Domingo V da Páscoa
(ano
C)
1ª
leitura:
Actos dos Apóstolos, 14, 21-27
2ª
leitura:
Livro do Apocalipse, 21, 1-5
Evangelho:
S. João, 13, 31-35
Não será o sonho de quem se vê aflito perante o número
infindável de portarias e seus artigos, que só aumentam as dúvidas –
quando não entram em contradição?
Para o autor do Apocalipse, uma coisa assim só seria
possível com «um novo céu e uma nova terra», onde os seres humanos
já não encontram lugar para a maldade e tristeza, porque todos podem
seguir os impulsos do seu coração e agir de um modo tão benéfico
para todos que será patente que «Deus habita com os homens». Enfim,
a forma perfeita do «reino de Deus», pela qual vale a pena «sofrer
algumas tribulações», como se lê nos Actos dos Apóstolos.
Já é corrente dizer coisas lindas como «pelo sonho é que
vamos»… mas o que espanta é que é mesmo verdade!
Se não tivermos o sonho de um artigo único a orientar a
vida, não podemos sonhar com um clima de confiança entre os seres
humanos, assente na vontade de desmontar os caminhos da injustiça e
de descobrir a harmonização possível entre o que é bom para cada
qual e para a comunidade em conjunto. Só um artigo único pode ser
suficientemente interiorizado para ser eficaz nos nossos amores, nos
nossos negócios e nas mais loucas aventuras.
O evangelho fala deste «artigo único» (o Novo Testamento
fala dele muitas vezes). É bem conhecido, mas a verdade é que passou
a ser olhado apenas como bonitinho e «beato» – até consta que os
próprios discípulos de S. João estavam fartos de o ouvir tantas
vezes! Também não basta cantar «como é belo amar como Jesus nos
amou»…
O artigo único é muito sério: como é que Jesus nos amou?
- Pelos vistos, procurou trabalhar e ser bem aceite no
seu meio, sendo facilmente identificado como «o filho do
carpinteiro».
- Não considerou a sua vida quotidiana como lixo, mas
serviu-se dela para se tornar adulto e solidificar a estrutura
necessária para a missão a que se sentia chamado (Lucas, 2, 52).
- Reflectiu seriamente sobre a validade e solidez do seu
projecto de vida, atento ao que podia dar aos outros de melhor
(Lucas, 4, 1-13, Mateus, 7, 24-29).
- Para realizar a sua missão, não hesitou, por vezes, em
demarcar-se de familiares, amigos e gente influente na sociedade –
mas apontando razões, atento ao que era positivo e a como aproveitar
as capacidades de cada qual (lembrar os episódios da samaritana em
João, 4; da «pecadora» em Lucas, 7, 36-50; a parábola dos
«trabalhadores da vinha» em Mateus, 20, 1-16;…).
- Preocupou-se com o bem-estar físico e espiritual das
pessoas em concreto (sobretudo das mais abandonadas socialmente).
- Opôs-se à classe dirigente (Mateus, 23) como símbolo
das más consequências da «institucionalização da vida», um fenómeno
que dificulta a evolução positiva da sociedade (e portanto da
religião), ao dificultar o entusiasmo e as energias insubstituíveis
de cada qual, provocando uma «igualização por baixo», com o que só
lucram alguns detentores de poder.
- Aceitou e publicitou a morte como manifestação da
vontade em querer deixar aos outros alento para viver o mais
plenamente possível. Consciente de que a sua posição firme em defesa
do bem lhe trazia o risco de morte violenta. Sem ter vergonha de
chorar e de gritar a tristeza e dor, sobretudo por se sentir
sozinho.
O artigo único é exigente, porque
nos obriga a pensar como é que podemos fazer as coisas da melhor
maneira possível, mesmo as mais corriqueiras ou as da nossa vida
íntima. Vai contra a tentação comodista de não ter que reflectir
sobre o que é que está bem ou está mal. Mas é uma força que nos
acompanha do nascimento à morte e que permite que cada um de nós
seja uma presença animadora para os outros ao longo de toda a vida. |