir a salvação.
O conceito estranhíssimo de uma
«Trindade que é Unidade indivisível» simboliza afinal a nossa
maneira de entender Deus como a Realidade verdadeira e como tal
completamente diferente do que podemos pensar ou sentir a seu
respeito («de Deus só sabemos o que ele não é», no dizer de célebres
teólogos), mas que se deixa adivinhar pela pessoa humana. Foi
extraordinariamente notável a experiência de Deus por um simples
judeu de há 2000 anos atrás – um «profeta», que revelou possuir uma
autoridade especial. Viveu poucos anos, num pequeno país, mas com um
avançadíssimo sistema religioso, e não faltaram discípulos para
continuar essa nova experiência de Deus. Não era rico nem era pobre.
Dava-se com toda a gente – e nisto é que se mostrava a força do
espírito de Deus, e o sinal progressivamente descoberto de que a
humanidade faz toda ela parte do mistério de Deus. A realidade é que
Deus está presente em qualquer estilo de vida, como diferentes
tentativas ou diferentes sinais para a revelação de Deus. Pela
espantosa experiência de Jesus e do que Jesus foi para os
discípulos, sentimos que Deus não estava ausente antes de Jesus nem
se retirou com a sua morte. Jesus crucificado e ressuscitado foi
«exaltado» por Deus e, no dizer de teólogos, «vive agora segundo o
modo de existência e de agir de Deus».
Jesus foi um rasgão no mistério
de Deus. De tal modo se evidenciou, de tal modo mostrou ser «filho
de Deus», que a tradição viu nele e na sabedoria ou espírito de Deus
uma unidade especial (donde terá vindo a ideia de «trindade-unidade»).
Uma vez que não aparece no Novo
Testamento, o conceito de «Santíssima Trindade» pode ser sobretudo
considerado como a expressão menos incorrecta de harmonizar a nossa
experiência dos vários “nomes de Deus”.
Não é preciso dificultar o
entendimento entre as principais religiões. A nossa fé confessa
“simplesmente” o Deus único, como os judeus e os muçulmanos. E Jesus
revelou como a vida só revela todos os seus sabores se a vivemos com
Deus.
Porém, de modo algum se pode
julgar negativamente este desejo de saber sempre mais, e de se
aproximar da realidade divina, não só pelo coração mas também pela
inteligência. Todo este esforço enriquece a nossa experiência
religiosa.
As contradições lógicas do
pensamento humano lembram a história tradicional daquele menino na
praia, procurando, com a sua conchinha, passar as águas do mar para
a cova que escavara na areia. Enquanto a humanidade for como este
menino, jamais deixará de sonhar com alcançar o impossível – mas por
isso descobre as mais criativas e originais maneiras de viver de
rosto virado para esse impossível, captando assim a mais «ecológica»
energia para os projectos mais grandiosos.
E enquanto uns brincam com as
conchinhas, outros preferem fazer-se ao mar (mesmo se com o cuidado
de não perder pé). Se o mar não fosse imenso, não se sentiriam
heróis. E na praia, já todos juntos, vivem do sorriso dos seus
sonhos, que pela vida fora os levarão mar adentro. Mas sempre como
crianças abraçadas pela imensidão. |