1º Domingo do advento (ano C)
1ª leitura: Livro de Jeremias,
33, 14-16
2ª leitura: 1ª carta de S. Paulo
aos Tessalonicenses, 3, 12 – 4, 2
Evangelho: S. Lucas, 21,
25-28.34-36
Nos antigos natais da aldeia, este
domingo trazia o primeiro cheirinho a Natal, feito de castanhas e de
vaga inquietação por onde buscar o melhor musgo, por qual o canto
mais lindo para o presépio e por onde param e como estarão as
figurinhas e outros adereços – tudo isto no embalo das palavras
misteriosas da liturgia em latim. Até nem se reparava no estilo duro
e apocalíptico do Evangelho, adormecendo no conforto da Leitura de
Jeremias! A própria carta de S. Paulo, que nos exorta à firmeza no
progresso do amor e de outras virtudes, mais parecia uma coroa de
flores a oferecer ao «rebento justo», ao «Menino Jesus».
E contudo, a passagem do evangelho
de hoje marca o final do ministério de Jesus em Jerusalém, sendo
imediatamente seguido pelo relato da Paixão. O «Menino Jesus»
exprime a fraqueza própria do «filho de homem» (imagem muito
presente nos domingos anteriores) – mas também o lado paradoxal da
mesma expressão: o poder e a glória do autêntico «justiceiro», que
virá sobre as nuvens impenetráveis ao nosso conhecimento e
compreensivelmente temerosas para toda a humanidade. Por isso
exclamava Simeão, ao pegar ao colo em Jesus recém-nascido (Lucas, 2,
29-35): «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos
em Israel e para ser sinal de contradição». O encontro definitivo
com ele não nos pode apanhar desprevenidos: temos que o saber
esperar «de pé como as árvores» carregadas de bom fruto.
Há pois que «desconfiar» da
inocência e graça do «Menino Jesus»… Ele não é o boneco lindinho à
venda nas feiras, nem sequer um daqueles bebés lindos a valer, que
quase se confundem com o colo da mãe, se possível ainda mais linda.
Iremos nós ao encontro do «Menino a sério», como os «Reis Magos»? E
saberemos tirar proveito desse encontro, como o fazia a «Mãe a
sério» do «Menino a sério» – guardando todos estes estranhos
acontecimentos «no seu coração», para reflectir calmamente sobre o
que poderiam significar? (Lucas, 2, 51; 1, 29). Ou acharemos mais
cómodo e prudente matar o menino, como quis o rei Herodes – «o tal
(no dizer de Miguel Torga) que não gostava de crianças»?
A primeira leitura não é original de
Jeremias mas de um discípulo. Trata-se de um cântico tipicamente
messiânico, presente noutros lugares dos livros do Antigo
Testamento, prometendo ao povo de Israel que Deus fará nascer um
«rebento de justiça» para o dirigir com rectidão. Na perspectiva
religiosa desta época (destruição de Jerusalém pelo império
babilónico, em 587, e subsequente cativeiro), o Messias (rei-sacerdote)
nasceria da seiva de David, cabendo-lhe juntar o direito e a
justiça. Dentro dos parâmetros da cultura do tempo, o Direito
legitima a imposição da autoridade e do julgamento. Mas precisa da
Justiça para que não se exerça o poder arbitrariamente, oprimindo os
que menos se podem proteger.
No Antigo Testamento, a Justiça é
um grande atributo de Deus. O termo hebraico original é de difícil
tradução, pois refere sobretudo a situação concreta de alguém que vê
reconhecida a sua inocência ou satisfeita a sua pretensão. Interessa
é ter a lei a seu favor – o que pode dar lugar a falsidade e
corrupção. Como transpor este conceito para Deus?
As orações pedem a ajuda de Deus
«porque Ele é justo»: «Escuta-me, ó Deus, minha justiça! Tu, que me
libertaste na angústia» (salmo 4,2); ou ainda, entre muitos outros
exemplos: «Salva-me, ó meu Deus! Bate na face dos meus inimigos. De
ti, Senhor, vem a salvação» (salmo 3,8-9). Pedimos a Deus que nos dê
razão, porque nos cremos na razão. Mas porque Deus vê claramente no
fundo do coração, reza assim o salmo 50: «Ó Deus, meu salvador!
