33º Domingo
do tempo comum (ano B)
1ª leitura:
Livro de Daniel, 12, 1-3
2ª leitura:
Carta aos Hebreus, 10, 11-14.18
Evangelho: S.
Marcos, 13, 24-32
Só o «amanhã» é que é perto, como que ao alcance da nossa mão. Para
o «depois», quase todas as tintas são válidas, embora esteja na moda
pintar os cenários mais perturbadores sobre o poder destruidor da
violência humana, ou sobre a morte das estrelas, destruição
climática, super vulcões e supertsunamis (como no filme que dá o
título). Os próprios cientistas afirmam que as catástrofes naturais
vêm aí com toda a certeza, só não se sabe quando… Contudo, convém
ter presente que o ser humano nunca pára na descoberta de si próprio
e do mundo, alterando perspectivas, incluindo as religiosas, e até
corrigindo o que parecia certo.
Com esta consciência de que todas as coisas são efémeras, e de que o
próprio universo, com a sua estabilidade aparente, está sujeito à
destruição, não é de estranhar que se tenha formado a «literatura
apocalíptica» (do grego «Apocalipse», «revelação» ou «desvelamento»).
Com estilo grandioso e imagens riquíssimas, não alheias à mitologia
e simbologia iranianas, é uma literatura presente nas culturas mais
diversas, tornando visível a estrutural comunhão entre todo o género
humano quanto à interrogação sobre o futuro.
Os textos apocalípticos do judeo-cristianismo (continuados pelo
islamismo) centram-se nos temas do Juízo final e da Salvação, e
apresentam o Reino de Deus e o Novo Mundo como transfiguração do
Universo, onde a própria morte será dominada. Terá pois um final
feliz o «combate» entre as forças misteriosas do Bem e do Mal, da
Vida e da Morte, apesar de os «filhos da luz» terem que sofrer
devido à astúcia dos «filhos das trevas» (na terminologia do próprio
Jesus Cristo). E a morte é a passagem não para um estado de vida
inferior, mas sim de vida claramente próxima do que podemos entender
por Luz, Alegria, Bem-estar.
Há muitos apocalipses, antes e depois de Cristo, todos eles
reflectindo a mesma inquietação e esperança. A maioria, contudo, não
é aceite como canónica (ou seja, não é representativa ou até está em
desacordo com o «núcleo duro» da doutrina em questão).
Ao termo de «apocalíptica» junta-se o de «escatologia» («estudo dos
últimos acontecimentos», em grego): traduz, sobretudo, o olhar que o
ser humano dirige à sua volta, alcançando o sentido e interesse da
consideração da morte e da crença numa vida eterna. Não deve haver
hiato entre este futuro e o presente: a crença optimista num
«combate escatológico» em que o Bem vence o Mal, dá força para ir
travando esse combate no presente. Deste modo, se vai desde já
acelerando o «mundo novo», sob a luz da justiça (o «reino» de Deus,
como se diz no Pai Nosso).
Com a aproximação do final do ciclo litúrgico, os textos dominicais
manifestam cada vez mais pendor apocalíptico e escatológico.
Curiosamente, estes «palavrões» tão obscuros designam justamente o
fim da obscuridade em que vivemos.
O apogeu da literatura apocalíptica situa-se entre os anos 200 antes
de Cristo e 200 depois de Cristo. O Livro de Daniel (1ª leitura) é
escrito cerca de 164 a. C, e o evangelho de Marcos (3ª leitura)
cerca de 70 d. C..
O Livro de Daniel é a recolha de diferentes tradições orais. Tem
muito pouco valor histórico mas é um testemunho valioso do clima
apocalíptico da época em que foi escrito – o tempo dos Macabeus.
Após a morte de Alexandre Magno em 323 a.C., surge a dinastia
selêucida, oriunda do desmembramento do império. Os judeus fiéis
passaram a sofrer a imposição da cultura grega, muitas vezes
atentatória da religião judaica, e várias perseguições, sobretudo
sob o reinado de Antíoco Epifânio.
De acordo com a técnica apocalíptica, este livro pretende ser a obra
de um profeta que viveu o Cativeiro de Babilónia (587 a 538 a.C.),
grande símbolo do poder das Forças do Mal. Assim, a época crítica do
passado surge como «imagem», profecia, lição e consolação para o
futuro (a época em que foi realmente escrito).
