29º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro do profeta Isaías, 53, 10-11
2ªleitura: Carta aos Hebreus, 4, 14-16
Evangelho: São Marcos, 10, 35-45
Um filme clássico, dos anos 70. Entre bom humor e dramatismo, a
figura principal – um judeu, são de corpo e alma – exclama: «Eu sei,
Senhor, que somos o teu povo escolhido! Mas não poderias agora
escolher outro para o fazer sofrer?»
A 1ª leitura deste Domingo refere-se de novo ao «servo de Javé» –
uma figura misteriosa que os próprios exegetas não conseguem
identificar: símbolo do «Povo escolhido», no seu conjunto? Símbolo
de todos aqueles que trabalham com Deus? Ou a representação de algum
profeta, rei ou qualquer outra personalidade, cuja acção é da maior
importância para o projecto da salvação do Homem? É provável esta
última hipótese – sem se aplicar necessariamente ao Messias. Como
quer que seja, a missão do «servo» é proclamar o direito e a justiça
em toda a terra, mesmo que tenha que enfrentar perseguições,
torturas e a morte. Proclama a certeza do sucesso final e que ficará
para sempre junto do Deus vivo.
Marcado pelo sofrimento e pelo aparente abandono de Deus, o «servo»
lembra um pouco o sofrimento de Job. Mas Job discute com Deus, não
compreendendo a razão de ser do seu sofrimento. Uma discussão
representativa de todas as angústias humanas e que acaba também numa
aparente frustração: Deus apenas lhe faz sentir que «os caminhos de
Deus não são os nossos caminhos» (Isaías,55,8) e que a nossa razão
não penetra o que é Deus (Job,42,3).
Em contraste, o «servo de Javé» pouco fala. Os quatro «cânticos do
servo», dispersos nas crónicas do profeta Isaías, apresentam-no uma
pessoa silenciosa, símbolo da tremenda inquietação sobre o sentido
de toda a vida humana. Como unir Deus e Humanidade? Que realidades
são estas? Para a linguagem humana, poderiam ser dois expoentes da
força cósmica da vida: um, seria o expoente da pura vida sem
sofrimento, sem morte, sem limitação alguma; o outro, o expoente da
consciência da desproporção entre essa pura vida e a dos seres que
se transformam continuamente, de morte em morte, de dor em dor, mas
também de alegria em alegria, de amor em amor, de vida em vida.
O «homem das dores» da 1ª leitura é o mesmo sobre quem Deus «fez
repousar o seu espírito para que leve às nações a verdadeira
justiça» (Isaías, 42, 1). Será preciso tanto sofrimento para que a
justiça se realize? As leituras dos últimos domingos juntam justiça
a martírio: martírio significa «testemunho voluntário». O «servo de
Javé» terá sentido a necessidade de testemunhar como a verdadeira
justiça implica a capacidade de perseverança: frente à morte, frente
à tristeza, frente à corrupção.
Um sonho da Humanidade, que persiste apesar das falcatruas com que
vivemos acordados, é a união perfeita de Vida e Justiça. É um sonho
que move figuras e pessoas, como o «servo de Javé» e Jesus Cristo.
De facto, Jesus Cristo mostrou que o sacrifício autêntico é darmos a
nossa vida (o nosso trabalho de todos os dias!) pela construção de
um mundo de justiça. Para sempre deverá ficar abolido o ritual
antigo e primário em que se pensava «apaziguar a ira de Deus»,
oferecendo-lhe a vida de um animal (por vezes doente...) num gesto
de abdicação de um bem. Pedia-se a Deus que esquecesse (o termo
hebraico significa «ocultasse») os nossos pecados. Mas o grande
sentido deste conceito, já no Antigo Testamento, era o de perdão:
pedir o perdão de Deus é reconhecer as falhas que acompanham o
próprio esforço em lutar pela justiça. A reconciliação entre o Homem
e Deus, porém, exige uma contrapartida: que «perdoemos a quem nos
tem ofendido».
É oportuno, porém, sublinhar que Jesus Cristo nunca se apresentou
como sacerdote, nunca exerceu essas funções nem as propôs aos seus
seguidores (ao aproximar a figura de Cristo com a de Sumo sacerdote,
o autor da Carta aos Hebreus revela uma compreensível preocupação
por dar relevo às ligações possíveis entre a riqueza cultural do
cristianismo emergente e a cultura judaica em que o próprio Jesus
Cristo foi educado). E frequentemente critica os sacerdotes por
terem uma organização demasiado à imagem do poder civil, com a
agravante de «invocar o Nome de Deus em vão», ao pretenderem
justificar abusivamente comportamentos e ordens discutíveis como se
fossem preceitos divinos ou de verdadeira importância religiosa.
Instituiu, isso sim, e com todo o vigor, um pequeno grupo propagador
de Vida e Justiça. Nem o sofrimento dá direito a alguém, como diz o
evangelho, «para se sentar à direita e à esquerda» de Jesus (na sua
«glória», está claro, porque durante a «paixão» foi o que se
viu...).
Na realidade, Jesus Cristo não é uma figura silenciosa como o servo
de Javé, e demarca-se da solenidade e importância terrena de um
«sumo sacerdote». Fala com todos e aproveita as vistas curtas dos
próprios apóstolos para dar lições profundas aplicáveis (por vezes,
de que maneira!) a todos os «sucessores dos apóstolos»: «Sabeis que
os que são considerados como chefes das nações exercem domínio sobre
elas, e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder. Não deve ser
assim entre vós. Quem de vós quiser tornar-se grande, tem de mostrar
que está mesmo ao serviço dos outros».
Nem sempre tocaremos as nossas «melodias» no cimo de um telhado, e
menos vezes veremos um coro de admiradores à nossa volta (ou um coro
de manifestantes exigindo que agora seja a vez de outro para
sofrer...). Mas é natural o desejo de nos sentirmos apreciados – é
mesmo uma necessidade básica, a que corresponde o dever de mostrar
aos outros, sempre que oportuno, o nosso apreço. É uma maneira, ao
alcance de qualquer um de nós, de repor a ideia de justiça, para a
qual ninguém se pode conformar perante o sofrimento, que tanto
atinge «os maus» como «os bons». Aliás, o próprio «servo de Javé»
acaba por ser glorificado por Deus.
Não precisou Jesus de se refugiar no carinho de gente amiga?
Precisamos de treinar aquelas manifestações de apreço, aquela
companhia amiga, aqueles diálogos onde há críticas e sugestões… que
favorecem a formação de pessoas suficientemente corajosas para
proclamar e construir um mundo novo. |