4º Domingo do tempo comum (ano
C)
1ª leitura: Jeremias, 1, 4-5, 17-19
2ª leitura: 1ª Carta aos Coríntios,
12, 31 – 13,13
Evangelho: S. Lucas, 4, 21-30
O texto de S. Paulo (2ª leitura)
ficou célebre na história como «hino à caridade» ou, ao estilo
moderno, «hino ao amor». Tanto pela riqueza do conteúdo como pela
beleza literária. Mas nunca o poderia ter escrito, se não tivesse
escutado o convite de uma pessoa que ao princípio lhe parecia
execrável e que, entre outras coisas nada literárias, atacou a
dureza de ouvidos dos judeus do seu tempo e especialmente dos chefes
religiosos. Jesus não podia ser recomendável para um fariseu educado
e coerente como S. Paulo. Mas Paulo era educado a sério – de outro
modo não seria capaz de mudar as ideias e métodos de acção,
preferindo o terreno fértil mas penoso de não adormecer na busca da
verdade.
Nessa procura, encontra uma força
que consegue romper as correntes mais pesadas, a fúria das águas e a
fúria dos homens. Será que ele conhecia a famosa obra de Aristóteles
«Ética a Nicómaco»? Aí se lê que «a virtude está no meio» – não no
aconchego de dois braços amorosos mas num cume de escarpas íngremes
e escorregadias (onde é tão bom encontrar também aqueles dois
braços!). O que importa é procurar manter-se longe do abismo. E que
vista panorâmica!
Mas de nada me vale o cume se não
souber olhar. Só o sabe quem se afoita a uma visão equilibrada sobre
as realidades do mundo – do cume da benignidade, da paciência, da
justiça e da verdade, enlaçadas pela prudência e «bom senso». Só o
amor sabe dar remédios amargos, com o objectivo honesto do «bem
comum». S. Paulo afirma-o claramente, logo no capítulo seguinte ao
«hino do amor»: por muito lindos que sejam os poemas, de nada servem
se não forem utilizados para «edificação da comunidade».
Os judeus do evangelho ficaram
«chocados» por um simples filho de carpinteiro se arrogar tanta
liberdade e sabedoria – e quiseram-no impedir de «seguir o seu
caminho». Mas Jesus, que tinha um projecto equilibrado, calmamente
«continuou».
Se olharmos para Jeremias (1ª
leitura), vemos como ele receava enfrentar o povo; mas Deus avisou-o
de que, se não se preparasse para defender a verdade, seria a
primeira vítima da mentira. E também Jeremias se lançou à aventura.
Jeremias e Jesus foram chamados a
defender corajosamente uma vida cada vez mais humana, onde ninguém
seja um projecto inútil.
Quando somos conscientes de que há
projectos a morrer, «somos chamados» a dar sentido a essas mortes
precoces – e toda a morte é precoce, como poetisa Rainer Maria
Rilke. Particularmente à morte dos chamados «inocentes»,
«desprotegidos» ou que nem sequer tiveram tempo de ter um nome. Cada
um desses, cada um de nós, é de facto insubstituível. Todas as
flores murcham e algumas nem chegam a abrir. Mas todas testemunham a
vida. Precisamos de não ter medo de enfrentar esta realidade,
ganhando forças e sabedoria para melhorar um ambiente propício a uma
humanidade colorida e saudável. Quantas vezes as nossas atitudes e
políticas reflectem uma deserção cobarde perante as exigências do
amor?
Jeremias podia ter morrido muito
mais cedo ou podia ter-se recusado a ao bem comum. Talvez outro
profeta viesse a fazer o seu trabalho de um modo mais espectacular
(não necessariamente melhor). Mas não teríamos aquele Jeremias
esquisito que discutia com Deus e lhe lançava à cara quanto sofria
em termos de solidão, incompreensões e perseguições, e até de
abandono e desprezo da parte de familiares e de amigos abortados.
Nem Jeremias nem Jesus fecharam os
olhos perante o «belo horrível» da «luta pela vida» de toda a
humanidade. O equilíbrio da vista panorâmica permitiu uma sensata
aproximação aos projectos daqueles com quem se cruzavam. Se não
quisessem sair da comodidade do seu cantinho, não seriam
responsáveis pelo envio de muitos projectos, sempre de algum modo
originais e nessa medida insubstituíveis, para a linha de morte da
guerra da vida?
«Caridade» ou «amor»? O hebreu,
grego e latim, já misturam diferentes radicais, mas sobressai uma
ideia central: o afecto entre os seres humanos e entre estes e o
próprio Deus, implicando um movimento de aproximação e carinho. O
grego «charis» aponta para aquilo que brilha, é belo, alegra e dá
prazer, e o radical indo-europeu «gher» evidencia o amor e o
desejo. Até que ponto é que os «grandes padres do cristianismo»
foram vítimas do maniqueismo, associando o «amor» ao «diabólico
prazer carnal», e pintando a «caridade» de cores só «angélicas»? A
teologia moderna já conquistou «a visão panorâmica do amor»: é um
só movimento de relação afectuosa, benevolente, juntando as
características mais racionais às afectivas e místicas. S. Paulo
dá conta destas vertentes (1ª Coríntios,14): «cantarei com todo o
entusiasmo, mas igualmente com a inteligência». Só o amor
inteligente, culto e educado é que é eficiente.
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