Liturgia Pagã

 

As dobras da vida

28º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro da Sabedoria, 7, 7-11

2ª leitura: Carta aos hebreus, 4, 12-13

Evangelho: São Marcos, 10, 17-30

 

Valerá a pena ser honesto nos tempos que correm? Valerá a pena preferir a sabedoria ao oportunismo?

Há coisa de vinte anos atrás, uma conceituada revista internacional estudava o impacto das aulas de moral em vários países dos cinco continentes, entre os mais e menos desenvolvidos. E o resultado foi revelador: eram as mais preferidas – mas também as mais inúteis para "vencer na vida". Pois quantos é que conseguem subir na vida, sobretudo ao topo, sem mentir, sem adular, sem roubar, sem fazer-se falso amigo, sem espezinhar os outros? O próprio bem comum passou a ser um rótulo vazio, sentido como limitador do nosso projecto pessoal. Demasiadas vezes, até, aqueles que hasteiam a bandeira do bem comum pretendem sobretudo enrolar quem ainda se deixa levar por sentimentos ou ideias sãs, ficando eles confortavelmente instalados nos seus postos de privilégio.

Será que a Sabedoria vale muito, mas não serve para nada?

Cerca de um século antes de Jesus Cristo, um autor erudito e inspirado, bom conhecedor das culturas judaica e grega, lutou corajosamente contra esta inversão endémica de valores, ao longo da aventurosa história da espécie humana. Em termos bem incisivos, proclama como a Sabedoria só habita em quem a deseja sinceramente; e que as honras e riquezas não a podem comprar (embora os espertalhões a finjam possuir) e que nada valem sem ela. Nem a saúde nem a beleza se lhe comparam: enquanto o esplendor do corpo humano se vai desfazendo, a sabedoria brilha cada vez mais, e até embeleza e transforma as rugas, a dor e a própria morte. Quem procura a Sabedoria acima de todas as coisas descobre os tesouros e a alegria que se escondem nas "dobras da vida".

Na 2ª leitura, vemos que receber a palavra de Deus é receber a sabedoria. Mas nada recebemos se não nos preparamos para discernir o modo de pôr a vida a render 100%, qualquer que seja a duração e as condições da vida de cada qual – não é o que dizem as parábolas dos «talentos», dos «trabalhadores da vinha» e do «semeador»? Se não desenvolvermos o espírito crítico, acabamos por nos deixar levar como garrafões de plástico vazios ao sabor das ondas da publicidade assente no comodismo, ou no prazer e sucessos apenas imediatos (tão frustrantes para quem aposta a vida nessa colecção!).

Budistas, cristãos, muçulmanos... e até ateus – quantos destes deram ao mundo o testemunho de abandonar o brilho do oiro e da beleza, naturalmente cativantes embora perecíveis, para mais livremente seguirem a sabedoria?

O jovem rico do evangelho, reconhecidamente cidadão exemplar e atento à palavra de Deus, pôs o problema desta escolha a Jesus Cristo. Queria ter a certeza da melhor estratégia de investimento da vida de todos os dias para alcançar o prazer garantido de viver. Faltaria alguma coisa? Não, não faltava. Na opinião de Jesus, até tinha a vida muito bem orientada. Mas ele parecia querer o risco de novos investimentos. Então, Jesus lançou-lhe o isco: porque não entrar numa «joint-venture» com o Mestre?

Ora a palavra de Deus penetra como uma espada de dois gumes e é capaz de distinguir as intenções e os pensamentos do coração (Sabedoria, 18, 15; Isaías, 11, 2-4): temos que ser honestos para com Deus, para com os outros e para connosco, não dizendo que queremos o que não podemos ou não estando para modificar a nossa vida (Lucas, 14, 28-33). A sabedoria não é pertença nem de ricos nem de pobres, mas de quem a aprecia acima dos muitos ou poucos bens terrenos que possui. O jovem rico preservava a sabedoria acima de tudo − de outro modo Jesus não lhe teria reconhecido a honestidade e boa vontade. Mas a estratégia proposta por Jesus era-lhe demasiado estranha ao sentir e ao pensar.

Na catequese tradicional, interpretava-se frequentemente este episódio «do jovem rico» como uma condenação da riqueza, ao mesmo tempo que se exaltava o entusiasmo de Pedro que, logo a seguir, exclama para o Mestre: – Mas nós não somos assim! Nós até deixámos tudo para te seguir de perto! (Não se podiam comparar os apetrechos piscatórios de Pedro & companhia com os bens do jovem rico, mas o sacrifício não se mede assim – custa sempre muito deixar tudo o que temos!).

Ora Jesus sublinha apenas que a riqueza material desse jovem o fez desanimar de embarcar numa vida plenamente dedicada ao maior bem de toda a gente. Não condenou a riqueza (não era Jesus sustentado pela riqueza dos seus amigos − homens e mulheres?) mas apontou como uma pessoa rica enfrenta grandes dificuldades para ser plenamente honesta. Como também é particularmente difícil a um político ou a quem quer que detenha grande poder. Todos estes facilmente embarcam numa lógica de eficácia do aumento desse poder ou dessa riqueza − tanto mais facilmente quanto mais longe vão os tempos em que se debatiam na luta pela vida. (Queira Deus – e queiramos nós – que não se possa aplicar esta crítica a quem diz e se apresenta com o estatuto de seguidor de Jesus).

O problema é que não bastam os bons propósitos. Já os profetas do Antigo Testamento denunciavam a «tristeza» de Deus, porque aqueles que se diziam «o seu povo» honravam-no com palavras bonitas, mas guardavam o coração bem longe… (Isaías, 29, 13; 1,14-17); e chegavam a apregoar aos quatro ventos que eram bons (Mateus, 7, 21-23; Lucas, 16, 14-15; 18,9-14). Jesus Cristo não se deixava enganar por certas orações devotas…

Na continuação do texto da 1ª leitura, o autor elogia quem sabe tirar partido dos prazeres da vida: é à Sabedoria que se deve a procura persistente de tudo o que nos pode fazer sentir bem. É a Sabedoria que desperta e robustece a arte de encontrar em todas as vidas o sabor de viver. É a Sabedoria que ensina a encontrar o bem próprio sem descuidar o bem dos outros.

Se ninguém fosse capaz de remar contra as marés poluentes da humanidade, já o nosso mundo seria muito pior do que nós dizemos que é. Sempre que damos testemunho de nos preocuparmos com a justiça, apesar daqueles que se sentem mal e atacam o nosso esforço, a Sabedoria ensina-nos, como diz o evangelho, a encontrar a felicidade e o sabor da Vida já nas dobras da vida…

 
08-10-2009


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