Liturgia Pagã

 

Cada qual sabe as linhas com que se cose

 

4º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro de Sofonias, 2, 3; 3, 12-13

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Coríntios, 1, 26-31

Evangelho: S. Mateus, 5, 1-12

 

Nem Jesus Cristo resistiu a apresentar linhas programáticas. E não podia ter arranjado mais eficiente mandatário do que o futuro S. Mateus, um evangelista letrado e bom conhecedor das esperanças e ideias-chave do povo judeu. Organizado como era, reuniu os grandes temas do programa de Jesus nos capítulos V, VI e VII. No evangelho de hoje, só leremos as célebres «bem-aventuranças», registadas também por S. Lucas, embora com diferenças de redacção que têm dado que pensar (cfr. Lucas, 6, 20-23).

O profeta Sofonias insiste na humildade e pobreza, sem as quais não estaremos aptos para nos encontrarmos com Deus. A insatisfação dos ricos é muito diferente da insatisfação dos pobres. Há ricos que só têm olhos para o aumento da riqueza, julgando-se protegidos por ela, e não querendo investir no bem comum, que afinal seria o maior bem para eles próprios; mas também há aqueles que têm «fome e sede de justiça», e como tal reconhecem a sua pobreza diante de Deus e que não se satisfazem com possuírem grande potencial económico, utilizando-o para combater a injustiça e todo o mal.

S. Paulo sublinha que o «reino de Deus» não é o reino dos sábios e dos poderosos. Estes também podem colaborar na expansão deste reino, mas reconhecendo que perante Deus somos todos iguais, e que o orgulho dos homens chamados importantes pela pretensa sabedoria e poder, facilmente os faz achar o plano de Deus ridiculamente exigente Não se perguntam pela verdadeira sabedoria e felicidade. Coerentemente, não acreditam no «mundo que há-de vir».

A ideia de «pobreza» e do «mundo que há-de vir» são fundamentais para compreender o sentido das «bem-aventuranças». Talvez seja mais exacto utilizar a expressão «bem-aventurado» de preferência a «feliz»: porque «feliz» aplica-se a uma situação presente, enquanto que «bem-aventurado» contém uma referência clara ao futuro, já na própria formação da palavra (como «ventura» e «aventura» apontam para o que há-de vir). O futuro é o dinamismo do presente.

Os pobres, os que choram, os que sofrem pela falta de bens materiais e de justiça, essenciais para sobreviver – são infelizes. O próprio Jesus Cristo se referiu à dureza das suas condições de vida, à sua tristeza e angústia, sobretudo antes de morrer. Ele experimentou o que é ser um desgraçado e desprezado.

Mas nem os primeiros discípulos nem o próprio Jesus precisavam de ser pobres materialmente. Jesus tinha uma casa, um pai com emprego e a sua família era conhecida. O grau de cultura de Jesus implica um meio favorável a uma boa educação. A sua pobreza foi duplamente escolhida: como estilo de vida, para mostrar o seu desapego àquilo que endoidece muita gente e causa tanta violência; e como aceitação de uma especialíssima missão na terra.

Poderíamos dizer que a “pobreza perante Deus” é a porta das bem-aventuranças. Reconhecemos que este mundo não nos basta e que há muito sofrimento e injustiça. O que nos leva a questionar o próprio Deus e a saber discernir o que Deus nos quer dizer. Para sabermos ouvir Deus, temos que estar dispostos a escutá-lo. Para todos, com muito ou pouco dinheiro, com muita ou pouca saúde, com muita ou pouca formação académica, há sempre muito que fazer, até ao momento em que o nosso corpo já não aguenta mais. Mas até aí, mostramos o nosso esforço por um mundo novo, e que o nosso último olhar transmita amor e a esperança.

Só há duas bem-aventuranças em que é empregado o presente do indicativo: a dos pobres e a dos que sofrem pela justiça – porque neles se revela a força e a transcendência do reino de Deus, que não se constrói pelos métodos do mais poderoso «trust» internacional.

Presentemente, os teólogos reconhecem que houve abusos de interpretação das bem-aventuranças, como se só aos infelizes deste mundo coubesse a felicidade eterna. Ambos os extremos são de evitar: nem ser feliz como se só contasse o momento presente (uma má interpretação do «carpe diem»), nem descurar o prazer da vida presente, como se não tivesse valor: «carpe diem» leva-nos a viver o melhor possível o momento presente, com verdadeiro prazer para cada um de nós e para os que estão à nossa volta, mas conscientes de que esse prazer é apenas uma débil imagem da felicidade que nos foi prometida, e que é do maior interesse não a pôr em cheque. Para muita gente, isto é como pensar na morte – mas não veio Jesus Cristo para garantir a nossa vida para sempre? É de facto uma ideia de «loucos», como escreve S. Paulo!

Muitas pessoas escolhem, com bons fundamentos, uma vida dura, como em certas ordens religiosas, justamente para testemunhar a importância do «mundo que há-de vir», e terem aquela pobreza que é sinal da disponibilidade total para o plano de Deus.

Note-se, porém: qual será o sentido das últimas palavras do evangelho? «Exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa». Perniciosamente se tem oposto «céu» a «terra», deixando para o primeiro aquele azul tão limpinho e tão frio… Seria mais exacto, mesmo de acordo com a cultura bíblica, traduzir à nossa moda: vereis como sereis recompensados com uma alegria muito superior – mas cuidado com as normas de segurança para a atingir! Uma alegria sentida agora e para melhorar esta terra que pode ser tão bonita…

As bem-aventuranças são tipicamente «escatológicas» (o termo grego «eschaton» significa «último, afastado, que está ou vem no fim»): apontam o que é a plenitude de vida segundo os critérios de Deus, condição necessária, e até psicologicamente confirmada, para não nos sentirmos frustrados enquanto procuramos a maior felicidade possível neste mundo. Dir-se-ia mesmo que a escatologia é a «ciência da esperança», pois encara o ser humano como nunca definido pelo presente mas orientando o presente pela visão, simultaneamente optimista e dramaticamente real, de que a vida vale a pena. Visão real, porque exprime a nossa própria razão de ser; Visão dramática, porque se reflecte na nossa corrida aparentemente louca na busca daquele lugar onde a gente se sinta «mesmo bem». Cada qual sabe as linhas com que se cose…

 31-01-2008


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