O texto de hoje pretende infundir coragem naqueles que sofrem pela
justiça, apelando para a fé numa vida eterna. A ideia de
ressurreição aparece claramente, na linha do sentido etimológico de
que não desaparecemos mas voltamos a «surgir» (isto não é
especulação, pois traduz uma poderosa, embora difusa, intuição da
humanidade; a natural curiosidade de lobrigar o «como» desta nova
aventura é que tem muito de especulativo). Sentimo-nos mais em casa,
se não deixarmos a morte e a eternidade na rua. Eliminamos assim uma
grande parte da nossa angústia, justamente porque a admitimos à
nossa mesa, conversando com ela e exigindo-lhe que se porte bem…
(Não se aplica neste caso a canção de Coimbra «(…) que a vida de
olhos fechados / custa menos a viver»!). É tão bom sentir que o
nosso calendário nunca será rasgado de vez, mas que mesmo «depois de
amanhã» «os que tiverem levado os outros aos caminhos da justiça
brilharão como estrelas com um esplendor eterno»!
O texto do evangelho é que reflecte mais o tradicional estilo
apocalíptico (mas as suas imagens e conceitos devem muito ao Livro
de Daniel). Jesus fala de si como «o Filho do homem vindo com as
nuvens, com grande poder e glória», «para reunir os seus eleitos dos
quatro cantos da terra».
(As «nuvens» tanto podem ser tenebrosas, como um véu diáfano que
protege do ardor do sol e do encandeamento da luz forte. Simbolizam
os paradoxos de Deus, juntando distância e proximidade. Assim, no
Dia de Javé, as nuvens claras arrebatarão os crentes para os levarem
ao encontro do Senhor que vem).
O sentido de «Filho do homem» continua a dar dores de cabeça aos
especialistas e aguça a «curiosidade apocalíptica» de toda a gente.
A expressão é frequente em Daniel e nos apócrifos, e no Livro dos
Actos (7,56) lemos que Santo Estêvão, martirizado pelo fanatismo de
alguns judeus (entre eles Paulo de Tarso, o futuro S. Paulo) vê «o
Filho do Homem de pé à direita de Deus». Mas nunca mais foi usado no
Novo Testamento. É formidável, contudo, a ideia de colocar um
representante do género humano ao lado do «grande Juiz».
Podemos dizer que Jesus utiliza «filho do homem» como expressão que
tanto sugere como esconde a origem divina da sua missão.
De acordo com o aramaico, seria até mais exacto «filho de homem»,
com o sentido de pertencer à espécie humana. Ao longo da Bíblia, é
frequente a admiração de como o ser humano, um ser tão fraco, é de
tal modo amado por Deus e eleito por Ele como rei de toda a criação.
Assim reza o salmo 8, 5: «Que é o homem para que dele te recordes, o
filho de homem para que dele tenhas cuidado? Quase fizeste dele um
ser divino, de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre
as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés».
(Digam lá que não é mesmo bom ouvir coisas tão bonitas a nosso
respeito!)
Mas Jesus terá aproximado intencionalmente a ideia de um ser fraco,
sujeito ao sofrimento e à morte, ao célebre conceito de «servo de
Javé».
A 2ª leitura coloca Jesus Cristo no centro do pensamento
apocalíptico. Em Jesus, é palpável a vastidão do drama do ser
humano, onde o próprio Deus entra nas intrigas. A «ressurreição»
mostra que Jesus não ficou prisioneiro da história, muito pelo
contrário, e sublinha fortemente que a pessoa não pode existir para
ser reduzida ao nada. Até os momentos mais negativos da vida deixam
de ser tara perdida.
O cristianismo, descobrindo em Jesus o «filho de homem» que é «filho
de Deus» (tão intensamente que O trata por «Pai»), põe de lado os
medos e a falta de ânimo para lutar pelo Bem, sobretudo quando o Mal
parece avassalador. Na sua vida, Jesus mostrou muitos momentos de
angústia, mas não deixou de ser o mais agradável dos amigos e o mais
seguro de que Deus dá sentido total ao drama da humanidade, dando
valor e unidade aos dias de ontem e de hoje, de amanhã e de «depois
de amanhã». |