Liturgia Pagã

 

«Desenrascar-se» ou «desenredar-se»?

3º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro de Isaías, 8, 23- 9, 3

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 1, 10-17

Evangelho: S. Mateus, 4, 12-23

 

 

De certeza que os discípulos de Jesus eram gente «desenrascada». Não lhes faltaram ocasiões para disso darem prova. Mas se ficassem por aí, não passariam de uns espertinhos para a vida, de quem, quando muito, se contariam umas quantas anedotas. A arte do «desenrascanço» aplica-se a situações concretas e nunca chegaria para firmar o novo estilo de relação com Deus e o próximo, desejado por Jesus Cristo. Para que o Cristianismo fosse de facto uma visão e modo de viver libertadores dos nossos desejos mais profundos, era necessária uma atitude radical de «desenredar-se» de tudo o que oprime a dignidade da pessoa e impede a nossa felicidade.

É o que se pode ler nas duas brevíssimas penadas com que Mateus apresenta os primeiros discípulos de Jesus: de meros «pescadores com redes» passarão a «pescadores sem redes», como é próprio a um espírito de missão liberto de preconceitos e costumes não justificados e que não quer «enredar» ninguém.

«Deixar as redes» já tinha o significado de libertação de preocupações menos importantes diante do grande objectivo da vida.

Mateus terá gostado de sublinhar que Jesus começou «a sério» a sua missão num lugar estranho e pouco convencional (ou seja, «desenredado»): nem em Jerusalém nem no deserto, mas numa região onde os não judeus representavam metade da população («Galileia dos gentios»). O grego era a língua mais utilizada e a maneira de pensar afastava-se das formas tradicionais do pensamento judaico. Jesus era pois inteligível para os pagãos que o quisessem escutar (1ª leitura).

Os seus discípulos terão que se meter nos grupos mais diversos. A carta de S. Paulo refere como bem cedo apareceram conflitos, reclamando-se cada qual de ser o melhor, ou de pertencer à “melhor escola”. Nessa época, Corinto era um dos maiores centros culturais do mundo greco-romano. A mensagem cristã corria o risco de não ser mais do que um sistema filosófico, a debater entre “escolas” rivais.

S. Paulo desmonta todo o esquema: nem culto de personalidades nem palavreado enredador. O «reino dos Céus» está ao nosso alcance, mas é preciso “querê-lo a sério”, com muita atenção ao «mandamento novo». Ninguém pode ensinar ou ser empresário, para ser “senhor” dos seus ouvintes, dos seus clientes ou dos seus predilectos. E ninguém é mais ou menos importante só por ter ouvido ou trabalhado com fulano em vez de sicrano. E o valor perene das nossas acções só é alcançado se procurarmos sobretudo a promoção da Verdade e da Vida.

Jesus não disse «quem não é por mim é contra mim»; pelo contrário, afirma e admoesta os apóstolos: «quem não é contra a verdade é por mim» (Marcos, 9,40). Como quem diz: não condeneis ninguém, só porque não pertence ao vosso “grupinho”.

A «busca da felicidade» que alimenta os nossos sonhos não passa de ingenuidade, se não virmos como aqui e ali ela se vai materializando pelo esforço de todos nós em melhorar a qualidade de vida. Só é “vida a sério” aquela que se preocupa com o bem-estar da humanidade inteira.

E ninguém pode ser feliz sozinho. Deus quer-nos libertos das condições de miséria e tristeza, e fortes, corajosos e optimistas. A luz de Deus só se apaga se a quisermos deixar morrer. A essa luz, descobrimos que a injustiça é o veneno mortal do progresso da Humanidade. Com a «boa nova» de Jesus, podemos vencer as trevas do desespero e da inquietação relativamente ao que é que vale mais a pena.

Mas a salvação da Humanidade deve-se manifestar ao nível social, político e espiritual. O «reino de Deus» só será perfeito com «novos céus e nova terra» – mas que desde já vão surgindo na medida em que nos soubermos «desenredar».

26-01-2014


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