Liturgia Pagã

 

O Homem que lia a Escritura

3º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Neemias, 8, 2-10

2ª leitura: 1ª Carta aos Coríntios, 12, 12-30

Evangelho: S. Lucas, 1, 1-4; 4, 14-21

 

Fechou o Livro e, fixando os ouvintes, disse em voz clara e calma: «cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». Todos fixavam os olhos nele – mas o resto da história só será contado no domingo seguinte. Hoje apenas se diz que «ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam». Levou três anos curtos (se é que não só um), mas terrivelmente cheios, a lembrar os textos mais significativos da dramática e empolgante aventura do Homem com Deus.

Continua difícil receber e compreender um «Messias», escolhido para um reino «que não é deste mundo» (João, 18, 36). Até aos tempos de Cristo, era notório que o povo hebreu queria um rei, um Messias, que lhe trouxesse a prosperidade material e a supremacia sobre os outros povos, julgando ser essa a única maneira de consolidar a paz e de mostrar a todo o mundo que era o povo eleito de Deus. Mas seria necessário o desejo de um salvador, longe de projectos nacionalistas, para que o espírito se tornasse mais receptivo à mensagem do Homem que lia a Escritura.

Este Homem guardava atrás de si uma longa tradição: Esdras e Neemias (meados do s. VI a.C.) também eram homens que sabiam ler as escrituras. A 1ª leitura, aliás, marca o começo histórico do Judaísmo: o exílio despertara os mais ricos traços de espiritualidade, sobretudo através dos profetas; mas o regresso à «terra prometida» foi quase só de membros da tribo de Judá: nasceu assim o movimento judaico (o desprezo pelos samaritanos provém da mistura destes com os povos vizinhos, desde a queda de Samaria em 721 a.C.). Porém, nunca mais os Judeus foram independentes como nação, excepto alguns anos durante a campanha dos Macabeus (séc. II a. C.). Foi-lhes apenas concedido um «estado teocrático», uma comunidade religiosa com regalias especiais e separada dos outros povos.

  Os «retornados» choravam ao escutar a leitura clara e bem explicada pelos Levitas, a quem competia o estudo da Palavra de Deus (1ª leitura). Choravam como sinal de penitência, segundo um costume religioso que ainda hoje se reflecte na liturgia da Quaresma. Também chorariam de saudade. Foi então que o Homem que nesse tempo lia a Escritura (Esdras) disse a todo o povo: «este é um dia grande consagrado a Deus; não vos entristeçais – porque a alegria do Senhor é que é a vossa força».

No Evangelho de hoje, o Homem que lia a Escritura (Jesus) encontrou a passagem de Isaías própria da entronização de um profeta: é o Espírito do Senhor que o leva a anunciar a Boa Nova aos pobres e a libertar os oprimidos e a proclamar um ano de jubileu. S. Lucas (muito livre na organização do seu material – até a citação de Isaías resulta da combinação de temas dos capítulos 58 e 61), é muito terra-a-terra, na linha dos antigos profetas, ao referir a organização injusta da sociedade: há gente sem meios de subsistência, há vítimas de extorsões abusivas e da má-fé de jogadas tanto políticas como económicas. Todos nós nos devemos preocupar pela justiça, criando, quanto possível, uma nova ordem (o jubileu era um ano propício para o perdão de dívidas e a libertação de escravos, como que restaurando as potencialidades da criação e todos pudessem mostrar o que valiam; também é interessante notar como muitas cenas de Jesus, como esta, se passam ao sábado – o dia de descanso, apogeu da criação, em que desaparece todo o sofrimento).

Todos os que se sentem ou são postos à margem da sociedade, formam parte do novo povo de Deus, em pé de igualdade com judeus e gregos, doutores e servos, cada qual exercendo os dons próprios, para o bom funcionamento do bem comum (2ª leitura).

Mas para tanto é necessário que todos se sintam estimulados para contribuir para um mundo melhor e que portanto se esforcem por desenvolver a sensibilidade aos valores próprios de uma vida com qualidade.

Porém, é ao nível da própria Igreja católica, que se encontram muitos empecilhos à formação de «um só corpo» onde cada qual exerce a sua função de modo livre e responsável. Por um lado, fica-se facilmente com a impressão de que os únicos receptáculos dignos para o Espírito de Deus são as pessoas «bem posicionadas na vida», sobretudo com «úteis» ligações ao mundo da economia, da política, dos media… Convidar só estes a falar em público e a emitir a sua opinião e testemunho será uma boa técnica de marketing do prestígio social do catolicismo mas não toca o fundo religioso das pessoas.

Por outro lado, aqueles que revelam dons adequados à dedicação ao «reino de Deus» facilmente se tornam prisioneiros de um sistema rígido, favorável à «deformação profissional». Nunca é demais, nos «ministros de Deus», a cultura geral, urbanismo e competência em relações humanas. Sem estas qualidades, o mais sincero espírito de Deus pode ficar como «a luz debaixo do alqueire» (Mateus, 5,15).

Especialistas e figuras mediáticas… todos são necessários, desde que juntem a energia própria com a energia dos que sobretudo vivem os problemas do vulgar dia-a-dia. Não serão estes e muitos outros indispensáveis para que o «corpo de Cristo» tenha pés robustos para andar e uma cabeça com todos os neurónios para pensar? A riqueza do cristianismo está na sua infindável variedade, e cada um de nós, qualquer que seja a sua função, é chamado a testemunhar «a luz de Cristo».

Afinal, o que é que pensaria e quereria o Homem que lia a Escritura?

 

Ciro, Esdras e Neemias

O Livro de Neemias forma um conjunto com o Livro de Esdras, na sequência dos dois Livros das Crónicas. Estes livros pretendem retratar minuciosamente a história do Povo de Deus. Esdras e Neemias contêm muitos elementos historicamente comprovados, embora com atropelo das datas, por vezes com inversões da cronologia da ordem de várias dezenas de anos (o cronista dos quatro livros viveu cerca de cem anos depois de Esdras e Neemias). Estes dois homens trabalharam dedicadamente na reconstrução de Jerusalém, no século V a.C., depois de Ciro ter libertado os Judeus do cativeiro de Babilónia (538 a. C). Ciro terá sido o único rei estrangeiro a quem os Judeus deram o nome de Messias (Ungido), pois revelou-se um verdadeiro enviado de Deus para proteger o «povo eleito». Os reis persas eram tradicionalmente tolerantes, mas Ciro bem que pode ser uma figura inspiradora do movimento ecuménico: além de facilitar aos Judeus a reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém e a restauração do culto, reconhecia o «Deus único» por trás das diferentes experiências religiosas de diferentes povos. Superando as diferenças de nomes e de grupos religiosos, soube «dar a Deus o que é de Deus».
 

23-01-2010


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