2º Domingo do Tempo Comum (ano A)
1ª leitura: Livro de Isaías, 49, 3-6
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Coríntios, 1, 1-3
Evangelho: S. João, 1, 29-34
Sobre a personalidade de Jesus, é difícil mas
necessário ter presente as facetas mais paradoxais. As leituras de
hoje continuam a lembrar o «servo de Javé», escolhido por Deus para
mensageiro da luz e da justiça; e que não se recusou a poder ser
comparado ao «cordeiro ingénuo», que se deixa arrastar para a morte;
mas que na realidade agia conscientemente, sem receio de enfrentar a
dor, fiel ao projecto para o qual reconheceu ser «o eleito de Deus»
(termo talvez mais exacto do que «filho de Deus» – evangelho), sem
desiludir quantos nele depositaram a esperança. A mansidão
juntava-se à energia, o trato próximo e afável às mais duras
palavras contra quem teimasse no mal. Uma vida tão curta e tão
circunscrita geograficamente, mas uma palavra e acção tão fortes que
ecoaram pelo mundo inteiro. Jardineiro paciente da semente mais
pequenina – que se transformou numa árvore pujante.
«Cordeiro de Deus» é sem dúvida uma expressão
que fez fortuna na arte e no sentimento religioso; mas que
dificilmente terá, nos tempos de hoje, a ressonância que lhe cabia
na história do povo judeu, embora a riqueza simbólica dos animais
tenha acompanhado desde sempre a história humana até aos nossos
dias, como se pode ver nos poemas primitivos de outras civilizações,
e em poetas como Virgílio (séc. I a. C.) ou S. Francisco de Assis
(séc. XII-XIII).
No mito da origem da vida e do mal, como vem
contado no Livro do Génesis, lemos que o Homem foi chamado para «dar
um nome» a todos os animais da terra. Essa expressão significa a
superioridade sobre todos os outros animais, no plano do
conhecimento e do poder, mas reconhecendo neles os mais próximos
participantes no drama entre Deus e o Homem. Quem esquece o
protagonismo da serpente do “paraíso”, talvez o único papel negativo
atribuído a um animal, na Bíblia? Eles servirão o Homem, que os não
deve maltratar, e se os “sacrifica” a Deus, é justamente porque lhes
dá muito valor. E a paz no mundo é simbolizada pela harmonia entre
todos os animais, sejam lobos e cordeiros, e entre estes e o Homem.
Aliás, o extremo legalismo da religião
judaica, penetrando toda a dimensão da vida humana, ainda pode
guardar para nós o sinal positivo de que absolutamente tudo o que
existe, absolutamente todas as nossas acções, podem, sem excepções,
constituir a base de um acto de culto a Deus, criador da Beleza e da
Riqueza do universo.
Em muitas passagens bíblicas do Antigo e Novo
Testamento, Deus mostra carinho pelas animais e plantas, e o homem
sábio procura conhecer a sua natureza (Livro da Sabedoria, 7,
15-21). A visão de S. Pedro (Actos dos Apóstolos, 10), em que uma
voz do céu lhe manda comer de «animais puros e impuros», não prepara
apenas o espírito do apóstolo para não discriminar pagãos de judeus:
também testemunha a santidade universal de toda a criação. No Novo
Testamento, a díade cordeiro-pastor adquire o alto simbolismo do
cuidado eterno de Deus para com aqueles que O seguem.
O cordeiro era a base da riqueza do povo
judeu, e facilmente atraiu atributos positivos: utilidade, beleza,
mansidão, união com o pastor, não oferecendo resistência, quando é a
hora de ser sacrificado para alimento de todos, ou como um bem
precioso que se oferece a Deus como sinal da nossa disponibilidade
para abdicar de certos bens quando está em jogo um bem maior. O
cordeiro é símbolo destas e doutras qualidades, sendo Deus o Pastor.
O termo grego utilizado no Novo Testamento
para significar “cordeiro” («amnós») é o mesmo com que se refere o
“cordeiro de expiação” das nossas faltas, imolado na páscoa judaica,
e que não podia ter manchas nem defeitos. Já no tempo dos apóstolos,
Jesus Cristo seria reconhecido como o «verdadeiro cordeiro», cuja
morte sacrificial obteve o máximo efeito. Por outro lado, também era
reconhecido como o pastor sem medo.
Curiosamente, no Livro do Apocalipse,
utiliza-se outro vocábulo («arníon») que tanto pode significar
cordeiro como carneiro. Se o cordeiro se alia com mansidão e pureza,
já o carneiro simboliza a força, poder e a sabedoria. Ora o
Apocalipse fala sobretudo da força, do poder e da glória do «arníon»,
esse animal cheio de olhos e de chifres (símbolos de ciência e
poder), superioridade e bravura. Mas como o carneiro não pode ser
imolado, e Jesus Cristo foi imolado (5, 6-12; 13, 8), conclui-se que
o autor do Apocalipse pretendia juntar em Jesus Cristo todas estas
características próprias de um ser de nível divino, chegando a ver
nele um juiz severo e chefe guerreiro. Por isso, ao lermos o autor
do quarto evangelho (provavelmente diferente do autor do Apocalipse)
em que João Baptista aponta Jesus como «o cordeiro de Deus», podemos
lembrar a função divina de Jesus na totalidade da dramática história
humana.
Jesus Cristo é percebido, desde os primeiros
tempos, como revelador do sentido pleno das figuras sacrificiais do
Antigo Testamento. Assim, os cristãos reconheceram, na «Última
ceia», os “ingredientes” habituais dos antigos sacrifícios: carne e
sangue «oferecidos por nós». O «sacrifício da missa» será um lugar e
um tempo especiais para recordar o sentido da vida de Jesus e
fortalecer a nossa esperança. Na 1ª carta aos Coríntios (que será a
2ª leitura até ao VII domingo do tempo comum), S. Paulo sublinha que
Jesus morreu por nós (15, 3) e que assim representa também o
significado libertador do «cordeiro pascal» (5, 7).
Este domingo, porém, revela um importante
factor comum – a Humanidade vista como variadíssimo conjunto de
pessoas, todas com igual direito à vida feliz: a 1ª leitura diz que
a missão do «eleito de Deus» vai muito para além de Israel – será «a
luz para todas as nações». A 2ª leitura tem em mente todos os que
invocam o nome de Jesus «em qualquer lugar». O evangelho é quase
cósmico: «o cordeiro que tira o pecado do mundo» como que substitui
o «pessimismo» (mesma etimologia de «pecado») pelo optimismo de
tempos sempre novos – optimismo que nos cumpre guardar, atentos às
invasões astuciosas da injustiça.
A vinda de Jesus deu o pleno sentido à
história religiosa de Israel, que esperava o salvador perfeito e
procurava «purificar-se» através de festas rituais. Continuamos a
precisar de símbolos e ritos, pois de outra maneira não conseguimos
sentir e viver socialmente a experiência de Deus que é «a profunda
verdade de nós próprios».
Mas o próprio Jesus advertiu, com mais
veemência do que os antigos profetas: Deus não se encontra nos
templos, como se fosse um ídolo, nem nas profundezas do mar ou nas
altas montanhas, como se fosse um ser mitológico (João, 4, 21-24;
Mateus, 6, 5-13); Deus está connosco, Deus é a vida que nos sustenta
«agora e para sempre»; e «sempre que duas ou mais pessoas estiverem
reunidas em nome de Jesus, ele estará presente» (Mateus, 18, 19-20).
A aventura da fé, tal qual a do amor, não é solitária. |