Liturgia Pagã

 

Bem-Haja

 

28º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: 2º livro dos Reis, 5, 14-17

2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo a Timóteo, 2, 8-13

Evangelho: S. Lucas, 17, 11-19

  

Quem não gosta de ouvir estas palavras? Às vezes por um simples gesto de cedência de passagem; outras vezes pelo mero ar prazenteiro com que desempenhamos a nossa profissão; ou pela delicadeza de escutarmos um desabafo passageiro.

«Muito obrigado» é mais corrente, mas também é dito com um sentido bem diferente: com despeito, desilusão, ou mesmo certa raiva por alguma coisa que nos foi feita e que fere os nossos interesses.

Com Deus, é normal que apeteça usar os dois sentidos. Quantas vezes nos queixamos amargamente contra Deus – quando não nos insurgimos violentamente. Até na Sagrada Escritura encontramos exemplos bem chocantes. Não lemos este amargor no livro de Job? E em vários salmos? Parece que Deus só se lembra de nós para fazer sofrer. Vá-se lá entender! Por muito que a Bíblia afirme que «os caminhos de Deus são misteriosos» e que a sabedoria popular (a modos de quem desculpa o próprio Deus…) lembre que Ele «escreve direito por linhas tortas» ou que «dá o frio conforme a roupa» … nem Deus nos pode convencer de que o mal existe para que a gente se lembre dele.

 Porém, as fundamentadas invectivas de Job contra Deus não o fizeram esquecer do sentido positivo do «obrigado» (os escritores antigos acharam a história tão triste e tão ao arrepio do sentido superficial de justiça, que acrescentaram que Deus voltou a fazer de Job o mais agraciado com bens deste mundo). Na verdade, o grande bem de Job foi ter sabido encontrar-se com Deus independentemente das contingências da vida.

«Obrigado» significa estar «ligado» (ob+ligare) especialmente com uma pessoa, devido a algo de bom que essa pessoa nos proporcionou. Mais força tem a palavra «religião», que significa estar «ligado» (re+ligare) de maneira muito especial a alguém muito especial. Dizer obrigado a Deus pode ser assim um profundo acto religioso. Assim o fez Job (que não pertence às histórias deste domingo), assim o fez o general sírio da 1ª leitura, e Paulo nos maus momentos da sua vida (2ª leitura) e em particular o samaritano do evangelho: agradecer a Deus é «dar glória a Deus», como S. Francisco de Assis dava glória a Deus, ao olhar para o sol, para os passarinhos ou para as formigas do caminho.      

Mas S. Francisco também dava glória a Deus, pela «irmã dor» e pela «irmã morte». Foi por isso que falei de Job, que tal como o general sírio e os dez leprosos, tinha a experiência da dor acompanhada da exclusão social. No grito «tem compaixão de nós», podemos ver mais do que um pedido de cura: mais radicalmente, será um pedido de sentido para a vida.

 Muito teimou o general pagão para que o profeta Eliseu aceitasse o seu agradecimento! Também só um samaritano (quase um pagão, para os Judeus) é que veio agradecer. E como Jesus gostou!

É notável este fraquinho de Jesus por estrangeiros, prostitutas, pobres, doentes... os «marginais» relativamente ao resto da sociedade. Sê-lo-ão por culpa própria ou não, mas o certo é que esse resto da sociedade (não só «a sociedade bem»), ao classificá-los assim, se coloca facilmente no pedestal da conveniência, no pedestal dos «justos». É politicamente correcto falar do problema e sugerir ou mesmo implementar certos remédios paliativos. Porém, a grande culpa desse resto da sociedade – a que pertence a quase totalidade dos que podem ler e pensar sobre o assunto – é não se mobilizar como um todo, impedindo as injustiças que tornam a vida insuportável, sobretudo quando se lhes junta uma atitude de desprezo. É a sociedade, no seu todo, que deve promover a imaginação para mudar o que parece fatalidade (uma expressão com que facilmente desculpamos a nossa falta de acção). Quando cada um souber falar com cada qual, esquecendo pedestais, a simpatia da palavra que nos une gera condições para eficazes medidas de justiça.

            Jesus não se pôs em pedestal nenhum – e a sedução da glória e do poder passou-lhe bem perto, a julgar pelas simbólicas tentações no deserto, no início da carreira.

Foram nove leprosos os que se contentaram com o pedestal de curados milagrosamente. Só o samaritano viu em Jesus alguém com quem se pode e é bom falar. Só para ele é que se deu o começo de uma vida nova. Doravante, saberá ajudar os outros com a sua experiência de sofrimento, mais preparado para lutar contra a raiz do desânimo.

Jesus não curou todos os leprosos do seu país: mas deu-nos a entender e a sentir que «o reino de Deus já está entre nós» (evangelho). Se aceitarmos conversar com Jesus Cristo, o mundo não pode continuar a ser o mesmo. No bem físico, que Jesus Cristo espalhou à sua volta, vemos que a felicidade é para ser sentida tanto fisicamente como espiritualmente. A própria dor é um desafio à nossa capacidade de superação, utilizando toda a nossa ciência e toda a arte das relações humanas.

Há pequenos segredos para solidificar a esperança com que se vai construindo o «reino de Deus».

Um deles é não ter vergonha nem ter medo de perder tempo com dizer a propósito «bem-haja» ou «muito obrigado». Ao condutor que nos dá precedência, a quem nos facilita o passo, a quem nos chama a atenção… ao polícia cujo delicadíssimo trabalho de ajuda não estamos para reconhecer, ao homem do lixo que acabou de apanhar o nosso saco… ao braço amigo que nos ajuda a passar a rua, à voz amiga que nos anima, consola ou nos ensina a quem ou a que podemos recorrer … ao médico, ao jurista, ao sacerdote, ao professor… e porque não às vozes e gente de acção que se erguem contra as mil formas de injustiça na sociedade.

Como se cada um de nós fosse um menino mimado a quem o milagre é devido. Como se cada um de nós não devesse ser autor de muitos milagres – aqueles que transformam a rotina ou situações especiais de sofrimento em momentos de sólida esperança.

Vamos fugir como os nove leprosos a gritar que a vida agora vai boa (para eles)? É fundamental voltar atrás para reconhecer a fonte de cada pedacinho de mundo novo. Reconhecendo a bondade activa de milhões de seres humanos, «reconhecemos a maravilha que é Deus» (sentido da expressão «santificado seja o teu nome»). E geramos um ambiente cada vez mais propício aos pequeninos milagres da cada dia – com um mero Bem-haja! Ou Muito obrigado!

 

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