4º Domingo da Quaresma (ano A)
1ª leitura: 1º livro de Samuel, 16,
1-13
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos
Efésios, 5, 8-14
Evangelho: S. João, 9, 1-41
O ponto é sabermos de quem é a
graça em que caímos. Muitas vezes, cair em graça de alguém é
prender-se à desgraça desse alguém. Raramente é seguro cair em
graça, enquanto isso não se traduzir numa situação de independência
económica. É claro que há sempre quem saiba aproveitar-se bem da
«graça» dos outros.
Na 1ª leitura, foi David quem
caiu em graça, embora não fosse ele mas Eliab o mais engraçado.
S. Paulo dá uma volta ao
provérbio: se não nos fazemos engraçados perante Deus, não
conseguimos cair na sua graça.
Quanto a S. João, apresenta-nos
uma das histórias mais dramaticamente bem desenvolvidas de todo o
Evangelho. O cego caiu na graça de Jesus sem sequer pretender
fazer-se engraçado; fez-se engraçado perante os fariseus e só lhes
caiu na desgraça; finalmente seguiu o conselho de S. Paulo: mostrou
a Jesus a sua maneira de ser engraçado e Jesus revelou-lhe o segredo
e a força da sua graça.
O provérbio em questão é exemplo
da sabedoria amarga: dá conta de que o sucesso na vida depende mais
do proteccionismo do que do valor pessoal. Mas também é um conselho
de prudência e até de esperteza: os poderosos não podem ser atacados
frontalmente, e até se tornam fracos se lhes alimentamos a vaidade.
Também chama a atenção para um
princípio estratégico: «Qual é o rei que parte para a guerra contra
outro rei e não se senta primeiro para examinar se lhe é possível
com dez mil homens opor-se àquele que vem contra ele com vinte mil?
Se não pode, estando o outro ainda longe, manda-lhe embaixadores a
pedir a paz» (Lucas, 14, 31-32).
Esta pequena parábola insere-se
nos avisos que Jesus nos deixa sobre o realismo com que devemos
enfrentar as exigências de uma vida de acordo com os seus
princípios. Cada pessoa tem o seu modo de seguir Jesus, sem exemplos
para copiar. A grande graça de Deus é que nos fez, a cada um de nós,
inimitavelmente engraçados. É com o jeitinho de cada qual que caímos
na graça de Deus.
Acontece que, na maioria das
organizações humanas, este jeitinho ou originalidade é olhado com
suspeita e mesmo com aberta desaprovação. É muito mais fácil
organizar uma sociedade quando não se permitem posições pessoais. E
os critérios de escolha de pessoas assentam facilmente, por isso
mesmo, em características superficiais, as únicas facilmente
avaliáveis, ao contrário das qualidades profundas de alguém.
A boa apresentação de Eliab, o
concorrente de David, não era critério determinante para Deus.
Note-se, porém, que não deixava de ser uma qualidade, como o prova a
referência ao «aspecto agradável» de David. Um político não é bom
pela sua “presença”, mas uma “boa presença” dá brilho à sua acção e
facilita-lhe cair na graça dos outros. Como o rei que parte para a
guerra, tem que cuidar da sua “presença”.
O evangelho de S. João explora
abundantemente as oposições luz/trevas, espírito/carne, vida/morte,
verdade/falsidade, céu/terra. Cumpre-nos a nós, alertados pelas
palavras e pelo exemplo de Jesus, escolher o caminho da vida. Desta
maneira, estamos a cuidar da nossa “presença” diante de Deus,
estamo-nos a mostrar «engraçados». Não podemos andar cegos, não
podemos preferir as trevas.
Talvez mais que os outros
evangelistas, S. João sublinha a dimensão simbólica dos «milagres».
A piscina de Siloé quer dizer «piscina do Enviado»; o maior mal da
cegueira é não querermos sair dela; as pessoas que mais impedem o
progresso da humanidade são as presunçosas de que só elas é que
vêem, sendo que estão cegas de orgulho e ambição; escolher a luz e a
vida traz alegria mas também a condenação e perseguição daqueles que
não querem essa escolha.
A «comunidade joânica» é a fonte
do Quarto Evangelho (o de João). Os problemas e perplexidades desse
grande grupo formado à volta do evangelista S. João reflectem-se ao
longo de todo o evangelho (bem como no Livro do Apocalipse). Ninguém
desse grupo tinha conhecimento directo de Jesus e debatiam-se num
mundo em que não era fácil acreditar a sério na sua mensagem. Ouviam
falar de Jesus como sendo «a vida» mas no cenário em que a morte é
angustiante. Além do mais, já não eram tolerados pela comunidade
judaica, que, nos finais do século primeiro, decidiu expulsar da
sinagoga todas as seitas, nomeadamente o cristianismo.
Era uma comunidade muito
heterogénea, onde abundavam samaritanos e não judeus. A maioria dos
termos religiosos da cultura hebraica já pouco lhes dizia (por isso
o Evangelho de João explica muito o sentido das palavras). Pode-se
mesmo apontar esta comunidade como um bem sucedido esforço de
aceitar as diferenças e de fazer valer as diferenças, mas sob a
égide do amor.
A esta comunidade não
interessavam tanto as «histórias sobre Jesus» mas sim o que Jesus
podia significar noutros tempos e contextos. A «comunidade joânica»
é um bom exemplo de que o «Evangelho de Jesus» não vale como um
código de comportamentos mas sim como a revelação da «graça de
Deus». Só que a «graça de Deus» não é proteccionista, muito pelo
contrário: aumenta a nossa insatisfação por uma vida plena, já agora
e para sempre. Relatar a fé dos outros só interessa se interpelamos
a nossa fé. Muito significativamente, S. João nunca usa o
substantivo «fé» mas unicamente o verbo equivalente a «ter fé»,
notando que a fé não é um bem de herança: é uma luta contínua por
descobrir o sentido da vida, como o amor é a única força que dá
garantia a todas as manifestações de vida no nosso dia-a-dia.
O facto da figura histórica de
Jesus se ir afastando no tempo provocou a consciência de que a vida
de Jesus era de facto uma vida junto de um Pai para o qual ninguém
morre (Lucas, 20, 38). E de que Jesus foi sobretudo a expressão do
amor desse Pai. E de que a força desse amor (ou Espírito de Deus)
continua connosco, continuando a revelação pelos tempos fora e
provocando o nosso jeito de nos fazermos engraçados, como o cego que
se foi lavar à piscina do Enviado. |