Baptismo do Senhor (ano C)
1ª leitura: Livro de Isaías, 42,
1-7
2ª leitura: Actos dos Apóstolos,
10, 34-38
Evangelho: S. Lucas, 3, 15-16.21-22
Mais coisa menos coisa, Jesus foi
baptizado aos trinta anos por S. João («o baptista»). Como um
caloiro, ao entrar no novo campo do projecto de vida, submeteu-se a
um rito de iniciação: sem passar por este, o novo membro não é
aceite nem se reconhece na comunidade em que se pretende inserir.
Assim realizou o
primeiro acto da sua carreira: anunciar o «reino de Deus» – essa
nova maneira de viver a vida de braço dado com o mais fiel e o mais
desconcertante dos amigos. Jesus viu nesse amigo um pai sempre
atento mas sempre discreto, deixando-nos todo o espaço de manobra.
Talvez por isso não teve medo para falar e agir com uma autoridade
tão genuína e tamanha que espantou a quantos se cruzaram com ele.
O texto grego
original de S. Lucas permite uma reflexão muito pertinente: João
baptizava «pela» água (instrumento do ritual); Jesus, porém,
baptizará «no» Espírito Santo – não é uma coisa exterior,
instrumentalizável, mas a realidade em que todo o universo está
inserido e por ele vivificado. Jesus despertou-nos a consciência
para essa dimensão, que nos permite abrir os olhos para ver melhor –
e assim gozar mais intensamente de tudo o que a vida tem de bom.
Acrescenta o
mesmo evangelista que Jesus também baptizará pelo fogo, símbolo
universal de uma força divina que transforma e purifica. S. Lucas
falará de «línguas de fogo» que desceram sobre os discípulos, depois
da ressurreição de Cristo, ateando a coragem de continuar a sua
mensagem; mas o fogo também significa as provações a que a vida nos
sujeita. Todos nós podemos receber um ou mais «baptismos de fogo»,
que nos dão a têmpera e aptidão para levar em frente, com livre
decisão, os projectos para que nos sentimos chamados.
Quando o projecto
começa a tomar forma, temos que descer humildemente entre a multidão
e submetermo-nos ao rito de iniciação. Se o não fizermos, ficaremos
mais facilmente vulneráveis à tentação de poder e de orgulho. Sem a
«fome e sede de justiça», sem convívio sincero com os outros, a vida
mais esplendorosa e invejada será inútil como a palha que o vento
leva e o fogo destrói.
No baptismo de
Jesus, o próprio Baptista confessou ser ele quem devia ser baptizado
por Jesus. Mas Jesus insistiu em que não havia regalias para
ninguém…
Quantos grandes
empresários, altos dignitários religiosos, políticos, «directores»
disto e daquilo... saberão reconhecer, como João Baptista, os dons
superiores de alguém que venha ter com eles? Quantos serão capazes
de ajudar os outros a multiplicarem os seus talentos, sobretudo
quando isso implica ir-se retirando do primeiro plano?
Na 1ª leitura,
aparece o primeiro dos quatro poemas do «servo de Javé», essa figura
misteriosa, difícil de identificar – provavelmente retrata o profeta
seu autor ou outra figura religiosa impressionante. (Isaías viveu no
séc. VIII antes de Cristo; um discípulo espiritual, já 2 séculos
depois, é que terá composto os capítulos 40-55 – conhecidos como «O
Livro da Consolação», devido ao tema dominante de Deus como
salvador). A profundidade e alcance religiosos destes quatro poemas
fizeram deles a grande prefiguração de Jesus como «servo perfeito» e
«filho muito amado».
Na 2ª leitura, S.
Pedro, o chefe dos apóstolos, reconhece o erro do preconceito
relativamente a cristãos não judeus, pois verifica como Deus se
comunica aos seres humanos «sem acepção de pessoas». Foi só depois
de ter meditado, que aceita entrar na casa do «pagão» Cornélio –
não, porém, sem ter o cuidado de se justificar perante os cristãos
de vistas estreitas...
Porém, o tema
comum que sobressai é o da justiça – que «não apaga a torcida que
ainda fumega», mas que se procura impor «sem desfalecer nem
desistir» (1ª leitura). A justiça que devemos tornar presente no
mundo, se queremos agradar a Deus (2ª leitura).
Nos ritos actuais
do Baptismo, sobretudo no das crianças, sobressai a importância de o
compromisso pela justiça ser conscientemente aceite pelos pais,
padrinhos, e toda a comunidade envolvente.
É portanto a
comunidade que está em jogo. Ao longo da nossa vida, e
particularmente nos momentos difíceis e de grande sofrimento, como
quando a morte se anuncia mais insistentemente, é nesta comunidade
que deveríamos encontrar a força de caminhar juntos no misterioso
projecto da vida, sem desfalecer no caminho da justiça e procurando
as estratégias mais engenhosas para a implementar. Deixamos assim às
novas gerações o testemunho de que, «apesar de tudo, vale a pena
viver». |