Liturgia Pagã

 

Mais as vozes que as nozes

4º Domingo da Páscoa (ano C)

1ª leitura: Actos, 13, 14.43-52

2ª leitura: Apocalipse, 7, 9.14-17

Evangelho: S. João, 10, 27- 30

 

 

Não é só nas feiras que encontramos vozes assim: onde o negócio pode depender sobretudo de berrar mais alto do que os outros e de os injuriar como sendo estes os aldrabões. Ai dos concorrentes desconhecidos! Então, forma-se um coro das vozes «da terra», a atacá-los com tanto maior ferocidade quanto, de facto, melhor for o produto do recém-chegado. E assim se pode fazer dinheiro a vender aquilo que se não tem.

As vozes que não têm nozes são tanto mais perigosas quanto mais se escondem por trás de altos cargos, apregoando sabedoria e honestidade que talvez nem sequer se tenham esforçado por adquirir (no fundo, reconhecem ser este um produto do mais alto valor), e não hesitando em abafar pela força as outras vozes. Tal como os falsos pastores, imitam a voz do verdadeiro, trazendo a confusão e perdição para o rebanho.

A este problema se refere a 1ª leitura. É um comportamento tipicamente humano, que se encontra em todos os lugares e esferas sociais, tornando-se muito mais pernicioso na esfera mais delicada – a religiosa (opondo civilizações inteiras). O Antigo Testamento defronta-se frequentemente com a questão dos «falsos profetas» (do que é magnífico exemplo o capítulo 23 de Jeremias). S. João tinha razões de sobra para sublinhar que Jesus era o pastor verdadeiro, dedicando a esse tema todo o capítulo 10 do seu evangelho (onde se lê como a parábola do bom pastor provocou divisões entre os judeus e forte oposição a Jesus).

Não agradará muito aos ouvidos modernos esta história de sermos comparados a ovelhas e muito menos a um rebanho. Mas na tradição dos povos bíblicos, a dedicação do pastor ao rebanho é a imagem clássica das relações entre os chefes e o resto do povo. Os reis eram «pastores», cujas qualidades pessoais e boa escolha de colaboradores lhes possibilitavam um vasto leque de informações e conhecimentos, para harmonizar a diversidade e choques de interesses de todo um povo. Esta imagem facilmente se aplicava, na esfera religiosa, ao «cuidado» de Deus pelos seres humanos.

E a ovelha era a principal propriedade do povo israelita, pelos múltiplos benefícios que dela tiravam, e por ser mansa e dócil ao pastor. Era o animal escolhido para sacrificar em rituais religiosos (lembremos a importância do «cordeiro pascal», imagem que o Livro do Apocalipse tanto explora).

No evangelho e na 1ª leitura, o verdadeiro pastor dá «a vida eterna». E que há de mais central do que a vida?

Na cultura hebraica, não existe o nosso conceito de «vida», mas somente o de seres «vivos», designando características bem concretas, como respiração – o «espírito» ou sopro é que dá vida e gera movimento (ao nível físico e espiritual). Viver é conhecer, amar, trabalhar, gozar, ter saúde, alegria, sucesso… é ser feliz. Esta noção tão concreta de vida está na base da distorcida imagem de «ressurreição» como restabelecimento de todas as características do corpo que conhecemos. Sendo o bem mais precioso, a vida é a maior recompensa de Deus, e a morte o maior castigo. Assim, Vida aparece ligada a Bem e Justiça.

Porém, a verificação de que fazer o bem não nos livra do mal e da morte, e de que «os maus» é que vivem bem (salmo 73,2-14), levou ao aprofundamento do tema. Só Deus é «perfeitamente vivo» – e por isso tem que existir, mesmo para os seres humanos, uma forma mais alta de vida: a vida eterna, a vida por excelência – mas a ideia de imortalidade só aparece claramente no Livro da Sabedoria (2; 3,1-12) e no Livro 2º dos Macabeus (7,9-14).

Não está em questão renunciar a viver este mundo, saindo dele como quem sai de um barco a afundar-se. No Novo Testamento, a vida (eterna) é a forma perfeita do Reino de Deus, e para «entrar na vida» é imprescindível lutar neste mundo pela justiça (ver especialmente Mateus, 19, 16-29 e Lucas, 10, 25-28). Esta exigência já é bem manifesta nos profetas do Antigo Testamento e na «escola de 40 anos» do povo israelita no deserto.

Jesus Cristo dá essa vida, como terá dito à samaritana (João, 4, 14). É exemplo de como a «vida eterna» enobrece e fortifica a nossa luta. Os seus discípulos, até hoje, reconheceram que valia a pena dar «muitas vozes» à sua mensagem, formando uma verdadeira polifonia à volta do tema central, apontando para o que vale mais a pena, para um centro que justifique a existência humana.     

«Noz» e «núcleo» provêm do mesmo radical, com o sentido geral de solidez e centralidade. Compete a quem lança a voz reflectir honestamente se está mesmo interessado numa «noz» sólida e dispor-se a melhorar sempre pelo diálogo honesto com as outras vozes – mas também compete às «ovelhas» (evangelho) ponderar e reconhecer a solidez de cada uma das vozes.

20-04-2010


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