4º Domingo do Advento (ano C)
1ª leitura: Profeta Miqueias, 5, 1-4
2ª leitura: Carta aos Hebreus, 10,
5-10
Evangelho: S. Lucas, 1, 39-47
Cantou o Miqueias,
cantou a Judite e o velho Isaías; cantou o Zacarias e um senhor
desconhecido mas grande admirador de Paulo de Tarso… e não faltou
aquele médico erudito mas tão simples e simpático, lembrando
comovido os cantares da Mãe de Jesus e da prima Isabel.
O elenco, se bem
que todo ele consagrado, integra alguns elementos menos na berra, ou
então aqui mal referenciados:
Judite, cujo nome
significa «a judia», ficou famosa pela valentia equilibradamente
alicerçada em Deus, tendo arriscado a vida e a reputação para
libertar Israel do inimigo – qualidades que fizeram dela a imagem da
mãe de Jesus. Terá vivido cerca de 600 anos a. C. e dá o nome a um
dos livros da Bíblia, onde se encontram vários cânticos – pedidos de
ajuda ou acções de graça. O «Magnificat» e a liturgia dedicada a
Nossa Senhora inspiram-se nalgumas passagens deste livro. Fica bem
convidá-la para o festival.
Nem convinha pôr
de parte Zacarias, mencionado no evangelho de hoje, mais conhecido
pelo brilhante solo sobre o seu filho João precursor de Jesus
(Lucas, 1, 67-79), sendo mais tarde acompanhado por Simeão (Lucas,
2, 29-35).
Quanto ao «senhor
desconhecido» é nada mais, nada menos o autor da carta aos Hebreus,
onde se canta em grande estilo o mistério e a condição gloriosa de
Jesus.
Miqueias, de quem
é a 1ª leitura, apresenta o Messias sonhado envolto na neblina do
tempo, enraizado na história humana e nas aspirações longínquas da
humanidade. Terá vivido no séc. VIII a. C.. Sem estatuto social
aparente, longe dos círculos do poder, teve que enfrentar sozinho a
corrupção do seu tempo (dos políticos, sacerdotes e outros falsos
profetas), confessando claramente que só tem apoio no Senhor (3,8).
A sua notória sensibilidade ao sofrimento do povo e a um Deus que
tanto se entristece com a injustiça como abre os mais audaciosos
horizontes de alegria e de paz, faz dele um personagem bem simpático
e a condizer com esta época do Natal.
Os demais já
devem ter ganho vários discos de ouro:
Isaías, o
majestoso profeta das dores e alegrias, canta logo à entrada da
liturgia de hoje. Ficou célebre o seu «rorate» – a beleza deste
poema é mais transparente na língua latina em canto gregoriano. É um
grito de esperança e de júbilo: que o Justo venha dos céus, como a
chuva e o orvalho fertilizantes; e que a terra se deixe seduzir pela
força da semente e germine a salvação. (Apesar dos invasores
transgénicos da justiça, Deus achou que havia condições para uma
cultura sadia…).
Para o incógnito
admirador de S. Paulo (2ª leitura), o nascimento de Jesus é a
manifestação pública, simbolizada na Festa dos Reis, do compromisso
sem medo nem vergonha de pôr a vida ao serviço dos outros, apesar da
fragilidade dos começos – como se pode ver num menino. Podemos dizer
que não é só a Deus mas a toda a humanidade que Jesus diz: «Eis-me
aqui».
Entre Jesus e
João (o Baptista, não o Evangelista), havia uma misteriosa ligação,
já desde o ventre materno (evangelho). Quando Maria e Isabel se
encontraram, ambas grávidas, a mãe de João sentiu o filho
estremecer. O médico das cantigas (também conhecido por S. Lucas, o
evangelista) soube trazer à baila todas as deixas possíveis de
célebres cantadores de Deus (não só das duas primas como também dos
já mencionados Zacarias e Simeão, para além de muitas alusões a
textos antigos). E aproveita para exaltar (não fosse ele médico…) o
maravilhoso papel das mães.
Toda a gente
gostou do espectáculo e o costume pegou: pelos tempos fora, desde
que Jesus morreu e entrou na alegria de que falava e que nos quer
transmitir, não faltam seguidores, simpatizantes e até meros
«turistas», a cantar, a dançar e a encher a História de obras de
arte ou de graffiti mais ou menos felizes.
Nas tradicionais
cantigas ao desafio, as ideias prendem-se como cerejas, unidas pela
rima das palavras e sobretudo por um sentimento condutor de alegria.
Algo semelhante se passa com o que se escreve e canta na longa
tradição religiosa judeo-cristã. Foi assim que S. Jerónimo, a quem
se deve a célebre tradução latina da Bíblia («vulgata» ou versão
«divulgada»), foi encontrando, nos mais variados livros que a
compõem, prefigurações do verdadeiro Messias. Desta forma, os
cânticos de Isaías lembravam o «servo de Deus» sem defeito;
igualmente a Jesus Cristo se aplicava o «Rorate» (na realidade,
Isaías referia-se directamente a Ciro «o Grande», fundador do
império persa e libertador de todos os povos subjugados por
Babilónia, o que lhe valeu ser chamado de «Messias» – «Ungido» por
Deus para uma grande missão). E à Mãe de Jesus assentava na
perfeição o oráculo de Isaías sobre a «jovem mulher» (7, 14,
designando certamente a rainha) que a seu tempo daria à luz um rei
justo e salvador, como a seu tempo o orvalho fecunda a terra. Mas
esta intuição de que tudo está ligado e se orienta para a perfeição
da justiça e da alegria (atributos fundamentais de Deus) já se
verifica nos próprios evangelistas e outros autores. S. Mateus, por
exemplo, ao citar a leitura de Miqueias sobre a «pequena Belém» (a
terra de David), diz: «e tu, Belém, de modo nenhum és a menor entre
as principais cidades de Judeia» (2,6).
Os profetas
pegavam na deixa do desejo ardente de que surgisse depressa o
salvador – nunca é cedo demais para colaborar no plano da salvação
do mundo. Foi com esta «urgência» (termo na moda) que Jesus virá a
falar aos seus apóstolos e a quem quiser segui-lo. Também é
«apressadamente» que Maria partilha o seu segredo com Isabel. Foi
uma atenção à prima, mas sobretudo exemplo de delicadeza com
sacrifício. Um dos traços de nobreza da mãe de Jesus foi o de saber
meditar sobre o que se passava com ela e à sua volta, por muito
estranho e penoso que tudo parecesse (Lucas, 2, 51) e longo se
mostrasse o silêncio de Deus.
Também todos
aqueles que não têm vergonha de se mostrar amigos de Jesus, chamado
o Cristo, continuam a cantar versos lindos e músicas gostosas, mesmo
sabendo que muitas vezes não se devem deixar levar pelas cantigas e
que o lindo e o gostoso é mesmo muito relativo… Cantam para todos
ouvirem, apreciarem e não esquecerem. Cantam os factos, ideias e
sentimentos que moldaram esta cultura, cristã de origem (seja qual
for a posição de cada qual quanto ao cristianismo ou à religião em
geral).
Só não se aceitam
cantadores mercenários. De resto, todos são bem vindos ao grupo dos
que cantam o desafio da vida, pegando e largando as deixas de bom
agir e de esperança, despertando o sorriso dos humanos e de Deus. |