27º Domingo do tempo comum (ano C)
1ª leitura: Profeta Habacuc, 1, 2-3; 2, 2-4
2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo a Timóteo, 1,
6-14
Evangelho: S. Lucas, 17, 5-10
Habacuc não vivia
em dias melhores do que os nossos: o povo judeu era continuamente
arrasado pelos povos mais poderosos (provavelmente os Caldeus, cerca
do ano 600 antes de Cristo). E ele não se inibe de duras
recriminações contra Deus: então nós, que somos o teu povo e
acreditamos em Ti, somos espezinhados pelos teus inimigos, que se
riem da nossa fé e se gabam de que não precisam de Deus nenhum para
serem fortes? Como é que Tu permites que o «justo» (nós!) seja tanto
tempo maltratado pelo «ímpio» (os outros)? Na oração de Habacuc,
Deus vai-lhe dando umas achegas: o tal «nós» não é assim tão justo,
é talvez o verdadeiro «ímpio», pois dizendo que acredita em Deus,
não age à imagem da bondade de Deus; não estará até, de algum modo,
a provocar a ira e crueldade dos povos vizinhos? Afinal, não são
apenas os Caldeus que põem em cheque a justiça divina. Por outro
lado, o comportamento condenável de toda uma sociedade é fruto da
semente do mal, que compete a cada pessoa deixar ou não crescer
dentro de si.
Habacuc, porém,
tem a experiência, adquirida ao longo da vida e ao longo da cultura
do seu povo, de que vale a pena esperar em Deus, mesmo «contra toda
a esperança», como dirá S. Paulo centenas de anos depois. É este
Paulo que, na segunda leitura, pede a Timóteo que não se envergonhe
de «dar testemunho de Nosso Senhor», porque Deus «não nos deu um
espírito de timidez, mas de fortaleza, de caridade e de moderação».
Nos dias de hoje,
o que parece mais faltar é o espírito de fortaleza, e o resto da
frase diz exactamente as condições para o receber: amor e moderação.
Com efeito, ter força e não a saber moderar, só é contra-producente.
Por seu lado, o próprio amor necessita de prudência, para obter um
efeito mais duradouro – uma prudência que se confunde com a
esperança pertinaz.
Mas o evangelho é
estranho: os discípulos pedem a Jesus: «aumentai a nossa fé». E
Jesus, longe de responder, até parece classificar a pequenez da fé
deles, que nem se assemelha à mais pequenina das sementes. Logo a
seguir, chama de «inúteis» os servos que trabalharam todo o dia.
Estes dois
exageros reflectem expressões da época, que jogam muito com os
paradoxos. Jesus tem por base o procedimento habitual: os servos não
comem à mesa do seu senhor, e é suposto que trabalhem bem. A
novidade está no adjectivo «inúteis» (a palavra original é difícil
de traduzir por um único vocábulo): os bons servos estão sempre
dispostos a continuar a servir. É como se o pagamento fosse a
consciência de ter cumprido o próprio trabalho, de acordo com a
função que cada qual é capaz de exercer. Note-se, aliás, que o
próprio Jesus Cristo se apresenta como «aquele que serve» (Lucas,
22, 27) e, como senhor, convida os servos para a sua mesa (Lucas,
12, 37). Na dimensão humana, o servo é submisso; na dimensão divina
revelada, somos todos uma comunidade de “servidores”.
É mesmo preciso
muita fé para correr o desafio de amar desta maneira, e muita
moderação para não desestabilizar as relações humanas, agindo
suavemente (a suavidade é uma característica típica do Messias, no
Antigo e Novo Testamento). Mas é assim o amor: não se cansa, não se
julga merecedor de paga ou de descanso, não se julga superior a
ninguém. Quando este amor não tem cabimento nas relações humanas,
desembocamos numa luta feroz pelos nossos «direitos», e se possível
com pouco trabalho.
Ter uma fé tão
pequenina como um grão de mostarda faz coisas espantosas – é a
lição. Mais uma vez, não importa a quantidade mas a qualidade. A
frase do evangelho «se tivésseis fé, diríeis...» seria mais exacta,
segundo especialistas, com uma ligeira mas fundamental alteração:
«se tivésseis fé, teríeis dito... teria acontecido...». Porque a fé
não é esperar que as coisas aconteçam, mas fazê-las acontecer,
confiando que Deus fará crescer a semente da acção e da fé. Como
«servos inúteis», nunca devemos parar de trabalhar; como «servos
inúteis», sabemos que o trabalho, por muito que pareça, de muito
pouco valerá sem pedirmos a Deus que a nossa acção se integre no seu
plano de libertação do Homem. É por isso que vale a pena querer
erradicar a injustiça deste mundo; e vencer o desânimo perante o
projecto da educação necessária para que saibamos harmonizar as
nossas liberdades.
O mais custoso é
o chamado «silêncio de Deus», quando nos sentimos sem base nenhuma
para ter esperança. Nos momentos difíceis, quando queremos ter fé,
parece que nos encontramos sozinhos na escuridão. E esse Deus que se
diz estar sempre connosco, e que se tem revelado como companheiro,
afinal só torna mais negra a solidão. Por muito que trabalhemos nos
campos de Deus, por muito que dêmos o nosso melhor, chegamos à noite
e deparamos com a casa deserta. Deus nem deixa um recadito a dizer
ao menos que um dia há-de aparecer para pagar...
Será grande
consolação dizer que isto se passa e tem passado com muita gente que
se esforça por praticar o bem? Aliás, procurar fazer o bem no meio
das maiores desgraças sociais – como nos pode fazer sentir o Deus
que se chama Alegria? Nunca a desgraça alheia deve servir de
consolo, mas apenas de incentivo para a debelarmos. Talvez seja isso
mesmo: incentivo. Como dizia o evangelho de um domingo recente, não
podemos desanimar de procurar a moeda perdida; como não podemos
desanimar de procurar o sentido perdido da vida. Bastaria ler a
Bíblia para ver como, ao longo de muitas centenas de anos, gente da
rua ou gente dos palácios protestou contra Deus, porque não há
justiça neste mundo, e nem o próprio Deus parece dar bom exemplo.
Faz bem ter presente que Jesus, no Jardim das Oliveiras, tremeu
apavorado com a perspectiva de uma morte extremamente penosa no
plano físico e moral; pediu a Deus que o livrasse disso tudo; e já
na cruz, as suas últimas palavras são a eterna pergunta do ser
humano perante o mistério desta vida: «meu Deus, porque me
abandonaste?»
É verdade que a
tradição refere que, no Jardim das Oliveiras, «veio um anjo
consolá-lo», expressão que significa que Deus rompeu o silêncio, e
lhe deu forças para continuar a agir como «um servo inútil», de tal
modo que, suspenso já da cruz, soube consolar os outros. Mas depois,
tudo parece ficar na mesma ou pior...
Estranho
pagamento, o de Deus! Tão estranho, que todos somos tentados a dizer
que não vale a pena contar com ele. E no entanto, não tem faltado e
não falta quem teimosamente semeie tudo o que há de belo e de bom.
Não deverá cada um de nós ser o «anjo consolador» dos outros? Não
será por isso que Jesus Cristo disse que está connosco sempre que
trabalhamos em nome dele?
Quem pagará a
quem faz o Bem? |