Ascensão do
Senhor (ano C)
1ª leitura:
Actos
dos Apóstolos, 1, 1-11
2ª leitura:
Carta
aos Efésios, 1, 17-23
Evangelho:
S.
Lucas, 24, 46-53
…retira-se, para a terra aparecer. É uma ideia que só vale por ser
bonita e nos pôr a pensar na eterna «charada» dos seres humanos e
Deus.
O Novo Testamento torna Deus tão próximo, em Jesus Cristo, que o
podemos sentir ao passear na praia, em banquetes e piqueniques, nas
flores e desertos, nas tempestades ou no aconchego do lar. Em Jesus
Cristo, Deus surgiu como uma pequena onda do lago e retirou-se como
um grande oceano – obrigando a imensidão de discípulos a pisar terra
firme e a descobrir paisagens novas. Jesus cumpriu tão bem a sua
missão que mereceu o nome de Cristo (o «ungido», o predilecto de
Deus) e ser reconhecido como «o Senhor» – «elevado ao céu» e chamado
a «sentar-se à direita de Deus», como dizem as leituras de hoje.
É verdade que todo o Novo Testamento reflecte o ambiente
«apocalíptico» próprio do Judaísmo – uma maneira especial de olhar
para a interacção de Deus com a história humana. Este ambiente é bem
retratado na «literatura apocalíptica», vigente sensivelmente entre
os anos 200 a.C. e outros 200 d. C. Aí se fala muito dos «últimos
tempos», do que se passará antes do «fim do mundo», desde
catástrofes a sinais prodigiosos que anunciam a vinda final de Deus
derrotando para sempre as forças do mal. Então surgiria, em toda a
perfeição e agrado, o Reino de Deus, reunindo todos aqueles que
lutaram pelo bem.
A leitura dos Actos termina com a promessa de que Jesus, com o poder
de Deus, «virá do mesmo modo que o viram ir para o céu». Imersos
numa mentalidade apocalíptica, os primeiros discípulos estavam
persuadidos que a manifestação definitiva do Reino de Deus estava
para muito breve, talvez ainda antes de eles morrerem (como se pode
ver em vários textos do N. T.). Aliás, é característico dos textos
apocalípticos falarem da sua época como sendo «os últimos tempos».
Curiosamente, o Livro do Apocalipse, que termina com a prece «vem,
Senhor Jesus», deixa aos leitores uma grande imprecisão de tempos:
marca sobretudo ideias centrais e intemporais como a luta contínua
entre o bem e o mal, a sucessão de tempos de paz e de calamidade, o
papel de líderes orientados uns para o bem outros para o mal, e
sobretudo que é preciso resistir sempre e ser fiel às convicções bem
fundamentadas e continuamente postas à prova (e portanto
continuamente reavaliadas e melhoradas). Entre os livros do Novo
Testamento, será talvez o que melhor projecta a grande aventura da
humanidade, quando o grande oceano deixa a descoberto planícies e
montanhas – o campo de acção, vasto e ardiloso, para os seres
humanos.
– «Bom, ele foi-se de vez, não nos resta mais do que ir à vida!» –
não é o que os discípulos podiam ter pensado? (Lucas, 24, 13-14;
João, 21, 1-3). A verdade é que é no ir à nossa vida, como ela é,
que manifestamos estar ou não de acordo com a mensagem de Jesus; não
é no aguardar nomeações como futuros «ministros» do sonhado «reino
de Israel» (Actos, 1, 6; Mateus, 20, 20-23). Os Actos dos Apóstolos
tentam abrir a história real dos discípulos de Jesus, com todos os
tropeços de quem não fica sentado a olhar.
É natural que os discípulos tenham ficado tristes com a morte de
Jesus (podemos senti-lo nos evangelhos e particularmente nas
palavras com que Jesus se teria aberto com os discípulos, na última
ceia, segundo o evangelho de João, 13, 33-17, 25). Mas descobriram
que o afastamento de Jesus lhes fez sentir o Reino de Deus como obra
das nossas mãos, possibilitando um descontraído quão estimulante
«aperto de mão com Deus».
Jesus não impôs ideias aos discípulos, mas exigiu atitudes: para com
Deus como Pai, para com os outros como irmãos – pressupondo a grande
exigência de todos os profetas: a atitude de escutar. Quem o segue,
segue-o livremente, com a originalidade e criatividade de quem
abandonou a dependência própria da menoridade espiritual.
O relato da Ascensão é a forma imaginosa de dar relevo ao sentido da
morte de Jesus: com ela, os discípulos «perderam Jesus» mas «acharam
o Cristo». E em Jesus Cristo se revelou especialmente «a força de
Deus» a acompanhar-nos pelos tempos fora.
A «elevação» de Cristo na Ascensão é o mesmo «levantar-se» da morte
(sentido geral dos termos gregos usados para descrever a ideia de
ressurreição). São duas imagens para ilustrar a riqueza de um único
fenómeno central. E a descrição aparentemente tão materialista do
«contacto» dos discípulos com Jesus pós-morte é a mais expressiva
maneira, nesse tempo, de afirmar como Jesus não era nem um fantasma
nem um corpo chamado de novo à vida – mas que existia realmente e
podia ser sentido por quem dele se quisesse aproximar, como sendo o
mesmo Jesus que viveu e morreu.
Também cada um de nós é uma onda que ora sobe ora se retira nas
praias da vida. Ao subir, tanto pode destruir castelos de areia como
excitar a alegria de crianças que chapinham; e ao descer, tanto pode
deixar destroços como revelar as riquezas do fundo do mar.
Afastamo-nos dos outros e dos problemas; investimos pelos outros e
para vencer problemas. Em todas as marés, a presença de Deus faz-se
sentir no vai e vem de muitas ondas. E quando parece que o perdemos
de vista, deparamos com uma imensidão de terra para trabalhar!
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