Liturgia Pagã

 

P'ra viver há que ter jeito

2º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Livro de Isaías, 62, 1-5

2ª leitura: 1ª Carta aos Coríntios, 12, 4-11

Evangelho: S. João, 2, 1-12

 

«Não queiras fazer num dia

O que para dois foi feito:

P’ra morrer, basta viver

P’ra viver, há que ter jeito…»

            (Evaristo de Vasconcelos)

            (O autor sabe bem o que diz – teve o grande jeito de ser padre jesuíta, notável psicólogo… e caminhar feliz para os 97 anos!).

 

A Mãe de Jesus tinha mesmo jeito para levar o filho! Até fez de conta que não se lembrava do que lhe tinha custado vê-lo a fugir de casa aos 12 anos, e da estranha resposta com que ele se justificou, ao estilo de um adolescente cheio de si. E agora, homem feito, volta a mostrar-se longínquo… (lembra outra saída de Jesus quando um dia ouviu que a sua mãe e irmãos o procuravam, e respondeu (Mateus, 12, 46-50): «quem fizer a vontade de meu Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe»).

Sinceramente: no meio de uma festa de casamento, não poderia falar com mais jeitinho com a mãe – logo ele que foi conhecido por ser de boas palavras com toda a gente?

Contudo, a resposta de Jesus era corrente (e ainda é) para dizer que o assunto não lhes dizia respeito (o termo «mulher» não era depreciativo na cultura grega, em cuja língua foi escrito o Novo Testamento) e que não parecia o momento oportuno para agir.

Por outro lado, nesta passagem, é expressivamente destacado, pela positiva, o jeito singelo e feminino da Mãe de Jesus e como as dicas que ela deixou aos serventes revelam plena confiança na bondade, inteligência e poder do seu filho. E no final, como não podia deixar de ser – ou não haveria história… – o vinho novo era muito melhor do que o outro!

Simbolizava-se, assim, a supremacia da «boa nova» trazida por Cristo. Aliás, para o autor do 4º evangelho, a dimensão simbólica das palavras e dos factos é fundamental: o que interessa são as ideias e valores veiculados no que foi descrito como um facto (mais ou menos histórico) – e o que importava sublinhar era o sentido da missão de Jesus como «o Cristo (o Ungido, o Eleito) de Deus».

Uma lição desta cena quase pitoresca é de que não há lugar para ingerências familiares, quando pode ficar em causa o bem comum intimamente ligado ao «reino de Deus» – por outro lado, a clareza de visão de quem procura este «reino» permite as melhores respostas às conveniências pessoais. (Já Platão dizia que os governantes deviam ser os reconhecidamente «amigos da sabedoria» e não os «amigos» do dinheiro, do poder ou do interesseiro pequenino grupo de aduladores…).

Mas também se fala, neste domingo, da «nova Jerusalém»: dela diz Isaías que se hão-de invejar a justiça e a glória. O termo hebraico traduzido por «glória» significa o «peso» de uma coisa, o seu valor real, a sua importância; o renome e a fama são apenas uma consequência. O termo «justiça» aplica-se a Deus como modelo supremo de toda a integridade; e aplica-se aos outros seres na medida em que estes reflectem a justiça divina. É esta a cidade humana «com que Deus quer casar»: uma cidade onde os habitantes se esforçam por melhorar os seus próprios dons, que, quanto mais diversos, maior riqueza total irão produzir (2ª leitura).

Deus revela-se o maior fã possível do amor humano: trata essa «cidade» como a namorada que um dia há-de ser sua noiva (apesar de facilmente se deixar aliciar em muitas «aventuras»… – basta ler os Profetas!); e Jesus compara o reino de Deus à mais festiva das bodas (Mateus, 22, 1-14).

Curiosamente, é no evangelho de João, carregado de simbolismo e de misticismo, que Jesus como que é forçado, pelas peripécias de um vulgar casamento, a «mostrar o que vale». Nos termos do próprio evangelista, deu-se aqui «o começo dos sinais» de Jesus – é o único evangelista em que o conceito de «milagre» é expresso pelo termo «semeion» (donde deriva semântica); os sinópticos usam «dynamis» (força, poder), para designar quer o acto milagroso quer o poder da pessoa que age («Força» ou «Poder», em sentido absoluto, é uma designação de Deus, no Antigo Testamento). Enquanto que «milagre» foca a atenção na estranheza do acontecimento, «sinal» aponta directamente para outra realidade que importa conhecer; na Bíblia, testemunha também a credibilidade de um profeta, e uma advertência de Deus para não trabalharmos apenas com as aparências.

O «reino de Deus», esse «Estado de Justiça» que ultrapassa o tempo, assente apenas na disposição interior como resposta às perguntas que Deus desperta em nós, é simbolizado por noivados e casamentos, apontando para a perfeição final. Mas nos casamentos deste mundo as coisas não correm sempre muito bem… e os noivos de Caná começaram por um desaire: faltou um elemento básico para manter a alegria, e nem Jesus parecia preocupado com dar uma ajudinha… Bem se pode dizer que, nos traços realistas desta festa, é que está simbolizado «o começo do reino de Deus»: a permanente tentativa do género humano por alcançar realizações perfeitas, usando a melhor diplomacia para superar os habituais contratempos…

Mas o casamento é a festa do confronto entre a riqueza do homem e a riqueza da mulher, gerando novas combinações e virtualidades, a caminho de uma também nova humanidade. É a combinação dos jeitos. Não há projectos sãos e duradoiros sem honesta união de projectos pessoais e sem cultivar a alegria – para o que dá jeito o bom vinho quando usado com jeito…

A abundância de vinho é, na Bíblia, símbolo de uma época florescente. E o vinho aparece no princípio e no fim (na última ceia) dos evangelhos: como símbolo estimulante da vida, da amizade e do amor e do «testemunho de sangue» de quem viveu a abrir horizontes e a fomentar estratégias de paz e de alegria (ideias tão batidas como levadas pouco a sério), e a construir uma cidade onde os seres humanos descobriram o jeito de se sentar à mesa com o próprio Deus.
 

16-01-2010


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