Domingo VI da
Páscoa (ano C)
1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 15,
1-2, 22-29
2ª leitura: Livro do Apocalipse, 21,
10-14, 22-23
Evangelho: S. João, 14, 23-29
Toda a gente
sabe: caminhamos na vida como ao longo de uma tortuosa espiral, em
que ora subimos ora descemos; ora nos colamos ao vector central ora
parecemos sair da órbita. Mas esquecemos que todo o caminho
percorrido, por mais estranho, perigoso e «desviado», é património
adquirido não só para a experiência de cada qual como para a do
conjunto da humanidade.
Por isso, quando
dizemos que alguma coisa do passado ou do presente está mal, de
pouco vale se não procuramos modificar o rumo das coisas – o que,
por sua vez, estará sujeito a outros desvios e correcções. A
sabedoria é transformar o passado em «material de reciclagem» para a
nossa actividade no mundo, tirando partido dos próprios erros de
construção, como acontece com as obras de engenharia.
Desde o Novo
Testamento que na história do Cristianismo se vêem as tortuosidades
a par da força do vector central (que poderia ser identificado com o
«Artigo único» do domingo anterior). Este vector é como uma melodia
simples que se deixa ouvir em cada ser humano que nasce, lembrando
como somos companheiros caminhando para um objectivo. Jesus recordou
com arte magnífica essa melodia em que Deus se manifesta como a
fonte e o apoio para a nossa busca de justiça e de paz. E porque
precisamos da sua força, unimo-nos à sua volta, chamando-lhe «Pai
nosso». E se formos sábios, continuamos juntos, discutindo o melhor
processo de anunciar «a boa nova» que organize a sociedade.
É difícil, porém,
anunciar e organizar sem impor as nossas ideias e modelos. Assim
aconteceu aos primeiros cristãos (ler todo o cap. 15 dos Actos): os
que tinham vivido no judaísmo dificilmente largavam os seus costumes
culturais (marcadamente religiosos), mas o mal consistia em que os
queriam impor aos novos cristãos de outras culturas. Esqueciam a
recomendação de Jesus: não adianta remendar um tecido velho com pano
novo, pois o rasgão ficará maior (Marcos, 2, 18-22). S. Paulo e
Barnabé não queriam estes maus remendos, e «os Apóstolos e os
Anciãos reuniram-se para examinar a questão» (Actos, 15, 6). Aí S.
Pedro falou claro: «Porque tentais agora a Deus, querendo impor aos
discípulos um jugo que nem os nossos pais nem nós tivemos força para
levar?» E então, sentaram-se em comum para redigir o texto exposto
na 1ª leitura.
Paulo e Barnabé
não são enviados como gente importante mas como pessoas honestamente
dedicadas ao plano de «Deus & nós». Só pessoas autênticas é que
podem dizer: «o Espírito Santo e nós próprios tomámos uma decisão».
Esta fórmula implica uma aturada discussão comunitária, em que a
humildade verdadeira é o reconhecimento da dignidade de cada qual
como templo do Espírito Santo (como diz o evangelho).
O erro é
intrínseco a toda a experiência verdadeira que não se cansa de
procurar a verdade. Assim é que S. Paulo acusou S. Pedro de vacilar
na aplicação do que ficara decidido: «opus-me frontalmente a ele,
porque estava a comportar-se de modo condenável» (carta aos Gálatas,
2, 11).
Porém, «sede simples como pombas
e prudentes como serpentes» (Mateus, 10, 16). O contexto histórico e
a necessidade de bom entendimento entre os protagonistas,
aconselharam exigir aos diferentes grupos culturais de cristãos que
não manifestassem publicamente comportamentos capazes de ferir a
sensibilidade moral e religiosa uns dos outros (ferida que pode
chegar a ser muito grave). Hoje veríamos nisso um simples exemplo de
prudência e boa educação...
A Igreja é
«católica» no sentido em que reúne todas as diversidades humanas e
vitaliza os talentos de cada qual para que todos possam trabalhar na
grande «vinha do Senhor» (Mateus 20, 1-16). O Espírito de Deus não é
propriedade de ninguém. No Domingo de Pentecostes, celebraremos a
expansão deste Espírito por toda a humanidade. O que só aumenta a
obrigação de cada qual em ter consciência do que faz, do que ouve e
do que diz, atento à «melodia simples» que anima a turbulência da
«espiral da vida». |