Liturgia Pagã

 

Herói em tempo de dança

3º Domingo do Advento (ano C)

1ª leitura: Profeta Sofonias, 3, 14-18

2ª leitura: Carta aos Filipenses, 4, 4-7

Evangelho: S. Lucas, 3, 10-18

 


Quem não gosta de estar alegre e de ver um rosto brilhante de alegria? A alegria é uma virtude (palavra que significa «força», proveniente do mesmo radical de «viril» e de «vida»). E o velho Aristóteles já chamava a atenção para a necessidade de criarmos hábitos suficientemente fortes para que a virtude não desmaie.

Temos que arregaçar bem as mangas para conquistar alguns hábitos. E para conquistar alguma coisa, é preciso o hábito fundamental de não desistir à primeira – logicamente, será de todos o acto mais heróico… Depois disso, já se ganhou o jeito de dar sempre um passo mais, na direcção que julgamos correcta (nota: «sempre um passo mais» não é um passo sempre a direito! A boa direcção exige a sabedoria de um passo de dança, e mesmo então é muito conveniente saber onde se põem os pés!).

 A pujança da alegria bem que pode ser o objectivo da conquista sugerido neste domingo. E como todos os objectivos muito dependentes da nossa vontade, corre o sério risco de se degradar com o tempo – e obriga a muito trabalho para o restaurar. É um sonho a ser alimentado por uma sucessão de pequenos e grandes actos heróicos de restauro.

É então que vem mesmo a calhar o grito do profeta Sofonias: «Não temas! Está no meio de ti o herói que vem renovar-te a alegria!»

O final eufórico da profecia de Sofonias seria suficiente para o tornar célebre. Quase que parece o profeta do país das maravilhas… Mas este autor, nas poucas páginas que nos deixou (três breves capítulos), é sobretudo o profeta da calamidade pendente sobre o género humano. Várias expressões suas inspiraram directamente o famoso poema «dies irae», o «dia da ira», que só depois do Vaticano II deixou de fazer parte da liturgia dos fiéis defuntos – por tão negras serem as cores com que pintava o mais natural e universal dos fenómenos: o fim dos ciclos da vida e de todos os ciclos de existência.

Dos antigos profetas, foi o que mais desenvolveu o tema do «dia do Senhor» – embora tenha focado especialmente o desajuste entre o Deus incompreensível e este mundo que também não dá para entender… Não admira que a «mistura» pareça explosiva e geradora de aterrorizantes ondas de tempestade, como outro dilúvio destruidor. No entanto, mesmo para Sofonias, o «dia do Senhor» é fundamentalmente a experiência de como Deus é vivo e não apenas a projecção do nosso desejo de salvação.

Este desejo universal leva a naturais projecções (como as dos «salvadores» políticos), mas, fundamentalmente, reflecte a constatação de que nem o maior poder ou a maior riqueza nos libertam do sofrimento e da morte, das catástrofes da natureza e da maldade humana. A dimensão religiosa permite uma visão global, que não nos deixa afogar no fatalismo e transforma o desejo errático numa ligação com Deus.

Damos-Lhe a imagem de pessoa, porque é para nós a mais alta categoria de um ser vivo. E também Lhe atribuímos os nossos sentimentos, eliminando as facetas «indesejáveis». Os profetas falam de um Deus «cioso» – palavra mais exacta do que «ciumento», uma vez que traduz o reconhecimento de Deus como não podendo admitir que os seres humanos dêem a qualquer bem mais valor do que a Ele próprio, pois Ele é que dá força a todo o bem.

O profeta verdadeiro partilha uma profunda experiência de Deus – que só é possível, porém, acompanhada de profunda experiência da condição humana. No caso de Sofonias, é notória a sensibilidade à grave conjuntura política do séc. VII a. C. (ciclos de destruição protagonizados pela Assíria, Babilónia e Egipto) e à corrupção que tanto pode comandar as guerras como a organização mais estável. Aliás, é quando tudo parece correr bem, que Deus deixa de ter interesse. Uma das grandes preocupações dos profetas é conceber Deus no meio de tanto mal – provocado quer pelas forças da natureza quer pelo desequilíbrio humano. É a grande interrogação sobre o que é este mundo em que vivemos e o que é a História da Humanidade, do mais longínquo passado ao mais indefinível futuro.

A visão catastrófica sobre o futuro da humanidade foi alimentada pela consciência de que se dá um afastamento voluntário da direcção que sabemos correcta. O ser humano castiga-se a si próprio e não sabe gozar o presente preparando o futuro. Talvez que por isso a última parte do livro de Sofonias seja de retumbante alegria – a de quem sabe que Deus vive connosco e que é com Ele que dançamos no palco da vida. É tudo uma questão de acertar o passo. É o próprio Sofonias que fala de danças e festas já na vida presente – para que a vida futura seja ainda mais alegre…

Para garantir uma festa em que todos nos dêmos bem, diz esse profeta (3,11-13) que Deus «exterminará os orgulhosos e arrogantes». Só o «resto» do povo é que «não cometerá mais a iniquidade», nem «se achará mais na sua boca uma língua enganadora». Por sua vez, S. João Baptista (evangelho) apela a uma vida renovada, «porque – grita ele enquanto baptiza – vai chegar quem é mais forte do que eu», com a sagacidade para avaliar as pessoas, sem preconceitos. De nada nos vale uma justiça de fachada e palavrosa. Se queremos ser mais do que um cepo seco, temos que limpar o terreno e adubá-lo, a fim de que nasça uma sociedade onde não se arranca dinheiro aos indefesos ou ingenuamente confiantes, onde se evita a violência e onde se sabe ajudar quem é pobre (Evangelho).

O pedacinho da carta aos Filipenses hoje proposto para reflexão diz claramente que é tempo de alegria porque, quase nos próprios termos de S. Paulo, dançamos com Deus. Até diz que o devemos fazer com «modéstia» – palavra que designa o «modo equilibrado» dos nossos passos. Só com este jeito é que a sociedade pode garantir paz e bem-estar – porque organizada com o permanente dinamismo da alegria. (S. Paulo escreveu ainda na expectativa de que a vinda de Jesus manifestamente glorioso poderia dar-se a todo o momento – só progressivamente é que foi compreendendo, bem como as primeiras gerações cristãs, que o «espírito de Jesus» vai continuamente sendo assimilado por quantos se deixam cativar pela sua «boa nova»).

A alegria devia estar presente com particular intensidade nos momentos mais difíceis e sobretudo no momento em que parece que vamos perder tudo. Precisamos de sentir à nossa volta uma atitude positiva, vinda das várias pessoas e grupos que connosco partilham a vida, que nos transmita força, aconchego e carinho, testemunhando que há razões para vencer qualquer medo. A esperança e o amor aumentam na medida em que são partilhados.  

Precisamos de treinar a alegria de quem «dança com Deus» em todos os natais, em todas as sextas-feiras santas e em todas as páscoas. A alegria que supera a mais que compreensível angústia humana perante a vida. Celebramos o nascimento do Herói que nos conquistou um «mundo novo» – desejado mais ou menos obscuramente ao longo da nossa história. Um herói homenageado na fragilidade de um menino que, até à morte, lutou com bondade, alegria e mansidão. Com a dignidade de um herói que dá a vida para mostrar os «passos certos» na dança da vida.

 
11-12-2009


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