30º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro do profeta Jeremias, 31, 7-9.
2ª leitura: Carta aos Hebreus, 5, 1-6.
Evangelho: São Marcos, 10, 46-52.
Solta brados de alegria o vigia de Israel, e todas as gentes são
convidadas a exultar ruidosamente, porque regressa do cativeiro «o
resto» do povo do Senhor (1ª leitura); solta brados de intercessão
junto a Deus o Sumo-sacerdote, e o próprio Deus Pai anuncia com
brados vigorosos como Jesus é o Cristo e verdadeiro Sumo-sacerdote
(2ª leitura); brada o cego de Jericó, para atrair, a todo o custo, a
atenção de Jesus (evangelho).
É importante «bradar», até para manter a saúde psicológica e a
alegria saudavelmente infantil. E muita gente perde a vida por não
conseguir bradar por socorro da maneira mais eficaz …
O silêncio é difícil de suportar. Quem não precisa de cantar e, de
vez em quando, de gritar? Quem não sente a necessidade de que lhe
falem e prestem ouvidos? O próprio Deus, através dos profetas e de
Jesus, grita connosco e bem: quer para avisar do perigo quer para se
alegrar connosco. E é o primeiro a incitar-nos a clamar por ajuda e
sobretudo a gritar de alegria.
Precisamos de bradar por Deus, de bradar as injustiças em todo o
mundo, mas esses brados de nada valem se não se materializam na
marcha aventureira ao encontro da justiça. Uma caminhada penosa mas
alegre – porque firme na esperança. Um cortejo em que os primeiros
não são os mais ricos, os mais atletas, os mais espertos para furar
na vida, os mais dotados para actividades intelectuais ou para jogar
na diplomacia… Quem, da lista destes «mais», tiver a coragem de
jogar forte, vem à mistura com os coxos, com os cegos, com os que
têm amor para «perder tempo» com os filhos … (1ª leitura). Jeremias
dá realce a quem transporta a vida dentro de si ou a seu colo, com o
orgulho de quem vai na linha da frente, na luta por mais e melhor
vida. E é na autêntica partilha deste caminhar, que cada qual se
enriquece e fortifica com os talentos e a força de todos os mais.
Ao lermos o evangelho, vemos que há quem persista em se aproximar de
Jesus, mesmo se alguns lhe barram o caminho; e que quem mais brada e
caminha resolutamente para encontrar a salvação é aquele que é cego
de corpo – os que não se acham cegos, são os que levantam
obstáculos! Muita gente se julga importante por formar o séquito e a
guarda (!) de Jesus – e não facilita a aproximação dos mais pobres e
mais segregados pela sociedade, e até dos que têm menos capacidades
físicas. Tira-se a voz aos «inúteis».
Para Deus, ninguém é inútil – este é um dos grandes princípios
presentes na parábola dos trabalhadores da última hora, que recebem
tanto como os que trabalharam o dia inteiro (Mateus, 20, 1-16). Seja
qual for a idade ou o tipo de vida, cada ser humano, pelo mero facto
de existir, «brada a Deus» – porque tem sede de mais. E por isso
Jesus se apropriou da tradição profética ao dirigir-se de modo
especial aos pobres e marginais (Lucas, 4, 18), porque estes, ao
sentirem na pele as injustiças da vida, precisam de estar atentos a
tudo o que possa ser um sinal de vida nova. E a experiência de ser
reconhecido por Deus e a fé em que, na perfeita «vida nova», Deus
«enxugará todas as lágrimas» e não haverá morte nem dor (Apocalipse,
21, 4), gera, por sua vez, energias positivas para a grande
caminhada da vida.
Uma caminhada onde também ajuda «bradar em coro» – não são estes
«brados» a nossa liturgia, feita de aspirações a uma alegria sem
enganos? Mas de pouco valem estes brados a Deus, se não atendemos
aos brados uns dos outros.
Se não somos sensíveis aos problemas dos outros, não nos admiremos
que se propague a violência. Se não somos capazes de caminhar junto
dos que podem menos (sem snobismo) e dos que podem mais (sem
servilismo), não vamos a lado nenhum, por muita sensibilidade que
publicitemos.
Jesus Cristo é exemplo de quem soube caminhar com uns e
com outros. Não fugiu à fadiga e sofrimento de muitos «encontros»,
como também não fugiu ao prazer do convívio com amigos – fossem
pobres ou ricos.
A carta aos Hebreus continua a
meditação bíblica sobre as semelhanças e confrontos entre o
«Sumo-sacerdote» e Jesus Cristo. O primeiro era o maior
representante do «povo escolhido» e mediador entre o povo e Deus,
dirigindo os actos de culto, perscrutando e ensinando a vontade de
Deus e apresentando as ofertas e sacrifícios dos fiéis,
principalmente no grande dia de festa da reconciliação (ou do perdão
– «kippur»). Jesus Cristo ofereceu sem reservas a sua pessoa e a sua
vida, como perfeito representante da humanidade inteira junto de
Deus – que ele revelou como Pai. Como é sabido, Jesus nunca
pertenceu à classe sacerdotal. O sacerdócio que lhe é atribuído é o
sacerdócio «segundo a ordem de Melquisedeque», um sacerdócio
misterioso, muito superior ao sacerdócio institucional (2ª leitura).
É o sacerdócio do «servo de Javé» (figura de leituras anteriores),
que não recuou perante o «sacrifício» duma morte violenta e
humilhante. Como ele, todos nós somos chamados a pertencer a este
tipo de sacerdócio: doravante, cada pessoa é o verdadeiro templo de
Deus (João, 4, 23-24) e cada fiel é um sacerdote apresentando a sua
vida a Deus (1ª carta de S. Pedro, 2, 9), oferecendo a Deus a luta
por uma vida honesta, dedicada à justiça e ao amor, e assim
criadora, juntamente com a de Jesus Cristo, de um mundo sempre
melhor.
Diz-nos o Evangelho que o cego, ao ser chamado por Jesus, «deu um
salto» para chegar mais depressa – e ainda era cego! Bastou-lhe
sentir e prestar atenção à voz divina – a voz que não nos deixa
adormecer no nosso cantinho. Só com esta coragem é que vale a pena
ter os olhos abertos, provocando, com os nossos «brados e saltos», a
luta por mais e melhor vida. |