34º Domingo do tempo comum (ano
B)
1ª leitura: Livro do profeta Daniel,
7, 13-14
2ª leitura: Livro do Apocalipse, 1,
5-8
Evangelho: S. João, 18, 33-37
Foi o Papa Pio XI, que tinha por
divisa «a paz de Cristo no Reino de Cristo», quem instituiu, em
1925, a «Solenidade de Jesus Cristo rei e senhor do universo».
Muito interventivo na organização quer religiosa quer política,
publicou, em 1937, duas encíclicas contra o regime totalitário –
incompatível com a liberdade e supremacia de Cristo (era o tempo de
Hitler e Mussolini). A insistência no «reino de Cristo»,
paradoxalmente, prejudicou o movimento ecuménico, mas deu origem aos
vários movimentos de Acção Católica, bem como a novo dinamismo da
obra missionária.
Para defender a Igreja –
entendida como imagem visível do Reino de Cristo – de qualquer
sujeição ao poder civil, estabeleceu concordatas com o México e com
o regime de Hitler (ambas em 1933, sendo a última de pouca dura) e
com o governo de Itália (1929). Garantiu deste modo a independência
do Vaticano e a neutralidade política nos conflitos de todo o
mundo, ao mesmo tempo que poderia intervir, como chefe da Igreja
Católica, no cuidado dos seus membros, e erguer a voz na luta contra
a pobreza e contra os inimigos da «paz verdadeira».
A Solenidade de Jesus Cristo Rei
nasceu assim num ambiente de grande instabilidade política e
ideológica. Também as duas leituras e o Evangelho foram escritos num
clima de perseguição e instabilidade, propício ao desenvolvimento da
literatura apocalíptica (ver o comentário ao domingo passado). Neles
encontramos alguns dos temas fortes desta literatura: o Rei (todas
as leituras), sempre com alguma mistura de messianismo terreno; o
exílio (1ª leitura); as grandes perseguições de Nero até Domiciano,
passando pela destruição do Templo por Vespasiano, no ano 70 (2ª
leitura).
Hoje em dia, a Igreja continua
perseguida pelo poder político. Nalguns países, como em Portugal,
insidiosamente – o que a faz correr o risco de parecer, por vezes,
demasiado ocupada num jogo de competição de poder com o Estado
(utilizando até estratégias semelhantes). De resto, é positivo que
seja um sinal de contradição perante o egoísmo, corrupção e
injustiça dos grupos detentores de poder político e económico.
A ideia que «o Senhor é rei»
(salmo 92) é vincada pelo salmo responsorial, como profecia da
aclamação a Jesus Cristo, aquando da sua entrada em Jerusalém (S.
Marcos, 11, 10), mesmo antes da Paixão. Porém, em ambos os casos,
são gritos característicos do sonho de um Messias-rei, restaurador
da glória de Israel – o «grande guerreiro», que os «Papas
imperadores» (classificação aplicada a alguns pontífices que a
mereceram) acharam por bem imitar: várias vezes, impuseram a fé
cristã pela força e escolheram eles próprios os sucessores no
papado, com a pretensa base de serem o representante na terra do
«Rei dos reis», a quem era devido o domínio absoluto.
Constantino, o 1º imperador
cristão (324-337), aproveitou-se desta aura divina para expandir o
cristianismo ao estilo de um «imperador sagrado», consciente de que
a fusão do «reino de Deus» com o império romano ajudava os
interesses políticos. De facto, facilitou a unificação do império e
a formação da «cristandade» (conjunto dos países e povos cristãos,
que moldaram, a partir do séc. V, os princípios sociais e políticos
geradores da Europa como unidade cultural), mas o joio não tardou a
abafar o trigo. Os imperadores cristãos arrogaram-se representantes
de Deus na terra, defensores da verdadeira fé e protectores
providenciais da Igreja – identificada ao próprio Estado. Como
chefes supremos da política e da religião, convocavam concílios e
nomeavam o alto clero. Teodósio o Grande (379-395) adoptou
oficialmente o cristianismo como religião do Estado – a heresia era
punida como crime contra o Estado, dando origem a perseguições,
sobretudo contra os judeus, descontrolando os impulsos violentos de
muitos adeptos. No séc. VI, o imperador Justiniano consolidou a
estrutura cristã do império, extinguindo as ainda existentes
instituições pagãs.
Esta confusão entre força física
e força espiritual, entre chefe político e chefe religioso,
favoreceu uma linguagem e técnica próprias de uma organização
militar, manifesta em fenómenos distintos como as cruzadas, a
inquisição, a contra-reforma e o próprio movimento missionário.
Felizmente, vários representantes máximos do Catolicismo
reconheceram e tiraram proveito dos erros do passado e vão
renunciando a manifestações de riqueza e poder.
A imagem de Imperador e de Rei
continua a fascinar como símbolo de poder e de grandeza, da força da
unidade, da segurança e da esperança. Estabelece a ligação entre o
ser humano (representando a sua história) e a divindade (forma
perfeita da existência). É empolgante ver um bom rei conduzindo um
exército vitorioso. Facilmente arrasta multidões – mas que tanto se
podem entusiasmar pela defesa do bem comum como apenas pela defesa
do proveito próprio. Pode mesmo excitar os menos sábios a matar em
nome da fé nesse rei.
Na 1ª leitura, o profeta Daniel
evoca a misteriosa figura do «filho de homem» (ou um ser com
aparência humana), chamado por Deus a presidir à orientação perfeita
do universo.
Cabe à 2ª leitura reconhecer
Jesus como a grande testemunha de Deus, o cumpridor fiel das
exigências dessa orientação, acima de toda a soberania terrena. E
fala de todos os cristãos como «um reino» e como «sacerdotes». Como
novos «sacerdotes», estamos convidados ao verdadeiro culto que nos
liga a Deus (a que aludia Jesus ao falar com a samaritana, na linha
dos antigos profetas) – e que é «viver a sério», tirando partido do
trabalho e do lazer para multiplicar a alegria e a justiça,
garantindo um proveito autêntico para a Humanidade. E como
matéria-prima de «um reino», afirmamos que queremos ser os
seguidores sem fingimento do optimismo radical (ousado e prudente!)
de Deus.
Finalmente, o evangelista refere
que Jesus se afirmou «rei» – no mínimo estranho: não joga com as
regras da política «cá de baixo» (que muitas vezes é mesmo baixa),
porque é rei a sério. «Rei» é aquele que estabelece as «regras»,
«dirigindo» pelos caminhos «rectos» (palavras com o mesmo radical
indo-europeu «reg»). Longe das vulgares formas exteriores do poder,
Jesus fala de um «reino» assente nas formas interiores da
autoridade. Esta interioridade, só atingível por quem dá tempo à
meditação, é que garante o único saneamento eficaz da corrupção das
nossas formas de poder.
Jesus Cristo veio a este mundo
«para dar testemunho da verdade», e a verdade é Deus. Ao oferecer a
vida, como verdadeiro «testa de ferro» (a «testemunha fiel» da 2ª
leitura) de toda a Humanidade, deixou aos seguidores a herança
seguramente real: a coragem de querer a verdade. |