Lava-me de toda a iniquidade. Reconheço as minhas culpas»
(50,16.4.5). A justiça exige reconhecer o mal como mal, e o bem como
bem.
Falar de Deus como justo é
portanto a percepção do conceito essencial de Deus como «salvador» –
a par da percepção que o ser humano tem de si próprio como incapaz
de dar resposta a todos os desejos e necessidades, impotente para
garantir a própria felicidade. Porém, a consciência das nossas
limitações e falhas seria dificilmente explicável se não tivéssemos
o vislumbre de alguém sem falhas nem limitações. Ter fé é ter
confiança neste «alguém» – o que, na vida real, é ter esperança em
Deus, mesmo quando só apetece desesperar (Romanos, 4, 18). E porque
a Justiça é perfeita em Deus, pode e deve ser o critério para matar
«a fome e sede de justiça» de que falam as bem-aventuranças.
A seu tempo, o Cristianismo verá,
na leitura de Jeremias, o prenúncio de Jesus bem adulto pregando o
Amor como fundamento do Direito e da Justiça.
A vinda de Jesus deu-se
discretamente. Deus dá a impressão de querer “meter-se connosco” de
mansinho, para não nos assustar. Não há nuvens nem imagens
apocalípticas. Todos os olhos podem ver com alegria tranquila um
menino a nascer.
Mas à medida que esse menino for
crescendo, «ganhando força e sabedoria» (Lucas, 2, 40), crescerão as
nuvens por todos os lados: progressivamente, tanto Jesus como os que
o rodeiam, ir-se-ão dando conta da dimensão transcendente do «filho
do homem», que chega a parecer aterradora. O próprio Jesus, mesmo
antes de ser preso, pediu ao Pai para «afastar o cálice» do
sofrimento e da morte iminente. Mostrou-se, porém, fiel ao
compromisso da vida «até às últimas consequências», e por isso
mereceu partilhar da plenitude de Deus. É com esta autoridade
suprema que se manifestará «no fim dos tempos», e a verdade da vida
aparecerá tão intensa que os seres humanos ficarão atónitos.
Aqueles, porém, que seguiram os caminhos de Cristo, sempre
vigilantes, «levantarão a cabeça» e permanecerão de pé a seu lado –
são os que procuraram, como ele, tanto nos maus como nos bons
momentos, tanto ao sentir mais vida como ao sentir mais morte,
mostrar que valeu a pena, para toda a humanidade, a estranhíssima
aventura de terem vindo a este mundo, do mesmo modo que veio o bebé
Jesus.
Segundo vários especialistas, a
seguir ao texto atemorizante do evangelho de hoje é que faria
sentido colocar o episódio da «mulher adúltera» relatado por João
(8, 1-11): Quando os escribas e fariseus perguntam a opinião de
Jesus sobre o que fazer à mulher surpreendida em adultério, ouviram
o que não queriam – «quem de vós estiver sem pecado lance-lhe a
primeira pedra». Jesus não condenou a mulher. Condenar é um juízo
sem amor, e o mais importante é suscitar em si e nos outros a
coragem para procurar «os caminhos de Deus», como fizeram os Reis
Magos.
Os semi-lendários «reis magos»,
símbolo da diversidade humana ou das fases da vida humana
(juventude, maturidade e velhice) não ficaram parados a olhar para a
estrela do mistério: tiveram a coragem de se lançar de corpo e alma
na transcendência e exigência do caminho que se ia desvelando passo
a passo, vencendo os obstáculos sem perder tempo com desculpas nem
jogos diplomáticos. A tradição viu neles o exemplo da perseverança e
do reconhecimento que a justeza das decisões humanas é mais
garantida quando nos orientamos por um ideal que não pode ser
corrompido. |